A poética de José Paulo Paes
– por Eduardo Carli de Moraes –
POÉTICA
Não sei palavras dúbias. Meu sermão
Chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão.
Com duas mãos fraternas, cumplicio
A ilha prometida à proa do navio.
A posse é-me aventura sem sentido.
Só compreendo o pão se dividido.
Não brinco de juiz, não me disfarço de réu.
Aceito meu inferno, mas falo do meu céu.
Epigramas, 1958
ESBOÇO DE RETRATO BIOGRÁFICO
“José Paulo Paes (1926-1998) era um homem avesso a ênfases – no escrever, no falar, no proceder. Detestava chamar atenção, e seu comportamento discreto era, em um homem constante, talvez a constância predominante. Em situações sociais parecia se ocupar sobretudo com sua bengala…”1
É o que escreve Rodrigo Naves nas primeiras linhas de seu prefácio ao Poesia Completa de José Paulo Paes, lançado em 2008 pela Companhia das Letras, dez anos após a morte do poeta. Este livro reúne todos os 13 volumes de poesia que Paes escreveu, desde O Aluno (de 1947) até o póstumo Socráticas (de 2002).
Uma certa “modéstia” e aversão à grandiloquência é frequentemente destacada por aqueles que escrevem sobre o poeta nascido em Taquaritinga, interior de São Paulo:
“Na poesia como na vida, José Paulo Paes optou sempre pela discrição e o comedimento de quem desconfia das exaltações visionárias e das certezas inabaláveis. Ao seu primeiro livro, deu o título O Aluno. Seu último poema, escrito na véspera da morte, chama-se ‘Dúvida’. Ser poeta para ele era um modo de continuar até o fim sua busca de aprendiz.”2
É como se Paes, por detrás de seus versos, nos aparecesse a assoviar os versos da canção de Gonzaguinha: “cantar e cantar e cantar / a beleza de ser um eterno aprendiz…”.
Com fina auto-ironia e perfeita compreensão de que o humor menos ofensivo é aquele em que o piadista se inclui na piada, José Paulo Paes dizia, por exemplo, ser o poeta mais importante de sua rua. Mas fazia a ressalva: “Mesmo porque a minha rua é curta”. E não ousava se comparar aos grandes mestres da poesia nacional: “quando penso que alguém da grandeza de Manuel Bandeira se considerava um poeta menor, que mais posso ser senão um mínimo poeta?”3 E nada simboliza melhor esta simplicidade e “estoicismo” que o caracterizam, leves e bem-humorados, que a inscrição que imaginou para sua lápide:
AUTO-EPITÁFIO Nº 2
“pra quem pediu sempre tão pouco
o nada é positivamente um exagero.”
[Socráticas, 2002. Pg 506 de Poesia Completa]
Este caráter “reservado”, semi-recluso, de homem que foge aos paparazzi por julgar-se pouco fotogênico e que se sente condenado a ser “outsider”, é apontada como uma das suas características mais marcantes pelos que o conheceram e escreveram sobre ele. Em seu artigo “O Livro do Alquimista”, Alfredo Bosi lembra que, com seu livro de estréia, de 1947,
“José Paulo Paes entrava na poesia contemporânea pela estrada real da angústia, do mal-estar que o escritor sensível e diferenciado sente e ressente ao tomar consciência da sua posição de excluído, de ‘inútil’, de esquerdo, a que restaria apenas exercer o dom de observador irônico. Mas de quem é aprendiz o nosso aluno de 1947? De magros marginais que fizeram da gaucherie a mola da sua mestria formal: de Carlitos, de Drummond.”4
A “humildade” e postura “low-key”, que muitos descrevem como características essenciais da persona de Paes, não devem nos fazer esquecer que o poeta também é reconhecido por suas “meninices” e fagueirices, onde é frequente um re-despertar da infância que beira um Quintana. Foi célebre por seu desprendido senso-de-humor, por vezes de uma fina ironia machadiana, outras de um deboche mais popularesco. Compôs vários poemas-piada extremamente breves. Em seu Livro de Provérbios, dessacralizou um amontoado de ditos populares, tal como: “quem cala consente (e no cu logo o sente)”. Em seu “Cronologia”, arriscou uma “capetice” digna de Duchamp pondo um bigodinho na Monalisa: “A.C. / D.C. / W.C.” E seu brinde de Dia das Mães não é menos traquinas: “à tua!”
