Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro.com
EYE FILMUSEUM Amsterdam, 24/11/2023
“Ela cuspia fogo pela boca e o apagava com os pés”, disse Jean Cocteau sobre a dançarina de flamenco La Singla. Figura misteriosa, um enigma em carne viva, ela não cessa de intrigar aqueles que assistem suas performances filmadas nos anos 1960, em sua juventude, quando transformou-se em sensação pela Europa afora por seus dons descomunais para a dança flamenca – ou melhor, para algo mais amplo, um campo onde mostrou-se genial: a expressão corporal.
Seus dons pareciam ainda mais magníficos por se tratar de uma mulher surda desde a primeira infância: Antoñita Singla teve meningite ainda menina e dançava espantosamente mesmo sem poder ouvir a música. Começou a falar muito tarde, quando tinha cerca de 10 anos, e era apelidada pelas más línguas de A Muda. Quando dançava, sua expressividade era exuberante, indomável.
O filme de Paloma Zapata, que teve sua prèmiere no Eye neste 24 de Novembro de 2023, é uma jornada fascinante de busca por esclarecimentos para enigmas que fazem de La Singla uma Esfinge De Carne e Ossos. Há o enigma da mirada, do olhar fascinante que fez dela uma figura das mais fotogênicas, ainda que num pólo extremamente oposto ao das fotos comerciais-publicitárias: La Singla, nas fotos, trazia o tormento estampado nos olhos, a angústia marcando a cara, e artistas como Dalí e Miró não tardaram em ver nela uma inspiração para suas próprias produções tendo-a por musa.
Ela participou do filme Los Tarantos, de 1963, que acabou indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, representando a Espanha – e assim foi catapultada para um sucesso precoce, também aproveitando-se de estar dividindo os holofotes com sua mentora e mestra Carmen Amaya. Não é de se desdenhar o impacto que Amaya, já idosa, agonizante, deve ter tido na pré-adolescente incapaz de falar palavra La Singla – que fez-se, depois de morta Amaya, sua sucessora imediata. E um cometa que passou rápido pelo céu antes de sumir de vista na vastidão da noite.
Triunfo e sucesso que não seriam duradouros. Apoteose e queda. O filme de Zapata fascina-se pela quantidade pequena de tempo em que este furacão ventou, em que este fogaréu queimou, e se põe em jornada para localizar La Singla, a desaparecida. Por certa de 50 anos, depois de um colapso nervoso-psíquico e uma crise de depressão, a dançarina havia sumido dos palcos e das capas de revista. Em 2023, o filme a traz de volta, em legado e em presença, inclusive falando em sua própria voz acerca desta singular jornada de vida.
Foi uma das experiências estéticas mais fortes e comoventes que eu já vivi. Não apenas o filme La Singla foi extraordinário em sua capacidade de captar uma vida em 100 minutos de projeção, como também foi muito acertada a escolha do Spanish Film Festival de Amsterdam de inserir música e dança ao vivo logo após os créditos finais.
Há algo de profundamente forte e transformador numa experiência estética em comum, e devemos tomar cuidado para que a proliferação dos smartphones não nos emburreça a ponto de perdermos contato com esta forma de inteligência coletiva que é um evento cultural como este. A sala de cinema estava lotada, fervilhante, e por quase duas horas todos estávamos em silêncio, sem olhar para as telinhas de celulares e seus flows infindáveis de feeds, e diante daquele telão gigante fomos levados a sondar o cerne de uma vida-de-artista.
Tocou-me fundo a especulação que o filme faz sobre o porquê da arte em carne-viva de Singla não ter podido durar. Estamos aqui diante de uma pessoa-artista que não foi capaz de sustentar por muito tempo uma carreira artística “profissional”. Trata-se de artisticidade indomesticada, não de métier. O filme parece construir a tese de que a arte dela era inseparável de sua tragédia vivida. Sua dança era expressão de sua tragédia, e uma expressão tão intensa e catártica que só podia ser transitória. It had to burn out and turn to ash. Lembrei-de de Kurt Cobain e pensei que é por um motivo similar que o Nirvana não pôde durar.
Outro elemento-chave, é evidente, é a rítmica. La Singla demonstrou ser uma gênia da rítmica, e as pessoas se surpreendem de encontrar esta virtude em uma pessoa surda. É claro que já ouvimos falar que a deficiência em um órgão dos sentidos pode fazer com que outro órgão se desenvolva, crescendo e se refinando como se por “compensação”. Acredito que a explicação racional mais plausível é que ela tenha desenvolvido um tato absolutamente extraordinário para os padrões dos reles mortais, uma capacidade de transformar toda a extensão de sua pele que recobre seu corpo numa superfície sensível às vibrações do ambiente.
O modo como ela golpeia o solo com a ponta dos tamancos expressa a genialidade rítmica, uma precisão e ímpeto que o filme atribui a uma “contagem interna” ou pulsação corografada que La Singla dominou com maestria ímpar, mas também expressa algo que beira a agressividade. Beira não – é agressividade do pé contra o solo, e que parece advir de razões extra-técnicas e para-além de acústicas. Ela tem que pisar com força para sentir as vibrações do solo; isto já a obrigou a talvez pisar com mais ímpeto do que a costumeira dançarina de flamenco. Mas o pisar com força, quase com raiva, mas sempre com rítmica, expressa alguma terapia misteriosa, alguma alquimia fascinante de sofrimento psíquico em carne dançante. É de uma beleza inefável.
Gosto muito da ritmanálise, esta nova ciência proposta pelo Lefebvre, e aqui caberia bem uma abordagem, que me sinto incompetente para fornecer agora, baseado na ritmanálise de La Singla. Dá jogo até meter um marxismo neste melting pot. Quando ela era ainda pré-adolescente, passando por perrengues nas perifas de Barcelona, a menina que mal falava uma palavra e sentia sua barriga roncar de fome começou a ser levada para onde a cultura popular acontece.
Ela foi discípula dos mestres anônimos da cultura popular e também foi impelida pelas condições econômicas difíceis, pelo monstro da fome a roncar em seu cerne, a dançar por umas moedas enquanto o flamenco era tocado. Também para descolar emergencialmente um ganha-pão o corpo dela fez-se esta vasta superfície de sensibilidade tátil e atenção vibrátil que a transformou neste genial enigma que dança.
P.S. – “Dance scholar <Danielle Goldman’s I Want to Be Ready: Improvised Dance as a Practice of Freedom>, which describes improvisation as a collusion of preparedness, intention, and surrender that ignites ‘practices of freedom’.” – KEVIN QUASIE, Black Aliveness, Duke Univeristy Press, pg. 22.
Publicado em: 25/11/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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