O tumultuado, caótico, polêmico, violento, conflagrado processo eleitoral brasileiro de 2022 trouxe ao centro das atenções públicas o tema da criminalidade. O sintoma mórbido mais grave disto é a insistência monomaníaca com a qual a campanha bolsonarista xinga Lula de ladrão e de “ex-presidiário”. E não usamos o verbo xingar aqui à toa: usar o verbo “argumentar” ou “criticar” certamente não seria mais adequado. Pois o campo bolsonarista procede mais aos coices do que com lógica, mais aos socos do que com conceitos. Coloca lenha na fogueira de um certo discurso ironizado na tirinha do Armandinho em que uma senhora diz “pra ter sido preso, coisa boa não é!”, ao quê o sagaz garotinho retruca: “a senhora fala de Mujica, Mandela, Gandhi, Tiradentes, Jesus… ou do seu intestino mesmo?”
A mais perfurante ironia da história, neste caso, é que o jornalismo profissional acaba de erguer uma grande barricada contra a falsa atribuição de criminalidade a Lula ao relevar uma tonelada de fatos que evidenciam a criminalidade bolsonarista através do trabalho de figuras como Juliana Dal Piva, Bruno Paes Manso, Natália Viana, Leonardo Sakamoto, Eliane Brum, Conrado Hübner Mendes etc. Todos eles repletos de informações pertinentes e de armas-da-crítica a serem empunhadas por nós na batalha contra a lorota bolsonarista de que Lula seria corrupto e ele, Bolsonaro, impoluto. Quem mais adora disparar farpas odientas contra a imaginária criminalidade atribuída a Lula é um baita cidadão-de-bens que comprou 51 imóveis com mais de 20 milhões de reais em dinheiro vivo, extraído através do laranjal das rachadinhas.
Para além de ter sido um parasita dos fundos públicos por mais de 30 anos, quando deputado do baixo clero notável apenas por babar ódio em discursos racistas, misóginos e homofóbicos, em seu mandato presidencial o Seu Jair envolveu-se em escândalos escancarados na compra de vacina (propina de 1 dólar por dose), no MEC entregue ao lobbysmo fundamentalista-religioso, no esquemão do Orçamento Secreto em que se fez a “tchutchuca do Centrão” etc.
O discurso que atribui crime a Lula é o discurso que provêm dos verdadeiros criminosos – de falsos juízes (como Moro), falsos messias (como Jair), falsos comunicadores (Carluxo), em suma: farsantes em quadrilha. O boné CPX de Lula, a visita dele ao Salgueiro, sua acachapante vitória do Nordeste, tudo é aproveitado como motivo para odiar, como pretexto para botar fogo na máquina de propaganda trituradora-de-reputações e paga com impulsionamento de mensagens que são disparadas no Zapistão dos Ódios Mil. Eis o novo bang bang do Croc-capitalismo.
O lodo que escorre do Zapistão bolsonarizado fede como um esgoto: uma enxurrada de fake com intento explícito de calúnia, de assassinato de reputação, com o uso de retórica belicista, impiedosa, facciosa, típica do que podemos chamar de A República das Milícias. Sede: Rio de Janeiro, ex-capital federal. Puxadinho: Gabinete do Ódio, Palácio do Planalto. Intérprete incomparável da primeira “presidência miliciana” que o Brasil já teve: Paes Manso, vencedor do Jabuti.
Operando através da lógica do inimigo, exposta por Carl Schmitt, o bolsonarismo só sobrevive ao oferecer aos membros da seita, aos co-partícipes da facção, farto alimento para o ódio contra o inimigo. Que não é um inimigo real, mas uma construção fictícia criada a partir dos recursos da demonização do outro e da disseminação de pânicos morais. Assim, é preciso construir o Lula como demoníaco, como criminoso, como parça do PCC, como o chefe de uma quadrilha (como naquele ridículo Powerpoint do Dallagnol). É preciso atiçar uma espécie de cão raivoso que existe na intimidade secreta destas pessoas fanatizáveis e que na real são masculinidades bem frágeis, e que por isso precisam ostentar posturas de ogro e guturais de guerra.
