“Quanto mais rude fosse a piada, maior a chance de aparecer no filme. Quanto mais obscena a piada, melhor. Pois não havia nada mais obsceno do que esses jovens sendo despedaçados e mandados para esse lugar para serem remendados e mandados de volta à batalha. Pra mim essa era a obscenidade!” (ALTMAN)
Mesmo em Hollywood, há quem tenha os culhões de afrontar o complexo industrial militar e os masters of war empunhando os recursos pontiagudos da arte satírica. O mestre Robert Altman era um semi-desconhecido dentro do showbizz roliudiano lá por 1969 e já adentrava os portões da toda-poderosa Fox pra dirigir um roteiro que tinha sido recusado por uma dúzia de outros diretores. Com orçamento “apertado” (“só” umas 3 milhões de doletas…) e um elenco de atores desconhecidos (uma dúzia deles estreavam no cinema), Altman se lançou ao projeto sob os olhares de desconfiança e ceticismo – pra não dizer hostilidade declarada – dos figurões do estúdio.
Na mesma época, a Fox estava produzindo dois outros longa-metragens de guerra – Tora! Tora! Tora!, de Richard Fleischer, e Patton, de Franklin J. Schaffner – tidos como prioritários: ofereciam à empresa perspectivas de lucro muito mais convidativas. Na maciota, com pouca grana e muitos capitalistas sedentos querendo arrancar-lhe o pescoço fora, Altman, em uma das atitudes mais heróicas e corajosas dum cineasta dentro da engrenagem hollywoodiana, filmou seu genial manifesto anti-guerra M.A.S.H.
O ano era 1969 e os Estados Unidos da América, mascarando seu imperialismo arrogante com a fachada da “defesa dos valores ocidentais”, despejava bombas, com sua arrogância costumeira, sobre um pequeno país asiático que tivera a ousadia de tentar o comunismo. Crime imperdoável. Com a Guerra do Vietnã a todo vapor e as mortes dos soldados em ascensão frente à tenacidade dos vietcongues, assim como crescentes ondas de repúdio diante do ecocídio e da carnificina produzidos pelo despejo de agente laranja nos territórios agredidos, os protestos pacifistas iam gradativamente aumentando.
Os hippies, dançando ao som do rock and roll e se sujando na lama de Woodstock, pronunciavam em altos brados: make love, not war. As manifestações anti-guerra ganhavam voz também entre artistas de muito peso na cultura mundial – John Lennon e Yoko Ono, por exemplo, que espalhavam por aí os outdoors que garantiam: war is over (if you want it) e convidavam as massas a cantar “Give Peace a Chance”.
Nesse contexto, Altman soltou uma obra recheada de humor negro e obscenidades, destilando um desrespeito generalizado contra todo tipo de autoridade, ridicularizando toda a classe militar e pintando um retrato da insanidade doentia que se apossa das mentes em tempos de guerra.
Sem olhar para os méritos artísticos do filme, M.A.S.H. já é um notável por causa do estrago que causou e pelas mudanças que trouxe: além de ter sido o primeiro filme a ousar utilizar a famosa four-letter-word (“I’ll blow your fucking head off”), teve um faturamento de bilheteria considerável, recebeu 5 indicações ao Oscar (vencendo o de roteiro), levou pra casa a Palme D’Or em Cannes, serviu de inspiração pr’uma série de TV homônima que durou 11 temporadas (e ganhou quase 100 Emmys), colocou Altman direto na história do cinema como um dos mais instigantes e irreverentes cineastas americanos e… (por que não?) ajudou a parar a guerra.
SENTA QUE LÁ VEM HISTÓRIA…
O enredo do filme, no entanto, não se desenrola no Vietnã. O roteiro de Ring Lardner Jr. foi inspirado num romance de Richard Hooker, um médico que serviu na Guerra da Coréia no início dos anos 50. Uma pequena contextualização histórica pode ser útil aqui, já que o filme não a faz de maneira alguma, praticamente eliminando (propositalmente) qualquer referência à Coréia.
Em 1945, com o fim da Segunda Guerra, o derrotado Japão deixou de controlar a Coréia e os exércitos de ocupação invadiram o país quase simultaneamente, os americanos pelo Sul, os soviéticos pelo Norte, rasgando a nação em dois. Em 1948 os soviéticos abandonaram o país e no ano seguinte foi a vez dos americanos também puxarem o carro. Em junho de 1950, exércitos norte-coreanos invadiram os territórios do Sul, tomando posse de Seul e de grande parte da Coréia do Sul.
