A guerra também é de narrativas. Se há uma guerra quente nos territórios conflagrados, onde o sangue e as vísceras mancham a terra estremecida por bombardeios e tiroteios, ela é acompanhada por uma guerra de palavras e imagens, onde os cartoons e os editoriais, as breaking news e as manchetes de jornais, digladiam por supremacia sobre as consciências.
Como se constrói, nos EUA, uma base social significativa (ainda que rapidamente declinante) que apoie o sionismo israelense e a cumplicidade do governo Biden a ele, mesmo quando o exército de Israel acaba de assassinar impiedosamente mais de 4.000 crianças em um mês? Como se faz para que uma parcela enorme dos cidadãos estadunidenses não veja problema algum em 3 bilhões e 800 milhões de dólares (arrecados através de impostos dos cidadãos do país) sendo transferidos anualmente pelo USA para Israel?
A “Guerra Contra O Terror” precisa de uma justificativa cabível para as atrocidades que comete na luta contra o tão demonizado terrorismo – e daí emerge a tese de um “direito de auto-defesa”.
Difícil é entender como conciliar o termo tão asséptico e higiênico “auto-defesa” com o bombardeio de hospitais repletos de enfermos e de bebês. Com a destruição de padarias e o impedimento da entrada de comida em um território onde moram 2 milhões e 300 mil pessoas. Com a demolição de complexos residenciais inteiros e de campos de refugiados super-lotados, ambos repletos de civis. Com a matança, e a condenação a enterros em valas comuns, sobretudo de pessoas que nunca pegaram em armas para lutar contra o apartheid que os asfixia dia-a-dia por décadas-e-décadas.
É “auto-defesa” o nome que eles dão para uma ofensiva militar que causa mais de 10.000 mortos palestinos enquanto o número de soldados israelenses falecidos na ofensiva terrestre em curso não chega nem a 100. É “auto-defesa” quando bairros inteiros são destruídos numa hecatombe de destrutividades em que mortos e feridos palestinos ficam presos debaixo dos escombros. A melhor defesa é o ataque?
Israel e seus aliados constrõem uma estorinha com uma borracha mágica em mãos que pretende apagar o passado conhecido por poucos. Os sionistas são especialistas em terrorismo não apenas por combatê-lo mas por cometê-lo. Os sionistas foram terroristas antes de conquistarem a fundação de seu Estado e depois tornaram-se terroristas de Estado. Hoje quase ninguém se refere ao fato de que a própria fundação do estado de Israel foi conquistada por vários atos de terrorismo cometidos por judeus sionistas contra os prédios e o pessoal do Império Britânico que pretendia mandar no território.
Em seu livro Decolonization – A Very Short Introduction (Oxford, 2016), Dale Kennedy rememora os fatos ocorridos logo após a 2ª Guerra Mundial, quando os impérios europeus enfraquecidos pela carnificina que se desenrolou entre 1939 e 1945 viram uma onda montante de movimentos de libertação nacional nas colônias. No imediato aftermath da 2a GM, lutando contra o imperialismo britânico, os sionistas fizeram uso amplo e reiterado de terrorismo: bombardearam o Hotel King David, HQ dos brits em Jerusalem, em 22 de Julho de 1946, matando 91 pessoas; tentaram assassinar o secretário internacional britânico Ernest Bevin e outros oficiais do império inglês; sequestraram e enforcaram dois soldados ingleses etc. (KENNEDY, Dale, 2016, pg. 42). Foi por causa dos atos de terrorismo praticados pelos sionistas que o U.K. decidiu retroceder, abandonar sua pretensão mandonista na área e entregar à ONU, em 1948, o abacaxi de gerir a fundação de um novo Estado judeu na Palestina.
O sionismo foi terrorista para conquistar sua libertação nacional, mas esta se deu pela imediata imposição, pela força bruta, da Nakba 1 aos palestinos, expulsos do território onde Israel é fundado. A obliteração deste passado é uma das estratégias do poder neo-imperial da aliança USA-Israel – os dois países também querem obliterar a culpa que ambos têm no cartório no financiamento e incentivo, no passado por muitos esquecido, dos Talibans e do Hamas, dois filhotes-problema da referida aliança judaico-cristã yankee-sionista.
É evidente que a questão midiática deve ser levada em consideração na guerra de narrativas e na conquista de milhões de consciências que se manifestam dogmaticamente a favor de um genocídio que chamam de auto-defesa: o estadunidense médio se informa pela CNN ou Fox News, e não pela AlJazeera; acessa seu newsfeed através da mediação da Meta ou do X (plataformas censuradas pelos algoritmos corporativos) ao invés de acessar o site do Democracy Now; e cartunistas de direita se utilizam da caricatura islamofóbica para dizer que o Hamas utiliza crianças como escudos humanos e que, portanto, não é Israel que deve ser considerado culpado quando lança toneladas e toneladas de bombas sobre Gaza que têm como efeitos colaterais milhares de crianças, mulheres e enfermos falecidos ou feridos.