O Bolsonarismo insufla o ódio contra o inimigo, promete um banquete de sangue, e entrega justamente o que promete: carnificina. Bolsonaro parece retirar alguma confiança em si mesmo da convicção que possui de que é algum modelo maravilhoso de virilidade, “o imbrochável”, o machão. O que só revela a inanidade, o caráter de anão de sua evolução ética, ainda longe de ter superado o estágio de desenvolvimento moral de um pré-adolescente de 12 anos, inseguro por causa do tamanho de seu pênis e que usa o bullying contra o coleguinha negro e o assédio tarado contra a mocinha arrumadinha de 14 anos como emblemas públicos de que é sim muito viril. Ôrra, mas que hombridade! Esta masculinidade catastrófica que é marca furibunda do bolsonarismo foi muito bem exposta pelo filme Quebrando Mitos. Também é alvejada pela bela canção colaborativa “Hinoe ao Inominável” com letra de Carlos Rennó.
O Bolsonarismo comunga com seu conje Lavajatismo nesta piscina sinistra de ódios misturados: o ódio do patriarcado pelo avanço do feminismo, o ódio do supremacismo branco contra o avanço dos povos negros em suas reivindicqções de direitos igualitários, o ódio dos patrões aos trabalhadores que conquistam melhores salários e condições de vida. Bolsonarismo e Lavajatismo comungam no ódio ao pobre, ódio ao gay e ao trans, ódio ao indígena que não quer saber do agrobiz nem do garimpo predatório. Ódio ao marginalizado que entra no universidade e ao oprimido que ousa ter diploma de doutor. Ódio ao partido, fundado ainda na ditadura, que ousou representar os interesses da maioria dos trabalhadores e que se levantou em greves contra o regime militar no ABC de 1979 e 1980.
Este antipetismo feroz de hoje em dia é herdeiro do antipetismo feroz da ditadura, é um re-encarnação do que Lula viveu lá atrás sob o jugo da opressão paulista que eu chamaria de Fleury-Malufista e que esteve por trás de seu primeiro encarceramento. Quando “foi ao inferno pela primeira vez”, como o João de Santo Cristo de Renato Russo.
Sinto um odor podre de Malufismo marcando o Lavajatismo de Moro e Dallagnol, juiz e procurador delinquentes que foram “conjes” no ódio que comungam pelo petismo. Foi nesta onda lawférica (com o perdão do neologismo, sugestivo de uma feira feérica de atrocidades jurídicas num show de autênticos horrores) que o bolsonarismo surfou. Jards Macalé fez talvez o mais completo e artisticamente relevante retrato desta época em Besta Fera.
“Eu sou aquele que os passados anos
Cantando a minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios, enganos
E bem que os descantei bastantemente
Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em pletro diferente
De que pode servir, calar quem cala?
Nunca se há de falar o que se sente
Sempre se há de sentir o que se fala
A ignorância dos homens dessas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes
Que a mudez canoniza bestas feras
Há bons por não poder ser insolentes
Outros a comedidos de medrosos
Não mordem outros, não por não ter dentes
Quantos aqui os telhados têm vidrosos
E deixam atirar sua pedrada
De sua mesma telha receosos
Uma só natureza nos foi dada
Não criou Deus os naturais diversos
Não só Adão criou, e esse de nada
Todos somos ruins, todos perversos
Só nos distingue o vício e a virtude
De que uns são comensais, outros adversos
Tem maior a tiver, do que eu ter pude
Esse só me censure, esse me note
Cantes mais e haja saúde
E haja saúde
Saúde…”
Sem o antipetismo no zeitgeist a besta-fera do fascismo bolsonarista não teria surgido. Pereceria por falta de oxigênio, seria só um sub-integralismo a ser confinado às notas de rodapé da historiografia. Mas também é verdade que o bolsonarismo suscita reações estéticas, éticas e políticas na contracorrente dele e que trazem o sopro da rebeldia, da insubmissão, da renovação das formas do viver.
