A Brincadeira é o livro de estréia do escritor tcheco Milan Kundera, escrito em 1965 e adaptado para o cinema em 1969 pelo cineasta Jaromil Jireš. Trata-se de um romance em 7 partes que utiliza 4 diferentes narradores em primeira pessoa (uma técnica sofisticada de variação de perspectivas também utilizada com maestria por Júlio Cortázar, por exemplo). Um livro que, através de um tecido de ironias e provocações, serve como um emblema das trevas do totalitarismo stalinista. Nele, o protagonista vai ao gulag por causa de uma piada que afrontava o otimismo obrigatório reinante. Uma denúncia da positividade tóxica avant la lettre?
Tendo como cenário a Tchecoslaváquia comunista, o romance vai tentar penetrar nas psicologias densas dos personagens, mas não se esquecendo de deixar pintado o ambiente sócio-histórico no background.
Em A Insustentável Leveza do Ser, mais célebre romance de Kundera, também estava lá, como pano de fundo, a Primavera de Praga de 1968, quando os tanques da União Soviética invadiram seu país. Já em A Brincadeira, temos outro raio-X do país apreensível através da trajetória de Ludvik Jahn, que retorna à sua cidade natal para um encontro amoroso com uma tal de Helena, a quem pretende utilizar como um meio para sua vingança contra um inimigo do passado, Pavel Zamenek, marido de Helena.
Ludvik havia sido militante do Partido Comunista em sua juventude estudantil mas acabou por se meter em encrencas ao enviar um cartão postal onde se liam as frases: “O otimismo é o ópio do gênero humano! O espírito sadio fede à imbecilidade! Viva Trostki!”.
Por estas frases, ele é duramente repreendido pelas autoridades do regime vigente que não acreditam que seja possível construir o socialismo sem crenças otimistas, que repudiam Trotsky e que não tem um pingo de senso de humor ou respeito à liberdade de expressão dos subversivos; Ludvik é expulso do Partido e da faculdade, enviado para uma espécie de prisão militar onde permanecerá encarcerado por muitos anos.
Seu retorno à sua cidade natal o envia para o reino nebuloso de sua memória, como se as “lembranças reprimidas impregnassem tudo o que nesse momento via ao redor”. Ele narrará então o terror de ter sido expulso de sua própria vida, jogado numa imensa Pausa no meio da existência, uma espera angustiante no meio dos “negros”, os inimigos do Sistema.
Ludvik confessa: “eu era aquele que tinha muitas caras”, modificando-se como camaleão de acordo com as circunstâncias. Vendo-se preso e renegado, reconhece: “viver como inimigo reconhecido daquilo que eu escolhera desde minha adolescência, daquilo que realmente contava para mim, me parecia desesperador”. É como se o Sentido da Vida por ele escolhido tivesse sido explodido devido a um cartão postal enviado meio que por brincadeira para chocar sua namoradinha Marketa.
Marcado com o rótulo de “traidor”, passa a viver no seio da despersonalização do quartel-prisão, e percebe-se atormentado pelo tempo. “Minha vida perdera sua continuidade”, diz. Um vão se abrira na vida, um buraco insignificante em que ele era agora obrigado a se meter. Como costuma ocorrer a prisioneiros, sente a erupção de um “violento desejo por mulher”, curado com prostitutas e sexo casual durante as poucas folgas que o quartel possibilitava.
Essa situação é um certo ultraje ao orgulho de Ludvik, que não pode mais acreditar-se livre: o fato de correr em direção às prostitutas não é algo escolhido, nada que seja resultado de “uma aspiração inquieta de conhecer tudo, de viver tudo (o nobre e o abjeto)”, mas sim a expressão do determinismo, da pressão das circunstâncias. “Fui mais objeto do que sujeito de minha história”, admite.
Numa de suas andanças pela cidade, em dia de folga, conhece uma mocinha simplória, Lucie, com quem viverá um amor platônico com um fim um tanto quanto desastroso. A idéia dessa mulher o auxilia na suportação do tempo no quartel (“os dias se tornaram degraus que eu subia para encontrar Lucie”) e é um objeto seguro para suas fantasiações.
Mas o macho no cio, quando se encontra com Lucie, vai direto ao ataque como se fosse um cão frente à carne de açougue. A garota recusa o sexo, em meio à violência tensa entre os dois, devido a traumáticas experiências de estupro que havia tido antes (“para Lucie, o corpo era horrível, e o amor era incorpóreo; entre a alma e o corpo instalara-se uma guerra silenciosa e inflexível”), e os dois se separam.
Ludvik confessa-se praticamente incapaz de amar, atormentado por imagens paranóicas onde os jurados levantam suas mãos e o condenam à destruição. “É difícil viver com pessoas prontas a nos mandar para o exílio ou para a morte, é difícil fazê-las íntimas, é difícil amá-las.”
Essas imagens paranóicas podem ser vistas como um certo argumento Kunderiano – com afinidades com aquilo que se veicula também nas obras de Soljnitsin, Koestler ou Orwell – contra a excessiva vigilância de todos por todos dentro da sociedade stalinista, que pretende abolir ao máximo a dimensão privada. Não há o que nós chamamos de “privacidade” numa sociedade comunista “totalitária-stalinista”: tudo é de todos, todos são vigiados por todos, todos suspeitam de todos. A sensação de estar sendo observado e julgado é uma constante na consciência de Ludvik.
O tempo “presente” da história focaliza Ludvik de volta a sua cidade natal, após sair do quartel prisão, engajado numa brincadeira macabra de vingança. Odiava profundamente Pavel Zemanek, um dos seus carrascos, e agora iria comer a mulher dele, mesmo achando-a bastante antipática. Com toda uma série de falsidades, cinismos e atuações, conquista sua presa. Como diz o clichê, “o feitiço se volta contra o feiticeiro”.