Recentecemente, o Washington Post publicou um cartum de Michael Ramirez que causou celeuma e que depois foi deletado pelo jornal – mas a Internet não perdoa e a gente tem os prints. Acusado de um racismo vil e de uma islamofobia sem máscaras, o cartum de Ramirez não é nada de novo neste front – na verdade, sua falta de criatividade é explícita quando o comparamos com outros cartuns quase idênticos que vem sendo martelados na cabeça do público com fins de lavagem cerebral nos últimos anos. Também não surpreende que Ramirez também bote lenha na fogueira da bestialização do inimigo – quando desenha ratos asquerosos chamados Hamas e Hezbollah escondendo-se na toca sinistra do Irã.
Chega a ser enjoativo de tão repetitivo: justifica-se a matança pois o inimigo terrorista é o demônio encarnado, é uma ratazana asquerosa, é um monstro que precisa ser esmagado, e se morrem crianças, idosos e enfermos no processo é por culpa também dos terroristas que os usam como escudos e que constroem seus túneis debaixo de escolas, hospitais e edifícios das ONGs de direitos humanos… E assim caminha “o primeiro mamífero a usar calças” e o único animal quase-racional capaz de dizer e fazer calcado no descalabro lógico e no escandâlo ético do “I can kill cause in God I trust”.
A mídia corporativa yankee-sionista também oculta este fato revelado por Rede Brasil Atual com a excelente manchete LUCRO SOBRE SANGUE: “ofensiva de Israel sobre Gaza impulsiona indústria bélica dos EUA”. “Apenas no ano passado, os estadunidenses controlavam cerca de 45% das exportações mundiais de armas”, lembra-nos a reportagem, “o que representa um potencial de venda quase cinco vezes maior do que qualquer outra nação, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo.”
Outro elemento forcluído sobre o 7 de Outubro é a motivação principal da maior e mais letal operação militar da história do Hamas em território israelense; como muitos analistas já disseram, não foi algo que surgiu “do nada”, out of the blue, mas decorre de décadas de opressão imposta contra os territórios palestinos ocupados e sob apartheid, e o Hamas tinha por intenção central a tomada de reféns que pudessem ser utilizados em uma negociação em prol da libertação nacional palestina a começar pela libertação dos detentos que Israel mantêm detrás das grades muitas vezes sem julgamento e em condições torturantes.
Neste momento, o Hamas informa que mais de 60 reféns foram mortos pelos próprios ataques israelenses em Gaza; quando o interesse do Hamas é mantê-los todos vivos e saudáveis para que possa ocorrer um “prisoner swap” (troca de prisioneiros) que o grupo jihadista tem por principal meta, ou seja, eles querem a libertação de todos os presos palestinos que Israel retêm (aprox. 7000 detentos), muitos deles detidos de maneira abusiva e ilegal, como suspeitos de partipação em grupos de libertação nacional na Palestina.
O massacre em curso decorre, na minha avaliação, da decisão do regime Netanyahu de evitar “capitulação” diante desta exigência: se Israel liberta os prisioneiros palestinos, e o Hamas liberta os reféns do 7 de Outubro, há chance de cessar fogo, trégua nas hostilidades, entrada de ajuda humanitária etc. É sobretudo Israel que sabota o compromisso que poderia levar a uma frágil e impermanente paz. Israel está preferindo o genocídio ao invés da libertação de palestinos que prendeu em suas penitenciárias.
Tudo indica que estamos diante da continuidade do processo de limpeza étnica da Palestina, analisado e exposto pelo historiador israelenese Illan Pape (recentemente entrevistado por Amy Goodman no Democracy Now); na atual ofensiva contra Gaza, o objetivo de Israel, denunciado pelo embaixador palestino na Assembléia Geral da ONU, é forçar a migração de mais de 2 milhões de palestinos para o deserto do Sinai no Egito numa nova Nakba (sobre o tema, consultar os infográficos do professor Luis Felipe Miguel no Instagram).
O massacre yankee-sionista em curso na Palestina suscita alguns dos maiores protestos de massa em solidariedade aos palestinos já ocorridos em Londres ou Washington. Em marchas que juntam mais de 100.000 cidadãos, denuncia-se com força a sangrenta cumplicidade dos governos do bloco anglo-saxão (EUA, UK, Canadá) e também da União Européia com a atual matança que o exército israelense promove com apoio e financiamento do Tio Sam. Em várias metrópoles européias também vemos a eclosão de grandes manifestações cívicas de repúdio ao genocídio.
No entanto é preciso ver com certa cautela e ceticismo a capacidade destes movimentos de rua de produzir mudança efetiva – quando escrevi sobre “We Are Many”, um filme de Amir Amirani que explora as raízes e o legado da maior manifestação política do século 21, tentei mostrar que o Fevereiro de 2003 fornece-nos uma lição de sobriedade sobre os limites das manifestações diante dos poderes imperiais. Nunca houve neste século um tsunami de discórdia cívica tão grande quanto aquele, que estima-se ter reunido 15 milhões de pessoas nas ruas de 700 cidades, e no entanto a invasão do Iraque – sob o pretexto fake de que havia ali bombas de destruição em massa (de acordo com a acusação do país que possui o maior arsenal de bombas de destruição em massa já amealhado por qualquer nação) – seguiu em frente com seu séquito infindo de hecatombes.
Por Eduardo Carli de Moraes
Amsterdam, 09 de Novembro de 2023
Publicado em: 09/11/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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