Porém, mesmo após a desmoralização da Lava Jato ocasionada pela Vaza Jato do Intercept, o antipetismo logrou ficar no palco da História, envenenando corações e mentes como uma nova epidemia viral. E encontrou no Bolsonarismo seu mais violento e intolerante porta-voz. Bolsonarismo: o ovo podre parido pelo Lava Jatismo e pelo contumaz golpismo da mídia oligopolizada do Brasil?
Antipetismo pestífero que empoderou os piores: caquistocracia de antipetistas fundamentalistas é onde estamos, como frisam Toledo e colegas no podcast da Piauí, o brilhante Foro de Teresina. Ciro Gomes também tentou surfá-la, a onda antipetista – mas naufragou. Já Jair Bolsonaro manifestou resiliência no “gosto” de numerosas massas que tem adorado odiar e que não tem feito o mínimo esforço de fazer justiça à estatura estética e à grandeza ética de Lula. É por isso que aqui faremos um esforço de apologia a Lula, em louvor às suas virtudes, na empatia por suas decisões de vida, indo na contracorrente do odiento “matai-vos uns aos outros!” que prega a extrema-direita bolsonarista.
A extrema-direita, mundo afora, triunfa com discursos de promessa de “segurança social” que seria conquistada através da truculência de um aparato repressivo herdeiro do Leviatã formulado por Hobbes. Bradam por repressão contra os pobres, os imigrantes, os refugiados, os favelados, os que são racializados como inferiores etc. Construir o bandido como alvo dos cidadãos-de-bem que vestem fardas é essencial ao funcionamento desta ideologia e das práticas a ela conexas: a bandidagem é colocada abaixo da “linha de abjeção” (conceito que empresto de Judith Butler), os marcados como “bandidos” são vistos como indignos dos direitos humanos, ou seja, são postos para fora do círculo mágico da humanidade. São subhumanos: os lambe-botas de Jair não adoram repetir que “bandido bom é bandido morto”?
Seria o caso de apontar a eles que tal discurso demonstra apenas a subhumanidade de quem o profere, mas em um sentido bastante específico: não estou dizendo que o discurso provêm de uma subraça, mas sim que tal discurso não está à altura da humanidade como valor, como processo histórico que traz, “anexa” à sua dinâmica, as dinâmicas de constituição da civilização. Estas dinâmicas culturais trouxeram a população do território Brasil a uma raríssima e pungente encruzilhada histórica.
As ocorrências no SESC Pompéia, quando Judith Butler nos visitou para palestras, são outro sintoma da onda que o bolsonarismo está surfando: ali, algumas senhoras conservadoras, reacionárias ao extremo, quiseram queimar em efígie a bruxa da pensadora da performatividade de gênero, acusando-a de querer “destruir a identidade sexual dos nossos filhos”. Há uma parcela da população brasileira que, colonizada pelo catecismo cristão, avessa à libertação sexual e à diversidade de maneiras de conviver e amar, deseja costumes em estado de rigor mortis. Detonam com fúria qualquer desejo social de dar dinamismo aos costumes herdados de milênios atrás. Não suportam o trabalho crítico do pensamento que descontrói a pretensa sacralidade de dogmas que estas pessoas sectárias querem defender com unhas e dentes, com tiros e feiticeiras queimadas.
Em contraste com este horror, com esta “boçalidade do mal” (Eliane Brum), sondaremos a figura histórica de Lula e seu papel no mundo contemporâneo. Lula serve de emblema para uma cultura da paz e da colaboração, da concórdia ampla contra os narcisismos das pequenas diferenças: o lulismo é um Gilberto Gilísmo, um “movimento” sócio-político com disposições amoráveis, que aposta na multiplicidade cosmopolita do humano contra todas as monoculturas da mente e da economia. Alguns criticam a figura do “Lulinha paz-e-amor”, saudosos daquele sindicalista mais aguerrido que confrontou a ditadura militar com as maiores greves que esta conheceu, mas em tempos de ódio truculento como estes que atravessamos torna-se um farol em meio às trevas a atitude ética de Lula, sábio como Gil, em saber conjugar o compromisso com a justiça social e a postura amorável, namastê.