José Paulo Paes ousou molecagens à la Oswald de Andrade; fez poemas em homenagem a Maiakóvski, Rimbaud e Byron; aventurou-se em sintéticas parábolas políticas à la Brecht; e foi mestre da “concisão lapidar” própria de “epigramas, epígrafes e epitáfios”, como enfatiza Bosi.5 Esta sua predileção pela concisão e pelo minimalismo, aliás, fica bem expressa neste “poeminha” tão eloquente apesar de sua brevidade e que parece concentrar duas “fórmulas” do fazer poético de José Paulo Paes, justamente o poeta da concisão com ciso e da prolixidade atirada ao lixo:
POÉTICA
conciso? com siso
prolixo? pro lixo
[Olho no Umbigo, 1988. Pg. 289 de Poesia Completa.]
Certas similaridades são discerníveis em certas criações de Paes em relação à geração da Poesia Concreta. O célebre poema de Décio Pignatari em que o slogan “beba coca-cola” desfaz-se em “cloaca” parece ter um “irmão de espírito” no poema de Paes em que o banqueiro, que vive na base do “negócio”, do “ego”, do “ócio” e do “cio”, acaba por gerar, na somatória sarcástica que o poeta lhe impõe, o resultado “zero”.
Também o poema-fotografia em que Paes expõe uma placa de trânsito paulistana, onde se lê “Liberdade Interditada”, traz muito do espírito concretista.
“Augusto de Campos apontou essa proximidade [de J.J. Paes], sem ortodoxia, com os concretos, frisando a descendência de Oswald e do poema-piada modernista, levada ao extremo, e a afinidade com o ‘salto participante’ concretista, em vivo contraste com a seriedade estetizante do lirismo de 45.”6
Apesar de tão versátil e ousado, José Paulo Paes não é um poeta brasileiro tão conhecido e celebrado como os “maiorais do verso” em nosso século 20, panteão que costuma ser ocupado por nomes como João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Cecília Meirelles, Jorge de Lima. A razão de sua relativa “obscuridade” talvez se explique, segundo Carlos Felipe Moisés,
“por sua aversão à chamada ‘vida literária’, aquela aura mundana, feita de vaidades exacerbadas, golpes de oportunismo e tráfico de influências, que cerca o objeto propriamente literário que é o livro impresso. Parte por temperamento, parte por princípio, José Paulo sempre se manteve à distância das confrarias do elogio mútuo, responsáveis por tanta glória efêmera, preferindo arcar com o ônus de uma atividade rigorosamente ética. Para ele, a recepção da obra literária deve prescindir da promoção publicitária, sobretudo a autopromoção; o livro deve oferecer-se ao leitor tal como é e não como o estrelismo do autor e as injunções do momento o imponham ao imediatismo do consumo. ”7
Paes nunca foi um “acadêmico”, mas foi um genuíno “homem de letras”. Foi leitor e comentador cuidadoso de muitos outros autores. “Traduzindo e comentando os maiores poetas do nosso e de outros tempos (Kafávis, Auden, William Carlos Williams, Seféris, gregos, dinamarqueses “e tutti quanti”), não excluía tampouco Aretino e os eróticos, representantes da vertente mais instintiva do homem e avesso do lirismo amoroso desencarnado”. 8
Trabalhou na editora Cultrix por cerca de 14 anos. Traduziu inúmeras obras de outros autores – como Lawrence Sterne, Lewis Carroll, Nikos Kazantzakis, Paul Éluard, Dino Buzzati, Hölderlin, Huysmans, Edgar Allan Poe, Rainer Maria Rilke, Gertrude Stein, Leopardi, Edmund Wilson, entre outros 9. “Sem ter nutrido pretensões professorais, José Paulo Paes mostrou que estética e ética não rimam à toa”, escreve sobre ele Francisco Quinteiro Pires10.
Apesar de ter gozado longa vida, sofreu por anos com um grave problema circulatório, chamado aterosclerose, que acabaria por causar uma gangrena em sua perna esquerda e sua subsequente amputação.
