JAVIER MARÍAS, Coração Tão Branco (Ed. Cia das Letras, Trad. Eduardo Brandão)
Camus sugere, logo no início de O Mito de Sísifo, que o suicídio é o maior dos problemas filosóficos. Até mesmo por não estar restrito ao âmbito dos pensadores “profissionais”, mas por ser um dilema que cada ser humano tem que encarar: aquele que consiste em decidir sobre o valor da vida, ou seja, se ela vale a pena ser vivida (ou não), em que condições é digna de ser mantida e em que situações é insuportável ferida. A vida em Auschwitz, ou a vida do pobre Sísifo (condenado a arrastar rochedos montanha acima em penar perpétuo…), são realmente melhores do que o tranquilo repouso do sono-sem-sonhos? “Ser ou não ser”, ecoa ainda o pendular coração de Hamlet… “eis a questão!” Matar-se é um modo de responder com um irrevogável “não” a este dilema crucial. Continuar respirando, com o sim implícito que isto implica, já é julgar e aquiescer.
Um estouro de pistola suicida é aquilo que inaugura o romance de Javier Marías, Coração Tão Branco. E tudo nas 300 páginas que seguirão me parece marcado pelo eco deste tiro primevo, disparado na primeira oração. Mas o autor espanhol, ao invés de fazer o relato da vida pregressa da suicida, elucidando o que a teria obrigado à escolha fatal, prefere outro caminho: investigar as múltiplas repercussões disso na vida do viúvo (Ranz) e de seu filho (Júan). Eis um romance sobre a vida dos que sobreviveram à suicida, relegada esta a uma posição de fantasmática coadjuvante.
Quando Renato Russo compôs “Pais e Filhos”, já nos primeiros versos alertou que “nada é fácil de entender”, muito menos as secretas maquinações do afeto e do pensamento que levam alguém a “se jogar da janela do quinto andar”. Javier Marías também respeita o mistério que envolve este suicídio e se acerca dos “cofres, estátuas e paredes pintadas” com cautela, pé ante pé, sensível ao fato de que as “zonas de sombra” são mais vastas que as zonas iluminadas (p. 91).
“…não é fácil saber por que as pessoas se matam, nem as mais próximas, todo o mundo fica transtornado, todo o mundo passa maus bocados, às vezes sem razão e quase sempre em segredo, as pessoas viram a cara contra o travesseiro e esperam o dia seguinte. De repente não esperam.” (p. 138)
O narrador em primeira pessoa do envolvente e magnetizante romance de Marías é Juán. O pai de Juán, Ranz, teve um histórico matrimonial pra lá de traumático. Conforme a narração progride, Juán vai descobrindo, e junto com ele o leitor, que seu pai enterrou suas duas primeiras esposas antes de se casar com a terceira, Juana, mãe do narrador. Mas este processo de descoberta dos segredos da vida do pai e sua ex-esposa é árduo e lento. Exige um trabalho de mineração e de mergulho. E nem tudo que se revela é benigno e indolor. Este narrador, que nada tem de onisciente, mereceria talvez um rótulo classificatório novo: o de Narrador Tateante. Daqueles que não tem pudor em dizer “talvez” vezes sem conta, que se entrega a inúmeras conjecturas, que arrola muitas hipóteses, que progride na narração tateando na semi-obscuridade ao invés de auto-confiante na plena-luz.
Citando constantemente o Macbeth de Shakespeare, o autor progride através de digressões em sua profunda investigação sobre o amor e outros crimes. Ranz, o pai do narrador de Coração Tão Branco, poderia muito bem cantar com convicção aquele folk de Lee Hazlewood: “I’ve committed love and other crimes”. A densa névoa de mistério que envolve a morte da primeira esposa de Ranz, aquela que precedeu sua esposa suicida, desfaz-se aos poucos, revelando uma teia satânica de paixão extra-conjugal e derramamento de sangue no leito marital.
“Nossa vida não depende de nossos feitos, do que fazemos, mas do que se sabe de nós, do que se sabe que fizemos” (p. 286), sugere Ranz, num pensamento que se assemelha bastante àqueles do personagem de Woody Allen, em Crimes e Pecados (1989), que sustenta que num universo desprovido de deus vingador e justiceiro não há punição necessária para a infração da lei moral. O crime e o castigo não estão ligados por liames impositivos, impostos de cima por poderes transcendentes. Um crime cometido pode ser ocultado, mantido em segredo, perpetrado impunemente, e não necessariamente pesará como um fardo insuportável sobre o assassino: pois o esquecimento não cessa de trabalhar, esfumando memórias que o sujeito não quer consolidadas. O romance de Marías é brilhante no modo como expõe as complexas maquinações subjetivas de ocultamento, auto-engano, esquecimento, distorção da memória, que permitem ao personagem de Ranz deixar os fatos principais de seu passado ocultos de seu filho Juán, tateante no escuro, que só a duras penas arranca as palavras que aclaram seus destinos. Ainda que sejam palavras que manchem seus corações tão brancos.