O bolsonarismo, nem é preciso dizer, é, ao contrário, a exalação fétida da ira em jato contínuo. É o fedor que faz a mentira quando se espalha como praga. A exemplo da mentira de que os ricos são melhores e mais humanos que os pobres. A mentira de que nos guetos, nas shantytowns, nas favelas e nos quilombos, só moram vagabundos e bandidos – e bora paulada do Leviatã-milico neles! Bora botá-los presos em presídios por fumarem uma erva, bora assustá-los com nossas apologias a Ustras e Fleurys!
Em debate antecedendo o segundo turno, a distinção ética entre os dois adversários fez-se explícita: Jair Bolsonaro acusou as favelas de serem antros de criminosos ao criticar Lula por ter ido fazer campanha no morro onde esteve, segundo Bolsonaro, “rodeado só por traficantes”. Dias antes, o candidato petista havia estado em grande ato público no Complexo de Favelas do Alemão.
Lula retrucou prontamente que muito se orgulha de ser o único ex-presidente que é recebido na favela, que acolhem bem no morro, e dá uma aula de sociologia básica para o rei da estupidez que é seu interlocutor: na favela, a maior parte da galera é trabalhador, que levanta 5 da manhã para que o playboy de Copacabana possa comprar seu picolé ou ter seu apê faxinado desde manhã cedinho. Bolsonaro, que pesa as populações afrodescendentes em arrobas e é reconhecido como brother pela Ku Klux Klan, manifestou todos os preconceitos mortíferos típicos do supremacismo racial. Esta fonte infinda de hecatombes.
Em contraste com isto é que devemos medir a estatura ética de Luiz Inácio Lula da Silva, situá-lo no palco da História e avaliá-lo enquanto líder político de magnitude inter-geracional. Na sequência deste artigo, desejamos tentar mensurar a estatura de Lula no palco da História através de um olhar que busca estar limpo dos ódios cegantes com os quais seus detratores distorcem a visão clarividente do real histórico. Seus 580 dias no cárcere, seguido pela libertação e pela postulação de nova candidatura à presidência da República, parece que já nos qualificam a pelo menos pretender que seja válida uma comparação de seu destino com o de Nelson Mandela – que esteve preso por 27 anos por sua luta contra o apartheid na África do Sul e que, depois de libertado, foi eleito presidente de seu país.
Para além do paralelismo com Mandela, é possível outro caminho comparativo: ouvir, em discursos como aquele em que Lula descreveu-se como construtor de sonhos, em fala no Sindicato do ABC pouco antes de ser encarcerado na Bastilha da PF em Curitiba, um ethos assemelhado – afetiva e conceitualmente – ao célebre “I Have A Dream” de Martin Luther King. Este fala sobre um sonho de um mundo onde seus 4 filhos “não sejam julgados pela cor de sua pele mas pelo conteúdo de seu caráter”. Fala de um sonho de ver respeitada a “verdade auto-evidente” de que “todos os seres humanos são criados iguais”. Lula não assinaria embaixo? Também poderíamos buscar paralelos dele com Pepe Mujica, com Gandhi, com Sócrates…
“Eu sou um construtor de sonhos. Eu há muito tempo atrás sonhei que era possível governar esse país envolvendo milhões e milhões de pessoas pobres na economia, envolvendo milhões de pessoas nas universidades, criando milhões e milhões de empregos nesse país. Eu sonhei que era possível um metalúrgico, sem diploma universitário, cuidar mais da educação que os diplomados e concursados que governaram esse país. Eu sonhei que era possível a gente diminuir a mortalidade infantil levando leite feijão e arroz para que as crianças pudessem comer todo dia. Eu sonhei que era possível pegar os estudantes da periferia e colocá-los nas melhores universidades desse país para que a gente não tenha juiz e procuradores só da elite. Daqui a pouco vamos ter juízes e procuradores nascidos na favela de Heliópolis, nascidos em Itaquera, nascidos na periferia. Nós vamos ter muita gente dos Sem Terra, do MTST, da CUT formados. Esse crime eu cometi.