Respondendo rapidamente a pedidos da ONU por assistência médica e militar na Coréia, o presidente Truman mobilizou o exército norte-americano pra território coreano, onde foram instalados uma série de hospitais improvisados pra atender os feridos em campo de batalha.
Os M.A.S.H.s – Mobile Army Surgical Hospital – atendiam principalmente aos casos mais graves: gente que não teria chance de sobreviver a uma dificultosa viagem a um hospital fixo através das precárias estradas do país. Os helicópteros, utilizados para driblar as dificuldades rodoviárias, eram carregados com os corpos sangrentos e mutilados dos moribundos no front e os despejavam aos borbotões nas unidades M.A.S.H.
Com a escalada da violência e o consequente aumento de demanda por médicos, o exército americano passou a convocar jovens estudantes de medicina, muitos deles com somente 1 ou 2 anos de treinamento cirúrgico, e os enviava para trabalhar em condições precárias e com péssimo equipamento nas terríveis mesas de operação dos M.A.S.H.s coreanos. Mesmo com o armistício de julho de 53, que conquistou uma tênue paz na Coréia, estima-se que mais de 35.000 soldados americanos permaneceram aquartelados na Coréia do Sul por mais de 45 anos após o cessar-fogo. O último M.A.S.H. foi desativado em 1997.
O filme de Altman, transpirando um realismo bem verossímil, nos colocará ficticiamente dentro de um dos acampamentos do M.A.S.H. Porém, o diretor procurou propositalmente eliminar qualquer referência à história da Guerra da Coréia e evitou ao máximo até mesmo colocar personagens coreanos no filme, na tentativa de fazer com que o público tivesse a ilusão de que aquilo se desenrolava no Vietnã. Donald Sutherland disse que a Guerra da Coréia era somente “uma metáfora atrás da qual eles se escondiam”, talvez um artifício para escapar da censura, mas que a intenção manifesta do filme era ser despejado nos EUA de 1970 como uma obra anti-Guerra do Vietnã. Bem útil para este intento que coreanos e vietnamitas tenham, ambos, olhinhos puxados!
NO CAOS E NO IMPROVISO
Robert Altman tinha visões tão subversivas e um modo de trabalho tão fora do comum que teve uma série de problemas durante as filmagens e pós-produção. Com pouquíssimo respeito pelo roteiro, o diretor deixava rédeas soltas para que os atores improvisassem as falas e sugerissem toda uma série de detalhes e acontecimentos que não estavam previstos. Alguns depoimentos de atores afirmam que 80% do filme é improvisado. Esses mesmos depoimentos pintam o retrato dum set de filmagem dominado pelo caos, onde ninguém além de Altman sabia exatamente o que estava acontecendo, com os atores entregues à sua própria criatividade enquanto as câmeras dançavam ao redor.
Os dois atores principais, Donald Sutherland e Eliott Gould, vendo com ceticismo o comportamento extravagante do diretor, entraram em sérias desavenças com Altman, algo que chegou a comprometer a realização do filme. “Nós achávamos que Bob deveria ser internado numa instituição para pessoas mentalmente desequilibradas. Porque era obviamente doidice o que ele estava fazendo”, disse Sutherland. Também o roteirista Ring Lardner Jr. sentiu-se ultrajado quando viu o filme finalizado ao notar que PRATICAMENTE NADA do que havia escrito no roteiro aparecia no filme. Por ironia, Lardner iria vencer o Oscar de Melhor Roteiro no ano seguinte e, subitamente, ao perceber-se alçado à glória pela genialidade de Altman, rapidamente tratou de se referir ao diretor com mais carinho e gentileza…
No acampamento M.A.S.H. colocado em primeiro plano pelo filme, os feridos nos campos de batalha são trazidos às pressas, normalmente mutilados e empapados de sangue, com hematomas horrendos, fraturas expostas e feridas purulentas, para serem submetidos a operações de emergência. A dramaticidade da situação, absolutamente trágica, é contraposta pela atitude dos médicos e cirurgiões, que não levam nada à sério e tratam tudo na base da chacota. A tragédia e a comédia dão as mãos.