“A nobreza de sua personalidade”, sugere Naves, “encontrou expressão no sorriso amargo com que enfrentou o infortúnio, sardônico minimalismo anatômico proposto pelos cruéis imprevistos da vida: “Pernas para que vos quero? (…) Pernas? Basta uma.” Ou o ritmo da marcha na pauta do humor negro: “esquerda direita / esquerda direita / direita / direita.”11
Sua esposa Dora, a quem são dedicados grande parte de seus livros, e que o acompanhou até o fim da vida, dando-lhe força e alento, é sua musa de carne-o-osso, bem diferente das diáfanas Beatrizes e Dulcinéias de Dantes e Dons Quixotes… É sua “cúmplice na inocência”, como escreveu Paes na dedicatória a ela que precede A Poesia Está Morta Mas Juro Que Não Fui Eu, de 1988. A ela também é dirigida a “Canção Sensata”, um de seus mais belos poemas:
“Dora, que importa
O juiz que escreve
Exemplos na areia,
Se livres seguimos
O rastro dos faunos
A voz das sereias?
Dora, que importa
A herança do avô
Sob a pedra, nua
Se do ar colhemos
Moedas de sol,
guirlandas de lua?
Dora, que importa
Esse frágil muro
Que defende os cautos,
Se além do pequeno
Há horizontes loucos,
De que somos arautos?
De maior beleza
É, pois, nada prever
E à fina incerteza
De amor ou viagem
Abrir nossa porta
Dora, isso importa.”
[Cúmplices, 1951. Pg. 59 de Poesia Completa].
SÓCRATES EM TOM MENOR
Alfredo Bosi, no prefácio que escreve para o livro póstumo de seu amigo José Paulo Paes, Socráticas (de 2002), lembra de uma convivência de 35 anos marcada por “encontros amiudados, conversas sem fim, descobertas, leituras e paixões comuns, afinidades, convergências e, fazendo parte do ritual da amizade, tácitas distâncias”. E destaca uma “fé compartilhada”:
“Presente, sempre, a crença comum na necessidade cada vez mais premente da Poesia que, no entanto, o seu estóico ceticismo sabia ser a “voz clamante no deserto” no meio da opulência obscena de signos e coisas sem sentido que atulham a cidade pós-moderna. Desta cidade poenta e ruidosa José Paulo Paes quis e soube ser uma espécie de Sócrates em tom menor: a consciência vigilante que interroga e incomoda, ao encalço de uma verdade tão ácida e aguda que não poupa nada nem ninguém, nem mesmo o próprio eu que a busca como um Pascal sem esperança, en gémissant.”12
Bosi destaca que as duas obras publicadas por Paes na década de 1950, as Novas Cartas Chilenas (1956) e os Epigramas (1958), “são poesia absolutamente política”.
“As Cartas foram ditadas sob o signo da História, ou melhor, de uma contra-História que não cessa de exercer os seus direitos de crítica ao passado à luz de uma esperança, mínima embora, no futuro.” (op cit, pg. 159).
Neste presente trabalho, é nossa intenção fazer uma incursão pelos poemas de Paes em que sua veia crítica e irônica se manifesta de modo mais ferino, especialmente no trato com episódios históricos brasileiros. Em seu Novas Cartas Chilenas, o poeta pousa imaginariamente na época dos alfarrábios e das cartas a el-Rei que demoravam meses para ser entregues. E faz a crônica cáustica do imperialismo português caindo na Terra do Pau-Brasil e trazendo, junto com a cruz cristã, a escravidão, a exploração, a monocultura exploradora, dentre tantos outros males conhecidos do colonialismo.
Não surpreende que um “miasma de esgoto” apareça já na “Ode Prévia”, primeiro poema do livro, e logo ali na segunda estrofe. Pois não é a faceta “idílica” e nacionalista que protagonizará a jornada histórico-poética de Paes, mas muito mais um olhar cáustico e lúcido de quem parece ter aprendido todas as boas lições de Sérgio Buarque de Hollanda e Florestan Fernandes. Paes passeia seu vasto conhecimento histórico e deslumbramento poético por vários episódios da História nacional, inclusive os mais pitorescos, tal qual o devoramento do bispo Dom Pedro Fernandes Sardinha (1496-1556) por índios caetés:
L’AFFAIRE SARDINHA
O bispo ensinou ao bugre
Que pão não é pão, mas Deus
presente em eucaristia.