Eu cometi esse crime e eles não querem que eu cometa mais. É por conta desse crime que já tem uns dez processos contra mim. E se for por esses crimes, de colocar pobre na universidade, negro na universidade, pobre comer carne, pobre comprar carro, pobre viajar de avião, pobre fazer sua pequena agricultura, ser microempreendedor, ter sua casa própria. Se esse é o crime que eu cometi eu quero dizer que vou continuar sendo criminoso nesse país porque vou fazer muito mais. Vou fazer muito mais.” – Lula da Silva. Discurso de 7 de Abril de 2018.
E POR FALAR EM SÓCRATES… O DRAMA DE LULA EM PARALELO COM O “CRÍTON” DE PLATÃO
O fato de ter sido preso iguala Lula, na bruta factualidade do ato de ser encarcerado, ou seja, de ter sido coagido a permanecer em uma cela por poderes alheios, a tantas figuras históricas que também o foram – Mujica, Mandela, Gramsci etc. O insulto de ex-presidiário que os bolsonaristas lhe lançam, e os lavajatistas fazem coro, na verdade revela a ignorância crassa do ofensor. Este não percebe sua própria cegueira dogmática quanto à diferença ontológica entre um valor (a Justiça) e as instituições humanas que visam honrar este valor na prática (o Direito).
O Direito pode violar a Justiça. Aliás, isto acontece toda hora. Que pessoas inocentes sejam presas por crimes que lhes são imputados e que elas nunca cometeram é assunto quase trivial em filmes e séries, em reportagens e documentários. O Direito erra, e muito, até porque muitas vezes é instrumentalizado como instrumento na guerra de classes. Guerra jurídica, injustiça institucionalizada.
É preciso abrir uma perspectiva outra, enxergar por uma ótica que o olho manco do bolsonarista/lavajatista fanatizado não enxerga: perceber que muitos já foram presos e condenados injustamente, e que o próprio Jesus Cristo foi encarcerado e condenado à morte em uma situação que quase todos os cristão consideram de extrema injustiça. Como pode, pois, que tantos cristãos sejam tão ingênuos a ponto de não perceber que entre Jesus e Lula há mais semelhanças do que sonha a vã necrofilia raivosa dos bolsonaristas e lavajistas?
Por outro viés, enxergado a partir da posição ontológica do sujeito Lula, ao condená-lo ao cárcere por “ato indeterminado”, em virtude um triplex no Guarujá que ele nunca comprou, com base em delações premiadas para lá de suspeitas, com a bizarra confissão de que “não temos provas, só convicções” expressa por Deltan ‘Powerpoint’ Dallagnol, podemos chegar à noção de que neste caso a Justiça esteve sendo ferida e sangrada pelo Direito.
É o que estamos chamando hoje em dia, fiéis aos estrangeirismos e aos conceitos heterônomos, de lawfare, esta maracutaia do Direito que ofende a Justiça e tornou Lula um símbolo global de injustiçado. Esta tal de lawfare anti-lulista, ou seja, a perseguição política e aprisionamento em ano de eleição, representa um dos maiores casos de injustiçamento do século 21 (consultem, sobre o tema, os escritos de uma Carol Proner ou de um Pedro Serrano). Historiadores do 22, do 23, do 24º século poderão estudar o Case Lula como um dos mais importantes da história até então das práticas de lawfare e dos golpes-de-Estado de novo tipo com elas desferidos.
Para tentar extrair de um episódio significativo algum caldo novo para nosso debate, proponho neste artigo uma leitura de Lula em paralelo com Sócrates, baseando-me sobretudo no que doravante vou chamar de “O Dilema do Sindicato”. Refiro-me a um episódio histórico temporal (Abril de 2018) e geograficamente localizado (São Bernardo do Campo/SP), onde se desenrolou um singular episódio histórico já descrito em minúcias em filme, sobretudo na série documental A Trama, e em livro, Nós Vimos Uma Prisão Impossível (Ed. Contra Corrente).