Hawkeye (Donald Sutherland) e Trapper John (Elliott Gould) são dois porras-loucas que se afogam em martinis, piadas sujas, humor negro e xavecos passados às colegas de trabalho. Enquanto abrem os corpos dos feridos e costuram suas entranhas, com as mãos banhadas em sangue e tripas, batem um papo como se estivessem no boteco, fazem gracinhas sobre os membros decepados dos feridos, comentam sobre as qualidades anatômicas das enfermeiras… A vida no acampamento é envolvida num ambiente de imoralidade, de vale-tudo, de foda-se todas as regras e todas as autoridades. E viva o pôquer, as bebedeiras, o sexo casual e o futebol americano na lama.
Toda uma série de alvos são sistematicamente ridicularizados e caçoados. Qualquer pessoa que se leve a sério ou que acredite convictamente em suas crenças (Burns rezando ajoelhado e sendo ridicularizado), que pretenda “fazer cenas” (Hot Lips depois da travessura do chuveiro), que tenha a ambição de estar fazendo algo de importante ou dramático (o “suicídio” de Painless), é sempre destroçada pelo sarcasmo cáustico e destrutivo dos médicos. Não há para eles nenhuma pessoa merecedora de respeito. “Costurando e cortando no campo de batalha, operando enquanto bombas e balas explodem à sua volta, revidando com risadas entre amputações e penicilina”, os médicos constroem um mecanismo para suportar a realidade intolerável onde estão afogados.
Altman declarou que o principal tema em M.A.S.H. é a insanidade. Obviamente, o cineasta se mostrou tremendamente preocupado com os rumores de que a Fox iria censurar as cenas tétricas de operação, nas quais a tela era tingida de sangue jorrante e cadáveres abertos sendo cavocados pelos bisturis dos médicos. Se aquelas cenas tivessem sido excluídas, a obra perderia toda sua relevância, todo seu poder, e se transformaria numa comédia banal e fútil sobre personagens que fazem piada de tudo, até das desgraceiras mais terríveis.
Mas é o horror de experimentar um cotidiano desfile de corpos humanos destroçados, de entrar em contato direto e constante com o terror da guerra, que obriga os médicos a criarem maneiras de escapar da realidade através da diversão, da futilidade, do esporte, do álcool, do papo furado. São táticas de sobrevivência. Grandes artifícios utilizados para erguer um pesado muro de repressão que esconda o insuportável terror que está a se desenrolar. Estou certo de que Altman não está fazendo um elogio tácito ao comportamento imoral, foda-se tudo, de seus personagens, mas registrando mecanismos psíquicos de fuga de uma realidade demasiado tenebrosa e chocante para ser tragada. “A leviandade desses rapazes era um meio para que eles pudessem sobreviver!”, declarou o diretor.
E não só a futilidade dos médicos é descrita, comoparece haver também uma espécie de provocação latente do próprio filme aos espectadores. Afinal, M.A.S.H. se apresenta como uma comédia engraçadíssima, onde estão presentes alguns dos diálogos mais espertos e divertidos da história do cinema, mas ao mesmo tempo esboça uma espécie de crítica à trivialidade como uma espécie de covardia moral.
É como se Altman, após fazer um de seus personagens dizer algo de comicidade irresistível, se virasse pra nós e perguntasse: “mas por que é que você está rindo, pilantra? Os cadáveres estão se amontoando e os corpos continuam sendo costurados e remendados, e vocês vão na mesma onda desses médicos babacas em sua perseguição incessante de uma sagrada cegueira?”
O público inevitavelmente ri do filme, mas ganha de presente uma certa culpa, uma certa acusação: da mesma maneira que os personagens se entregam à futilidade para se esquecerem que estão num campo de batalha, também o público que frequenta os cinemas comerciais normalmente se entrega às gargalhadas e ao entretenimento escapista para evitar olhar uma realidade que não tem coragem de encarar de frente.
Ainda que M.A.S.H. não faz críticas explícitas à Hollywood como outro clássico de Altman, O Jogador, pode ser interpretado como um certo jogo dúbio com o público: que recebe o entretenimento todo sujo de sangue, que recebe o sangue todo recoberto pelo riso. Como diz o cartaz francês: eis um “filme sangrento de onde jorra o riso!” Além do eloquente manifesto anti-bélico que é, M.A.S.H. é também uma crítica cultural onde Altman descreve o entretenimento e a leviandade como mecanismos de fuga da realidade (Ernest Becker explica…). M.A.S.H. não está somente oferecendo piadas bestas – como disse Altman: “after all, you gotta pay for your laughs”.
(Eduardo Carli de Moraes)
Publicado em: 18/01/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Perfeito, excelente abordagem !
Obrigado pela leitura e pelo comentário. Volte sempre, Carlos.
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Carlos
Comentou em 21/03/24