Abaixo as fantasias febris da função fabulatriz!
Publicada em 1844, a obra O Único e sua Propriedade, dinamite em formato de livro do provocador filosófico Max Stirner, causou “grande alvoroço” na Alemanha de seu tempo: “Por sua radicalidade anarquista individualista foi rejeitado oficialmente como escandaloso ou absurdo pelo meio filosófico acadêmico” (SAFRANSKI: 113).
Apesar de ter sido proscrito do mundo intelectual “sério” e tratado como um pária pelos doutores em suas togas, Stirner fascinou e instigou grandes espíritos de sua época, de Karl Marx (“que foi levado a escrever uma crítica dessa obra, mais ampla do que o livro criticado, e que mesmo assim não publicou”) a Feuerbach (que “escreveu a seu irmão que Stirner era o “escritor mais genial e livre que conheci”).
Outra das mais poderosas mentes do século XIX, Friedrich Nietzsche, muito provavelmente sofreu o impacto do pensamento stirneriano. Segundo o biógrafo Rüdiger Safranski, logo depois do colapso de Nietzsche em Turim, “desencadeou-se na Alemanha uma disputa acirrada sobre se Nietzsche teria conhecido Stirner e se deixara estimular por ele” (113) – e houve até aqueles que acusaram o autor do Zaratustra de ter plagiado idéias stirnerianas. Algumas pessoas que conheceram Nietzsche, inclusive alguns de seus alunos, garantem que Fritz citava Stirner como um pensador em quem reconhecia uma espécie de parentesco espiritual e uma semelhança de diagnósticos e objetivos filosóficos.
O Único e sua Propriedade, principal obra de Stirner, é uma crítica radical de todas aquelas causas sagradas e missões celestiais que algumas doutrinas querem sugerir que é dever do homem honrar com submissão e sacrifício. “Há tanta coisa a querer ser minha causa! A começar pela boa causa, depois a causa de Deus, a causa da humanidade… para além disso, a causa do meu povo, do meu príncipe, da minha pátria e, finalmente, até a causa do espírito e milhares de outras. A única coisa que não está prevista é que a minha causa seja a causa de mim mesmo!”(STIRNER, p. 9)
Ateu convicto, Stirner é um crítico profundo de todo idealismo e toda superstição: “No cerne do ser humano”, escreve Safranski, “ele descobre uma força criadora que produz fantasmas, para depois deixar-se oprimir pelos próprios produtos” (SAFRANSKI, p. 115).
A pretensão dos detentores do poder pastoral de serem peritos em matéria de causas que estaríamos destinados a servir por imposição de forças transcendentes é “desmontado” pela acidez do pensamento de Stirner até que se revele como um jogo espectral de fantasmagorias e tapeações. “Os homens em geral não são levados em consideração quando se crê no mandamento ‘é preciso obedecer mais a Deus do que aos homens’ (alusão às palavras de Pedro e dos apóstolos, Atos 5, 29). A partir deste ponto de vista elevado, tudo o que é ‘terreno’ é remetido para a distância e desprezado – porque o ponto de vista agora é o celestial.” (p. 27)
O advento do Cristianismo é descrito por Stirner, tal qual em Nietzsche, como uma “indesmentível inversão de valores” (25) em relação ao que vigia no século de Péricles, auge da cultura dita “sofista”. Descrito como “inovador revolucionário” e “herdeiro desrespeitador” em relação ao judaísmo, o Cristianismo “dessacralizou o sábado dos pais para consagrar o seu domingo e interrompeu o curso do tempo para dar início a uma nova contagem sua.” (24) Evidência clara de que ainda não nos libertamos disto é o fato de ainda estarmos presos a uma contagem de anos e de séculos que tomam como referência primeira o nascimento de Cristo: dizemos que estamos em 2012 d.C., e não, como seria plenamente justificável caso outra tendência cultural tivesse triunfado, 2.509 depois de Sófocles ou 448 depois de Shakespeare…
O cristão que acredita que a morte lhe abrirá as portas para que adentre a pátria celeste, a Jerusalém lá de cima, tenderá a postular que o mundo terreno é vão, corrupto e sem valor, sentindo-se estrangeiro sobre esta Terra pecaminosa, já que aspira imaginariamente à perfeição da morada dos Céus. Esta idealização de um Além perfeito, onde o devoto imagina que um dia habitará, gera, no presente, uma aguçada batalha contra o sensível e um encarniçado desprezo do mundo, do corpo e dos desejos carnais.