E como um dia faltasse
Pão ao bugre, ele comeu
O bispo, eucaristicamente.
(Poesia Completa, pg. 81)
Este poema de Paes possui um tempero à la Oswald de Andrade, uma certa traquinagem juvenil característica de certos artistas Geração de 1922. Mais humorístico e irônico do que grave ou queixoso, o breve “poema-anedota” parece nos revelar um autor que vê mais graça do que tragédia no fato narrado.
Como se os indígenas, que o pobre bispo com sobrenome de peixe deve ter considerado pouquíssimo civilizados antes de ser devorado, tivessem praticado algo mais do que um ritual antropofágico: algo como uma sagaz jogada de xadrez na batalha cultural, invertendo momentaneamente a balança de poder entre as ideologias, uma delas então reinante (a católica) e a outra reprimida (a religiosidade nativa, endêmica).
É como se o poeta destacasse um dos episódios mais eloquentes da nossa história a simbolizar a dificuldade de aceitação do dogmatismo imposto de cima pelos portugueses, que chegaram à esta “Terra Virgem” na crença ingênua de que, frente a estes nativos, “qualquer cunho neles se há de imprimir” (como diz “A Carta”, poema em que Paes adota o tom de Pero Vaz de Caminha em sua missiva à metrópole [O.C., pg. 77]).
Lembremos uma das mais célebres “molecagens” oswaldianas e constatemos se não há uma espécie de “espírito” comum aos dois poemas!
Erro de português
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
(OSWALD DE ANDRADE)
Este paralelo entre Paes e Oswald é frisado também por Wilson Martins, que nos lembra, porém, que seria indigno considerar Paes um mero imitador ou continuador da poesia do autor do Serafim Pontegrande:
“Admirador de Oswald de Andrade, em quem reconhecia um espírito afim, uma parte de sua obra denuncia o DNA oswaldiano, mas é muito mais do que isso, ocupando, como diz Davi Arrigucci Jr., ‘um lugar ímpar no panorama da lírica brasileira desta segunda metade do século.’ E até no serpentário da vida literária: não se conhecem, contra ele, os venenosos comentários dos caros colegas, assim como ele próprio foi indiferente, por temperamento, ao jogo das rivalidades e estratégias carreiristas”13.
IMPERIALISMO COLONIALISTA POSTO EM XEQUE
O imperialismo colonialista, severamente questionado, é um tema que tinha feito sua entrada no século vinte com uma obra de peso de Joseph Conrad, No Coração das Trevas, publicado pela primeira vez em forma de romance em 1902, apesar de ter sido folhetinado a partir de 1899. Retratando a ação dos belgas no Congo (em sua adaptação para o cinema, em Apocalypse Now, Francis Ford Coppola adaptaria o enredo para o Vietnã dos anos 1960), Conrad escreve:
“Não eram colonizadores; a administração deles era apenas exploração, nada mais, eu desconfio. Eram conquistadores, e para tal basta a força bruta… nada do que se gabar, pois a força é um acidente que decorre da fraqueza dos outros. Agarravam o que podiam, pelo simples fato de estar ali para ser agarrado. Era apenas roubo somado à violência, agravado por assassinato em larga escala, homens avançando às cegas… como convém àqueles que enfrentam as trevas. A conquista da Terra, que no mais das vezes significa tomá-la daqueles que têm a tez diferente e narizes levemente mais achatados do que os nossos, não é coisa bonita, se a examinarmos de perto…”14
Paes, em seu olhar sobre o colonialismo, parece incumbido da missão poética de galhofar daqueles portugueses “incumbidos da missão celestial de civilizá-los” (para usar uma expressão de Conrad, op cit., pg 29). Outros personagens históricos portugueses entram como matérias-primas na composição poética das Novas Cartas Chilenas, mas sempre irrompem com um certo caráter patético, lunático, quase absurdo. É o caso da rainha portuguesa Maria I (1734-1816), aquela que havia sido apelidada pelos lusitanos de “A Pia”, mas que ganhou dos brasileiros o epíteto de “A Louca”, especialmente pela demência que a acometeu nos últimos 24 anos de sua vida, depois que seu primogênito faleceu após a régia mãe ter se recusado, por razões religiosas, a vacinar-lhe contra a varíola. Maria, “dita louca”, surge em “Os Inconfidentes” como aquela que “houve por bem
Esmagar a conjura que envenena
O generoso povo desta Vila,
Fazendo-o sonegar o justo quinto
Senhorial de cem arrobas de ouro,
Devidas à Coroa, em cuja Corte,
Terminada a pilhagem sobre as Índias,
Rareia arminho & vinho, triste fato
Que tocará decerto o coração
Dos súditos fiéis e, ao mesmo tempo,
Valendo-se do ensejo, oferecer
Aos maus exemplo e aos bons bom espetáculo
De circo, porque o pão sempre se adia,
Ordena assim a todos assistirem
Ao mais raro massacre deste século.”