Zemanek não se sente nem um pouco ofendido com a brincadeira: odiava a mulher e os dois já estavam emocionalmente separados há muito tempo. O ato de Ludvik se transforma em um favor que ele faz para a produção da efetiva separação do casal que o próprio Zemanek já desejava. Com um incômodo peso em suas costas – uma mulher cegamente apaixonada – Ludvik irá, um pouco repugnado por si mesmo, abandonar sem misericórdia a Helena. Ela tentará se suicidar, sendo salva por pura sorte de ter tomado laxantes ao invés de outras pílulas mais perigosas. Risíveis amores.
Por fim, Ludvik percebe quão ridículo tinha sido ao tentar se vingar de alguém que cometera contra ele um “crime” há vários anos atrás. Quando se reencontra com Zemanek, percebe o quanto este estava mudado, sendo que na cabeça de Ludvik “ele permanecera petrificado”: “eu lhe negava por completo o direito de ser uma pessoa diferente daquela que eu conhecera”. Percebe que tinha vivido preso ao passado, preso ao desejo insaciável de vingar-se, enjaulado no ressentimento. “O elo com o qual quero ligar-me ao passado que me hipnotiza é a vingança”, confessa, para logo perceber que “adiada, a vingança se transforma em engano, em religião pessoal, em mito cada dia mais afastado de seus próprios atores”.
O personagem Kotska parece ter sido introduzido na história mais no sentido de criar um panorama histórico e fomentar uma discussão política. Ludvik representa um sujeito mais individualista, mais racional, mais materialista, que entra em um combate de idéias contra Kotska, religioso, mais idealista, que não faz coincidir comunismo com ateísmo.
É como se os dois personagens fossem um retrato de uma luta interna entre os comunistas a respeito do sistema político a ser implantado e dos meios a alcançá-lo. Kotska irá sustentar que o período revolucionário foi um tempo de “grande fé coletiva”, onde o homem era habitado “por sensações muito próximas daquelas que a religião proporciona: renunciava a seu eu, a seu interesse, a sua vida particular, por alguma coisa de mais elevado, de suprapessoal”. Aquele Ideal no Além permanecia.
O marxismo, que sempre se proclamou ateu e materialista, foi transmutado numa espécie de religião para ateus, que não podia deixar de se sedimentar na busca desse Além, com todo o otimismo e esperança que isso implica; Comte-Sponville, por exemplo, faz críticas semelhantes a certas vertentes mais “idealistas” do marxismo, que, segundo ele, não conseguem escapar completamente do idealismo utópico que sacrifica a lucidez no altar dos amanhãs cantantes.
Outro dos narradores da história é Jaroslav, um antigo amigo de Ludvik, músico, que serve como uma espécie de ensaísta tecendo comentários a respeito da arte popular e do folclore na Tchecoeslováquia posterior ao Fevereiro de 48, data da subida ao poder do comunismo. Diz ele que “a canção popular nasce de uma maneira diferente da de um poema erudito. O poeta cria a fim de se expressar, de dizer aquilo que nele existe de único. Pela canção popular, ninguém procurava se sobressair, mas sim unir-se aos outros”.
O que gosto em Kundera é esse fator radicalmente anti-kitsch, essa atenção sempre cuidadosa em não ficar vendendo consolos, em não ficar colocando falsos enfeites no mundo. Está lá em A Insustentável Leveza do Ser toda uma reflexão sobre o kitsch que equivale, a meu ver, a um tratado de estética, de ética e política que Kundera pratica em toda sua obra, como se propusesse que a maneira mais fácil de realizar péssima arte é querer torná-la palatável e agradável a um certo “gosto do homem médio” e para isto investir nos dogmas da positividade tóxica e da obnubilação proposital dos aspectos trágicos, grotescos e obscenos de nossas existências.
Quando vou à arte, estou à procura, principalmente, da verdade, preferencialmente nua e crua – e especialmente aquelas que não consigo ver sem o auxílio do artista corajoso o bastante para desnudá-la em sua obra. A arte como instrumento óptico, como Proust dizia. No caso de Kundera nesta sua estréia como escritor, através de um texto repleto de ironia e demolidor dos otimismos fáceis, ele fala seriamente, apesar de suas brincadeiras, sobre a tragicidade da vida humana. Esta tragicomédia onde tanto daquilo que fazemos é irreparável, tantos de nossos ressentimentos são risíveis e inúteis, e tanto daquilo que lembramos também é tão fugaz e passageiro quanto os instantes vividos.
LUDVIK: “…a maioria das pessoas se entrega à miragem de uma dupla crença: acredita na PERENIDADE DA MEMÓRIA (dos homens, das coisas, dos atos, das nações) e na POSSIBILIDADE DE REPARAR (os atos, os erros, os pecados, as injustiças). Uma é tão falsa quanto a outra. A verdade se situa justamente no oposto: tudo será esquecido e nada será reparado. O papel da reparação (tanto pela vingança quanto pelo perdão) será representado pelo esquecimento. Ninguém irá reparar as injustiças cometidas, mas todas as injustiças serão esquecidas.”
JAROSLAV: “Todas as situações capitais da vida acontecem uma vez, são sem retorno. Para que um homem seja homem, é preciso que esteja plenamente consciente desse não-retorno. Que não trapaceie. Que não faça de conta que não sabe de nada. O homem moderno trapaceia. Esforça-se por contornar todos os grandes momentos que são sem retorno e por passar assim sem sofrer do nascimento até a morte.”
Eduardo Carli de Moraes
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Publicado em: 23/11/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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