Mas não são somente os cristãos que aderiram a uma perspectiva como esta, é claro, e Stirner reconhece alguns “predecessores” desta atitude nos estóicos, nos céticos e nos místicos orientais hindus (que procuram “alcançar um grau de insensibilização terrena que apenas tolera o ciciar monótono da palavra Brahma” – 33). O Cristianismo seria, portanto, uma dentre muitas doutrinas que pregaria o distanciamento em relação à realidade terrena e faria da apatia, da impassibilidade e da imperturbabilidade em relação ao sensório e ao carnal… virtudes santas.
“O cristão ama apenas o espírito – mas onde está o indivíduo que realmente seja espírito e nada mais?” (37) O cristão, segundo Stirner, devido ao ideal que possui do que um homem deveria ser, não cessa de condenar os homens de carne-e-osso por não serem a encarnação deste ideal espectral que ele imaginariamente lhes impõe. “Os homens só existem para serem criticados, ridicularizados, profundamente desprezados: eles são, não menos que para o padre fanático, apenas ‘esterco’…” (37).
O cristianismo, que também segundo Nietzsche depositou sobre os ombros da humanidade o pesado fardo da culpa e tentou inculcar a noção de que somos todos pecadores, lança seu anátema e acende suas fogueiras contra os homens que julga não fazerem jus ao seu ideal. E uma das figuras mais anatemizadas é, segundo Stirner, a do “egoísta”:
“…quem é para ti o egoísta? Um ser humano que, em vez de viver para uma idéia, ou seja, uma causa espiritual, sacrificando a ela seus interesses pessoais, serve a estes últimos.” (42) Pode-se dizer, por exemplo, que o egoísta, numa situação de guerra, é aquele que recusa-se a fazer como o “bom patriota que sacrifica-se no altar da pátria”. “É por isso que tu desprezas o egoísta: porque ele remete para segundo plano o espiritual para privilegiar o pessoal e pensa em si mesmo quando tu esperarias vê-lo agir por amor a uma idéia… amaldiçoas todos aqueles que não vêem no interesse espiritual seu verdadeiro e supremo objetivo” (43)
Mas não se trata somente de estigmatizar e perseguir aqueles que recusam-se a se sacrificar por um ideal transcendente: o próprio crente, como Nietzsche aponta em seus estudos sobre a “má consciência” e a “crueldade interiorizada”, acaba vendo em si mesmo um inimigo. É o que Stirner também diagnostica: “Tu és um fanático contra tudo o que não é espírito, e por isso te insurges contra ti próprio por não conseguires livrar-te de um resto de matéria não espiritual.” (44)
Manifesta-se aí o que Nietzsche chamava de uma “moralidade como anti-Natureza”: “o puro renuncia à sua relação natural com o mundo para seguir apenas o ‘anelo ideal’ que o domina” (79). A renúncia a si mesmo é travestida de virtude e chamada de altruísmo. A tentativa de aniquilação da vontade própria e o esforço constante para ser obediente e servil a um ser supremo acaba gerando fraqueza e apatia: “o hábito da renúncia arrefece o calor de teu desejo”, escreve Stirner, “e as rosas de tua juventude empalidecem na… anemia de tua beatitude.” (82)
Já que o corpo e a realidade terrena foram estigmatizados como ímpios e pecaminosos, o devoto passa a viver possuído pela crença de que só no esforço na direção do sagrado é que será… consagrado. Só atingirá a bem-aventurança eterna e o descanso celestial junto ao coro dos anjos aquele que servir à “causa de Deus”, à “causa do espírito”. E aí se escancara que os devotos, que tanto atacam o “egoísmo” dos pecadores”, possuem em seu desejo de redenção e salvação um… interesse altamente egoísta!