(POESIA COMPLETA, pg. 95)
A Coroa Portuguesa, como fica claro somente por estes versos, é alfinetada com uma mordacidade raras vezes vista num poeta brasileiro. Tais diatribes irônicas soam semelhantes àquelas que José Saramago (1922-2010) reuniu em seu Memorial do Convento, em que o autor português, também muito crítico em relação aos atos passados do Império Português, faz uma crônica devastadora de toda a patetice e viciosidade de reis, bispos e outras autoridades lusitanas durante a exploração da colônia do além-mar.
Uma certa “ênfase” em episódios históricos como o Quilombo de Palmares e a Inconfidência Mineira apontam a predileção de Paes, não escancarada mas discernível como pano de fundo, pelos levantes de despossuídos e insatisfeitos da colônia contra a metrópole. Os inconfidentes mineiros, conjurados sob a chefia de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, recebem do poeta um tratamento mais condigno com seu status de heróis nacionais na luta pela independência. Entoa Paes:
“São poucos, mas loucos.
Pregam liberdade
Em plena praça ao povo,
Que dela se embriaga
Como se provara
Algum vinho novo.
Reúnem-se, furtivos,
Sob o manto das trevas
E, na causa que enleva,
Esquecem todo risco,
Tramando contra as leis
De Deus e do Fisco.”
(POESIA COMPLETA, pg. 93)
Quando trata dos revoltosos de Palmares, apela para uma
“Negra cidade
Da felicidade,
Onde a chaga se cura,
o grilhão se parte,
O pão se reparte
E o reino de Ogum,
Xangô, Olorum,
Instala-se na terra
E o negro sem dono,
o negro sem feitor,
Semeia seu milho,
Espreme sua cana,
Ensina seu filho
A olhar para o céu
Sem ódio ou temor.
Negra cidade
Dos negros, obstinada
Em sua força de tigre,
Em seu orgulho de puma,
Em sua paz de ovelha.”
(POESIA COMPLETA, pg. 89)
Não faltam na algibeira vocabular de Zé Paulo uma profusão de termos que remetem ao Brasil colonial, e que podem encantar o leitor moderno tanto quanto as gírias nordestinas ou sertanejas que colorem Morte e Vida Severina (Cabral), Grande Sertão: Veredas (Rosa) ou A Pedra do Reino (Suassuna). Voilà alguns espécimes recolhidos: “galeotas reais”, “ferrugem nos grilhões”, “cama de plumas”, “fidalgo de estirpe”…
Decerto que Paes passeia pelo passado colonial brasileiro um olhar crítico e ferino, caminhando pelas “vielas da paródia” e dando livre passagem à “malícia do parodista” e ao “veneno do sátiro”, para usar as expressões certeiras de Bosi (op cit, pg. 159). Não há nem sinal de descerebrada celebração patriótica; tanto que Paes cunhou, em um de seus mais sarcásticos poemas, todo tecido de neologismos cheios de sarcasmo, termos como “patriotários” e “suicidadãos”.
“Não há mais espírito ‘pau-brasil’ nessa releitura das fontes luso-coloniais, nem lugar para ilusões tropicalistas. As Novas Cartas reescreve a história dos colonizadores, mas com os olhos postos nas vexações sofridas pelos colonizados” (Bosi, op. Cit, pg. 160).