Foram momentos saturados de muita tensão mas também mergulhados em um certo misticismo, devido não só à missa ecumênica em homenagem a Marisa Letícia, mas pela própria efervescência coletiva em que Lula esteve imerso e pela cosmovisão que ali veiculou. Emanou da retórica de Lula ali que “as ideias são a prova de bala”, que Lula não é mais um indivíduo, mas uma “ideia misturada à ideia de vocês”, arrematando com o tema caro a Neruda e Guevara: poderão cortar todas as rosas mas não vão deter a primavera.
Esta cosmovisão Lulo-inspirada, mas não presa a ele como guru ou messias, esta concepção emergente com a qual estamos lidando aqui, enxerga em Lula uma espécie de Mandela brasileiro, um lutador anti-racista, um abolicionista no sentido pleno. Vocês o ouviram falando sobre a importância histórica das cotas de reparação pelos 350 anos de escravidão? Lula, pois, poderia ser alçado à estatura histórica de um Luther King, de um Luiz Gama, de um Frederick Douglass? Seria este pernambucano apaulistado um exemplo de cidadão que se insurge, em aliança com a “peãozada”, contra as várias formas de tentativa de imposição da ditadura por parte de um patronato de mentalidade escravocrata?
O que quero destacar aqui é certos paralelos possíveis entre Sócrates na prisão de Atenas e Lula na prisão de Curitiba. Para compreender como seriam possíveis tais pontes, será preciso aprofundar nos caminhos divergentes que marcam O Dilema do Sindicato. O que proponho aqui, como experimento mental coletivo, a ser testado por nós em diálogo, é uma reflexão ética sobre o “como devo agir?” que se passou no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC nas horas que antecederam o aprisionamento. Proponho para esta situação um caminho tríplice que o sujeito Lula teve que encarar em sua tensa arena decisória. Queremos iluminar a eticidade das ponderações e ações de Lula naquela ocasião partindo do pressuposto esquemático de que ele encarava três caminhos possíveis: 1) o asilo/exílio no estrangeiro; 2) a resistência física, junto da militância, ao intento de prisão; 3) a entrega voluntária ao jugo do direito penal através de seu braço armado.
O livro de Fernando Morais tem um grande mérito ao trazer-nos esta história em detalhes dignos de um thriller na prosa ágil de sua biografia (volume 1). Ali Lula aparece-nos no centro de um torvelinho cinemático e super tenso. É como se um filme de Costa-Gravas passasse correndo por nossos cérebros quando sorvemos a narrativa envolvente com a qual Morais dá propulsão à sua narrativa. As cenas de filmes de ação não me interessarão tanto por enquanto, o que proponho é uma tentativa de “penetrar” em Lula para vê-lo desde o íntimo. Estou supondo que sua decisão se defrontava com estas 3 alternativas principais, que contavam cada uma delas com aliados possíveis: Pepe Mujica, no caso 1, pois este poderia acolhê-lo no Uruguai; Boulos e Gleisi Hoffmann, no caso 2, que foram ambos propugnadores da tese da resistência ativa contra a prisão; e, no caso 3, alternativa que historicamente prevaleceu, a entrega voluntária à PF para início da pena em Curitiba, defendidas por, entre outros, os advogados Zanin e Valeska.
O que quero dizer com esta cena? Por que peço aos leitores que imaginem esta situação, Lula em sua encruzilhada de três caminhos? É para destacar sobretudo, para começo de conversa sobre Sócrates, que o ethos de Lula na recusa da alternativa 1 lembra em vários aspectos o discurso socrático tal qual Platão o expõe no Críton. Nesta diálogo, na prisão de Atenas onde está encarcerado à espera da cicuta que lhe matará, Sócrates recusa a oferta de seu discípulo Críton de ajudá-lo numa fuga para longe de Atenas. Sócrates recusa a fuga por razões similares àquelas que Lula preconiza em defesa de sua recusa em ir para o exterior, buscar asilo em alguma embaixada etc.