Já que sonham com um “céu que é o fim da renúncia e lugar da livre fruição” (90), os fiéis não passam de egoístas que não se confessam como tais, hedonistas que adiam para o além-túmulo a grande festa de prazeres infindos que desejam… Os devotos que desejam que sua alma viva eternamente em meio às mais deleitosas delícias paradisíacas, que realizam atos de altruísmo e filantropia sempre tendo em vista a recompensa celestial que lhes será dada, são justamente aqueles que… condenam com selvageria o “egoísmo dos ímpios”!
“O sagrado só existe para o egoísta que não se reconhece, para o egoísta involuntário, para aquele que se coloca sempre em primeiro lugar sem, no entanto, se considerar o ser supremo, que só serve a si próprio e ao mesmo tempo pensa servir a um ser superior… em suma, para o egoísta que não quer ser egoísta e se rebaixa, ou seja, combate seu egoísmo, mas ao mesmo tempo só se rebaixa ‘parar poder ser elevado’, que é o mesmo que dizer: para satisfazer seu egoísmo. Como quer deixar de ser egoísta, procura no céu e na terra seres superiores a quem servir e a quem se sacrificar; mas por mais que se sacuda e se mortifique, ao cabo de tudo, o que faz o faz tão-somente por interesse pessoal, e seu famigerado egoísmo nunca o abandona.” (50)
Stirner critica a religião por povoar o mundo de espectros e assombrações que são criações humanas… demasiado humanas. Os devotos, que têm o costume de dizer que seus inimigos são “possessos”, na verdade são eles mesmos vítimas de uma possessão por idéias fixas: “obcecados pelo bem, pela virtude, pela moralidade”, eles “se fixam em suas opiniões” e concebem que o sagrado não é nada mais do que aquilo que merece o entusiasmo mais fanático. Tal como Nietzsche, que dizia que “convicções são prisões”, Stirner não vê com bons olhos estes que se aferram a perspectivas que querem imutáveis em seu “interesse fanático pelo sagrado” (60).
O sagrado é também aquilo que justifica os maiores sacrifícios. E aqueles que mais sacrificam são aqueles que mais pretendem ser abnegados e altruístas, acusando de egoístas, frios e calculistas aqueles que recusam a auto-imolação nos altares de Deus, do Espírito, da Pátria, da Humanidade… Stirner coloca em questão:
“Não serão interesseiros e egoístas estes homens que tudo sacrificam? Como têm apenas uma paixão, buscam uma única satisfação, mas de forma tanto mais fanática: todo o sentido da sua vida se esgota nela. (…) Uma ‘grande idéia’, uma ‘boa causa’, são, por ex., a honra de Deus, pela qual milhões encontraram a morte; o cristianismo, que encontrou seus mártires voluntários; a Igreja, única via da salvação, que se alimentou avidamente do sacrifício dos hereges; a liberdade e a igualdade, que estiveram a serviço de sangrentas guilhotinas…” (99) “Encontramos aqui a velha ilusão do mundo que ainda não aprendeu a se libertar do clericalismo que lhe diz que a vocação do homem é viver e trabalhar por uma idéia e que seu valor humano se mede pela fidelidade em sua realização.” (100)
O desprezo pelo terreno e a “negação da sensualidade e da naturalidade” (93) é o preço deste fanatismo pelo sagrado. O homem de carne-e-osso é imolado em nome do homem ideal ou do “espírito”. A voz da carne é considerada como diabólica e forçada a se silenciar, e como subprodutos desta repressão emergem muitas neuroses, já que “só quando se dá conta da voz da carne é que um ser humano se dá conta completamente de si, e só quando se dá conta completamente de si é que ele é um ser verdadeiramente perceptivo e racional. O cristão não percebe a miséria de sua natureza amordaçada…” (84). Contra isto, Stirner faz alusão a uma tarefa ainda por realizar: a de “dissolver o espírito em seu nada… fazer o espírito descer ao nível da nulidade…” (93). Pois o espírito não passa de uma produção humana, um espectro inventado pelo cérebro, uma fantasia febril da função fabulatriz. Somos seres de carne-e-osso que sonharam que eram espíritos… e acreditaram em sua própria lorota. É hora de despertar!
DEPOIS DO IMPÉRIO DE DEUS… O IMPÉRIO DA MORALIDADE.