A “fácil riqueza de poucos” e a “árdua pobreza de muitos”, à qual ele alude no poema “RESSALVA” [Epigramas, 1958], parecem não cessar de incomodá-lo e indigná-lo por onde quer que seu olhar de poeta passeie. E por trás de seus sarcasmos, sempre contra alvos deveras merecedores de tomates, sempre se pode sentir o murmúrio de um riacho onde canta um homem simples e lúcido, que só deseja
“Um mundo mais justo,
Onde o pão não custe
Essa cabeça baixa,
Esse rubor ao insulto,
Esse olhar melancólico
A todas as escadas.”
[DO MECENANATO, Poesia Completa, pg. 137]
Quando Paes foca seu olhar sobre a História Brasileira, pois, é sempre com um viés de fazer justiça, ainda que tardia, aos despossuídos e humilhados. Atravessa nosso passado a denunciar descalabros e testemunhar a favor do povo sofrido.
“O itinerário começa no escrivão Caminha, nos senhores de engenho e seus feitores para chegar aos rebeldes esmagados nos Palmares e ao drama da Conjuração Mineira”, pontua Bosi. “Muito antes que vingasse a recente proposta acadêmica de fazer História ‘pela ótica dos oprimidos’, o poeta inconformado dos anos 50 relia os momentos de conflito do passado brasileiro e riscava com tinta rubra no seu ‘Calendário’ as datas em que a voz do povo se fizera ouvir mais forte. (…) A palavra escarninha liberta o leitor das mentiras oficiais para melhor trazer à luz a nobreza obscura dos derrotados.” (Bosi, op cit. p. 160-61).
Mas não imaginemos Paes como um poeta com o nariz afundado nos livros de história mofados, mumiógrafo que só lida com assunto morto e tretas milenares hoje já extintas, nem ligando para as malvadezas hoje presentes. “Vendo a máquina do mundo sob suspeita, o poeta não se entorpeceria nos sonhos dos anos 60, que envolveram de auras fetichistas a sociedade industrial de padrão norte americano e ergueram hosanas aos triunfos da nova comunicação de massa.” (Bosi, op cit, 163).
Veja-se, por exemplo, em poemas mais recentes, com que ironia mordaz Paes recobre certas “instituições” da nossa atual cultura de massas: a televisão, a música pop comercial e o shopping center:
Videodrome, de David Cronenberg
À TELEVISÃO
Teu boletim meteorológico
me diz aqui e agora
se chove ou se faz sol.
Para que ir lá fora?
A comida suculenta
que pões à minha frente
como-a toda com os olhos.
Aposentei os dentes.
Nos dramalhões que encenas
há tamanho poder
de vida que eu próprio
nem me canso em viver.
Guerra, sexo, esporte
me dás tudo, tudo.
Vou pregar minha porta:
já não preciso do mundo.
[Poesia Completa, pg. 402]
* * * * *
AO SHOPPING CENTER
Pelos teus círculos
vagamos sem rumo
nós almas penadas
do mundo do consumo.
De elevador ao céu
pela escada ao inferno:
os extremos se tocam
no castigo eterno.
Cada loja é um novo
prego em nossa cruz.
Por mais que compremos
estamos sempre nus
nós que por teus círculos
vagamos sem perdão
à espera (até quando?)
da Grande Liquidação.
[Poesia Completa, pg. 403]
* * * * *
DUAS REFÁBULAS
Cigarra, Formiga & Cia
Cansadas dos seus papéis fabulares, a cigarra e a formiga resolveram associar-se para reagir contra a estereotipia a que haviam sido condenadas.
Deixando de parte atividades mais lucrativas, a formiga empresou a cigarra. Gravou-lhe o canto em discos e saiu a vendê-los de porta em porta. A aura de mecenas a redimiu para sempre do antigo labéu de utilitarista sem entranhas.
Graças ao mecenato da formiga, a cigarra passou a ter comida e moradia no inverno. Já ninguém a poderia acusar de imprevidência boêmia.
O desfecho desta refábula não é róseo. A formiga foi expulsa do formigueiro por lhe haver traído as tradições de pragmatismo à outrance e a cigarra teve de suportar os olhares de desprezo com que o comum das cigarras costuma fulminar a comercialização da arte.