Sócrates não quer ser foragido, ter que viver escondido fora de Atenas, visto por seus antigos captores como um fujão. Lula pensa o mesmo: ao invés da fuga, decide ficar sob a guarda de seus adversários até que possa provar sua inocência. Quando Críton sugere que se subornem os guardas, Sócrates pensa que a solução é indigna e profere sua clássica sentença ética: é melhor ser vítima de uma injustiça do que perpetrá-la. Lula faz o mesmo: entrega-se, escolhendo a alternativa 3, o que não implica nenhuma confissão de culpa.
Sabe que está sendo injustiçado, e mantem-se aferrado à noção da própria dignidade, re-forçada a cada um dos dias – 580 foram eles! – pelo povo na vigília, resiliente em seus animados bons dias, boas tardes, boas noites. Lula manifesta fobia diante da tornozeleira eletrônica e da prisão doméstica – repete seu bordão, não totalmente estranho ao espírito socrático, na verdade com muita afinade com o Sócrates que se revela diante de Críton: “não troco minha dignidade pela minha liberdade.”
DILEMA DO SINDICATO
CAMINHO 1: DILEMA DO ASILO
Após ponderação, Lula decide por um convicto não ao convite pelo exílio. O estrangeiro não o convoca, não tem poder suficiente de atração. Lula fica em seu país natal, onde sempre viveu, muito embora pudesse facilmente demandar de Rafael Correa asilo no Equador, a Evo asilo na Bolívia, ou a Mujica um apoio companheiro dos uruguaios etc. Lula, segundo o relato de Morais, manifestou ao seu entourage mais imediato que
“estava absolutamente descartada a hipótese de que ele se asilasse em alguma embaixada. Fugir do Brasil, reiterava, seria reforçar o estigma de culpado que os adversários queriam colar na sua imagem.” (FERNANDO MORAIS: 2021, p. 37).
CAMINHO 2: DILEMA DA RESISTÊNCIA
No livro de Morais, este dilema da resistência, a segunda alternativa que se apresenta diante da iminência da prisão, apresenta-se a Lula ele mesmo cindido em vários caminhos, em várias resistências plurais. Ana Estela Haddad, Guilherme Boulos, Gleisi Hoffmann, alguns sindicalistas metalúrgicos mais aguerridos, tentavam persuadir o sujeito Lula a decidir pela resistência – mas cada um tinha uma imagem diversa dos comos e dos porquês de resistir. Ana Estela, por ex., relatou-lhe um sonho premonitório onde estava descrito o horror: se Lula fosse preso, nunca mais o deixariam sair, ele apodreceria atrás das grades. O argumento de Boulos é inteiramente outro, mas interessante:
“A melhor alternativa é expor os adversários à contradição. Getúlio se matou, Jango foi exilado, Como é que o senhor quer entrar para a história? O que eles vão fazer? Vão meter bala nos milhares de pessoas que estão na rua? Vão invadir o sindicato para tirá-lo daqui a tapa? A imprensa internacional está toda aí na porta, isso vai expô-los à execração mundial, vai escancarar a perseguição de Moro ao senhor. Mas se já está decidido, eu respeito.” (BOULOS citado por MORAIS: 2021, p. 44).
Aqui, é como se Boulos fosse Críton, tentando persuadir o mestre. Mas Sócrates-Lula impõe sua visão, com o respeito do “discípulo”. Boulos, diante de seu mentor, foi voz em prol da resistência ativa mas respeitou a decisão de Lula pelo caminho 3.
CAMINHO 3: O CAMINHO EFETIVAMENTE TOMADO…
Naquela situação, recusando os caminhos do exílio e o da resistência, Lula deve ser sopesado, em suas ponderações íntimas mas sobretudo em suas intensas deliberações com outros agentes políticos, que não queria derramamento de sangue. Que não queria um grama de culpa por sangue derramado pela Tropa de Choque da PM de São Paulo. Não queria sangue humano jorrando pelas ruas e calçadas de São Bernardo. Isto revela uma eticidade Gandhiana, um compromisso com a pacificação. São os bolsonaristas os senhores da guerra e da discórdia, fanáticos pelo polemos, incapazes de construir colaborativamente com aquilo que está fora de sua bolha facciosa de sectários.