Mesmo aqueles que julgam ter “rejeitado o cristianismo como coisa do passado” podem continuar sob o jugo cristão se prosseguirem aferrados à crença na sacralidade da moralidade (61), atitude que Stirner reconhece em Proudhon e Feuerbach: “A fé moral é tão fanática como a fé religiosa!” (62)
“Nenhuma pretensão de vitória total pode se fundar na expulsão de Deus do seu céu e da transcendência se com isso apenas o empurramos para o coração humano e lhe oferecemos uma imanência indelével. Agora diremos: o divino é o que há de mais verdadeiramente humano! As mesmas pessoas que recusam o cristianismo como o alicerce do Estado, isto é, o chamado Estado cristão, não se cansam de repetir que ‘a moralidade é o pilar fundamental da vida social e do Estado’. Como se o poder da moralidade não correspondesse a uma total dominação do sagrado…” (65)
Stirner lembra-nos que as crianças são apresentadas à religião e à moralidade através do doutrinamento, do catecismo, da imposição pelos mais velhos de supostas verdades atemporais. Esta pedagogia que exige das crianças a veneração e a submissão, enquanto são dogmaticamente “educados”, acaba por inculcar-lhes idéias que jamais produziriam se fosse mais respeitada a reflexão própria e a autonomia de pensamento.
“Abarrotados assim de sentimentos impostos, apresentamo-nos no tribunal da maioridade e somos declarados ‘adultos e responsáveis’. Nosso equipamento para a viagem consiste em ‘sentimentos edificantes, pensamentos sublimes, máximas inspiradoras, princípios eternos’. Os jovens são dados como adultos quando papagueiam os mais velhos; na escola, enchem-lhes os ouvidos com a velha ladainha e, uma vez assimilada esta, concede-se-lhes acesso à maioridade.” (87)
“A eficácia dos espíritos clericais caracteriza-se sobretudo por aquilo a que vulgarmente se chama a ‘influência moral’. E essa influência moral começa onde principia a humilhação… que quebra e faz vergar a coragem, reduzindo-a à humildade… espera-se que um indivíduo concreto se vergue ante a vocação do homem, que seja obediente e humilde, que renuncie à sua vontade em favor de uma outra que lhe é estranha e quer valer como mandamento e lei. Ele deve, então, se humilhar perante algo superior: auto-humilhação. ‘Aquele que se humilhar será exaltado’ (Mateus 23, 12). Pois é, as crianças têm de ser educadas a tempo no sentido da devoção, da religiosidade e da honradez; um indivíduo de boa educação é aquele a quem os ‘bons princípios’ foram ensinados e inculcados, metidos na cabeça à força pela sova e pela doutrina.” (107)
Stirner sonha com uma rebelião de espíritos livres que chacoalhem esta ladainha que lhes é inculcada e que “não vão querer herdar vossa estupidez como vós a herdastes de vossos pais; vão eliminar de vez o pecado que herdaram, o pecado original. Quando lhes ordenares: ‘Curva-te perante o Altíssimo!’, eles vão responder: ‘Se Ele nos quer fazer vergar, que venha cá e o faça, que nós não o faremos de livre vontade’. E quando os ameaçardes com Sua ira e Seu castigo, ele vão reagir como se o ameaçásseis com o Bicho Papão. E se não conseguirdes meter-lhes medo com fantasmas, isso é sinal de que chegou ao fim o domínio dos fantasmas e de que as histórias da carochinha já não encontram quem nelas tenha… fé.” (108)
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OBRAS CITADAS
SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: Biografia de uma Tragédia. Tradução de Lya Luft. Ed. Geração Editorial.
STIRNER, Max. O Único e sua Propriedade. Trad. João Barrento. Ed. Martins Fontes. 2009.
Publicado em: 24/12/11
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
“Tal como Nietzsche..” Temos um problema cronológico se o leitor não for avisado que Stirner é anterior a Nietzsche. Não está morta a possibiliade de plágio. Stirner foi suprimido com temor até pelos anarquistas que não puderam fazer uso do anarquismo muito pessoal dele.
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Amaury de Matos
Comentou em 19/10/12