[Socráticas, BETA, pg. 490]
Pode ser até verdade, como diz o início do poema “Palmares”, que “o tempo apaga a mancha de sangue no tapete” (P.C., pg. 87). Mas o poeta não parece afim de se calar frente a esta nódoa que enxerga, ao vislumbrar o passado, e escreve como se quisesse garantir aos algozes que não irá oferecer a eles o presente do esquecimento dos crimes cometidos, mas que irá relembrá-los com a ânsia de que quem nunca quer vê-los repetidos.
Aí se explique, talvez, a epígrafe que Paes escolheu para seu Novas Cartas Chilenas: “Dois são os meios por que nos instruímos: um quando vemos ações gloriosas que nos despertam o desejo de imitação; outro, quando vemos ações indignas, que nos excitam o seu aborrecimento” (Critilo). Em suas poesias, José Paulo Paes reuniu de nossa história colonial muitas instrutivas ações que, por seu horror ou encanto, despertam no leitor a empatia ou a repulsa, o nojo ou o comovimento, mas jamais a apatia e a indiferença.
O Brasil da “feijoada, marmelada, goleada e quartelada” passa pelo crivo de um humor oswaldiano, uma ironia machadiana, uma concisão poundiana, um tropismo político esquerdista quase brechtiano, de modo que o país ressurge para o leitor destas férteis criações de José Paulo Paes com uma imagem recriada e rediviva.
Como aponta Davi Arriguci Jr., “pode-se ler a poesia de José Paulo Paes, breve e aguda a cada lance em sua tendência constante ao epigrama, como se formasse um só cancioneiro da vida toda de um homem que respondeu com poemas aos apelos do mundo e de sua existência interior. (…) Como se o poeta pela lucidez vigilante e a recusa do supérfluo e a todo sentimentalismo fosse capaz de aprender do modo de ser da pedra uma lição ao mesmo tempo de ética e poética.” 15
Paes, que soube enxergar, tal como Ezra Pound, a poesia como “forma de condensação”, foi também um homem que sabia ser “a posse uma aventura sem sentido” e que “só compreendia o pão se dividido”.
…
REFERÊNCIAS
———————
1 NAVES, Rodrigo. Um Homem Como Outro Qualquer. Artigo para a Revista Piauí, número 21, de junho de 2008, na sessão “Memórias Literárias”, republicado como prefácio do Poesia Completa (Cia das Letras, 2008).
2 PAES, José Paulo. Poesia Completa. “Orelha”.
3 ARRIGUCI JR, Davi. Agora É Tudo História, epígrafe. In: Outros Achados e Perdidos (Cia das Letras).
4 BOSI, Alfredo. Céu, Inferno – Ensaios de crítica literária e ideológica. Editora 34, 2003, 2a ed. Pg. 155-156.
5 BOSI. Op Cit. Pg. 163
6 ARRIGUCI, Davi. Op cit. Pg. 189.
7 MOISÉS, Carlos Felipe. Literatura para quê? (Florianópolis, Letras Contemporâneas, 1996, págs. 125-140). Trecho acessível na internet no http://www.revista.agulha.nom.br/cfmo01.html.
8 MARTINS, Wilson. Vertentes Poéticas. Artigo do jornal A Gazeta do Povo, 19 de Abril de 1999.
9 Para mais detalhes sobre o trabalho de Paes como tradutor e crítico, recomendamos um “pulo” ao site do DITRA (Dicionário de Tradutores Literários no Brasil): http://www.dicionariodetradutores.ufsc.br.
10 PIRES, Francisco Quinteiro. O Homem Sem Vaidades. Artigo do Jornal O Estado de S. Paulo, 09 de Outubro de 2008.
11 NAVES. Op Cit.
12 BOSI. Céu, Inferno. Op cit.
13MARTINS, Wilson. Op cit.
14 CONRAD, Joseph. No Coração das Trevas (Heart of Darkness). Editora Hedra, São Paulo, 2008. Tradução de José Roberto O’Shea. Pg. 28.
15 ARRIGUCI Jr, Davi. Op Cit.
Publicado em: 21/06/10
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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