O que resta explorar é as nuances do paralelismo Lula-Sócrates aqui proposto: no caso do filósofo ateniense, sua recusa do plano de fuga proposto por Críton o conduziu à pena de morte, ao consumo da cicuta. Já no caso de Lula, quando ele rejeita o “caminho Boulos” assim como “o caminho Mujica” – seguindo o “caminho Zanin” – há aí muito mais biofilia em jogo. Um ímpeto de proteção da vida humana, e não apenas da própria. No dilema do Sindicato, ele foi cuidadoso diante da tensão armada que poderia ter acabado em massacre. Não houve mortos, e houve poucos feridos, em todo o episódio que norteia este Dilema do Sindicato aqui delineado, um tanto esquematicamente, exposto como dilema ético-político de tríplice caminho. Lula, ao invés de rumar para a cicuta que foi destino de Sócrates, recusando o rumo do exílio, rumaria para o cárcere, sim, mas como um desvio para as urnas, onde enfim chegaria como candidato a presidente, como favorito à vitória no pleito nacional de Outubro de 22.
UMA ÉTICA DA REPARAÇÃO HISTÓRICA E DA RESPONSABILIZAÇÃO
No debate de 16 de outubro de 22, o primeiro do segundo turno, Lula expressou o que estava engasgado na garganta de multidões. Confrontou Bolsonaro por sua negligência na pandemia e afirmou que ele “carrega nas costas as mortes de 400 mil pessoas que poderiam ter sido evitadas”. Re-afirmou seu compromisso com a transparência que deve nortear todos os atos do poder público e disse que irá levantar o sigilo de 100 anos que Bolsonaro colocou em muitos dos atos de delinquência de seu desgoverno. Nós, que fomos a maioria nas urnas no primeiro turno, estamos com Lula também em virtude da firmeza com que ele sempre defendeu as pautas da Memória e da Verdade.
Um povo que esquece sua história corre o risco de repetir seus episódios mais sinistros. Para além disso: é um imperativo ético que os opressores paguem o que devem àqueles que oprimiram.
Não é à toa que foi no governo de sua sucessora, Dilma Rousseff, que se instalou no Brasil uma Comissão Nacional da Verdade. Hoje, o bolsonarismo logrou confinar a CNV a um assunto no qual ninguém mais toca, só que o lulismo, enquanto força social que transcende a forma partidária, mantem viva a chama duma multidão que pede por reparação.
Reparação por todos os danos que machos tóxicos e autoritários como Bolsonaro têm causado através da tragicomédia da história brasileira. Em nós, clamor por reparação!
Reparação pela opressão histórica que é perpetrada pelos supremacistas brancos no Brasil há tempos. Reparação pelos séculos de escravidão e também pelas décadas de brutal exploração fabril. Agora, através da voz de Lula, vem um clamor cidadão: “responsabilização!” diante da pandemia e dos delitos de agentes públicos eleitos cometeram, com o consequente desastre humanitário que inclui 700.000 óbitos (400.000 pessoas poderiam estar vivas).
Nas urnas, em prol do lulismo, vão pedidos por responsabilização daqueles agentes públicos que atentaram contra a saúde do povo que juraram representar! Traidores dos eleitores por quem deveriam zelar atentos a seus interesses e necessidades… mas não, na caquistocracia ultracapitalista do Brazil – made in USA, via Olavo e Friedman – o povo não cabe no orçamento e na favela só tem traficante. Que morram como moscas com a “gripezinha”…
Lula é o avesso desta necrose: é a voz da inclusão de mais vozes na polifonia de Pindorama. O cabra corajoso que se levanta contra a opressão. Que não recusa alianças por pequenas diferenças quando sente que há uma cosmovisão abrangente que o une aos divergentes. Um gigante no palco da História que só revela, em contraste, a baixeza ética, cognitiva e política de Bolsonaro. Lula é ferramenta de união na diversidade, responsabilização ética, penalização dos genocidas.
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Publicado em: 17/10/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
O problema maior de Lula é o PT, foram com muita sede ao pote nos dois mandatos dele e no mandato da Dilma.
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Jurema
Comentou em 27/11/22