Com frequência, Marías distingue entre fatos e fantasias, entre atos e ditos: os primeiros, fatos e atos, são irrevogáveis, incanceláveis e puníveis, somente passíveis de ocultamento ou esquecimento. Quando Macbeth confessa seu crime (“I have done the deed!”), sabemos que “já era”: what’s done can’t be undone. O Rei não será trazido de volta do Reino dos Mortos após ter sido degolado e Macbeth e sua esposa não escaparão das consequências de seu desvario. Já fantasias e ditos não são (teoricamente) culpáveis (ainda que a psicanálise nos tenha ensinado que o sentimento de culpa frequentemente decorre não de um ato cometido, mas de algo desejado, de um pensamento proibido, de um sonho inconfessável). O sistema jurídico só aplica penas àqueles que cometem o crime, não àqueles que fantasiaram seu cometimento ou falaram que iriam cometê-lo. Porém, sem aquilo que sussurou Lady Macbeth nos ouvidos do marido, instigando sua ambição, teria este manchado de sangue o trono da Escócia?
A Palavra, parece sugerir Marías, não é tão inocente e inofensiva quanto pode parecer. É o que a confissão de Ranz, ao elucidar o porquê do suicídio que inaugura o romance, escancara: “Ela se matou por causa de uma coisa que lhe contei. Por uma coisa que eu tinha lhe contado em nossa viagem de lua-de-mel.” (p. 270) Através da teia do romance Marías vai nos mostrando o quanto nós, seres humanos, somos mais que meros organismos físicos: somos criaturas simbólicas, que podem ser feridos mortalmente não só por punhais… mas por palavras. Palavras sussurradas no escuro, ao pé do ouvido, podem conduzir ao suicídio ou ao homicídio. Palavras podem ser o conteúdo principal da nossa felicidade, também, e não há grande amor que não esteja envolto, também, numa nuvem de poéticas e encantadoras palavras. Palavras que escapam, ditas de modo inconsequente e irrefletido, podem ter sérias consequências. Segredos revelados através da palavra podem romper vínculos, ou fortalecê-los, ou definitivamente modificá-los… E “todo mundo sabe”, canta o Diego de Moraes, “que a pior porrada é a da palavra”.
Todo o romance de Marías é impregnado desta percepção dos poderes concretos de transformação da realidade subjetiva contidos na palavra. “Os ouvidos não têm pálpebras que se possam fechar instintivamente ao que é dito” (p. 279), do mesmo modo que mesmo o cerrar violento dos olhos não bane toda a luz quando esta é excessiva. De modo que temos pavor de certas palavras, e somos famintos de outras palavras; somos estruturados em nossos medos e esperanças através de uma linguagem inescapável, quase inscrita em nossa carne, e à qual não escapam nossas amizades e amores.
Slavoj Zizek, sempre contundente, sugere em uma entrevista uma curiosa inversão de valores: “LOVE IS EVIL!”. Pode parecer loucura (como assim, fazer do amor, a suprema positividade, o mais desejável dos bens, algo essencialmente maligno?!), mas a idéia não deixa de ser instigante. Javier Marías também descreve a quintessencial ambiguidade do amor, como se ele tivesse necessariamente que ser uma mistura de angelical e satânico, delícia e flagelo, salvação e desgraça, redenção e catástrofe:
“Para agradar a quem se ama denigre-se o resto do existente, nega-se e execra-se tudo para contentar e tranquilizar um só que pode ir embora, a força do território que o travesseiro delimita é tanta que exclui de seu seio o que não está nele, é um território que por natureza não permite que nada esteja nele exceto os cônjuges, ou os amantes… O travesseiro é arredondado e macio e amiúde branco, e com o tempo o arredondado e branco acaba substituindo o mundo e sua frágil roda…” (p. 147) “…no travesseiro traem-se e denigrem-se os outros, revelam-se seus maiores segredos e se dá a única opinião que agrada a quem escuta e que é desestima do resto: tudo o que é alheio a esse território se transforma em prescindível e secundário, senão em desdenhável, é lá que mais se abjuram as amizades e os amores passados e também os presentes…” (239)
Não há amor sem predileção. O amor elege um eleito e relega o resto do mundo a um status secundário, quase supérfluo. Mas este não é um processo sem perigo – e Coração Tão Branco é brilhante em frisar isto. O que ocorre quando um eleito é… destronado? Quando sente esvair-se, como areia entre os dedos, a posição privilegiada que tinha no coração do outro? Ranz parece ter aprendido duramente, viúvo duas vezes, as possibilidades de tragédia que se escondem nestas eleições e destronamentos, esperanças e desencantos, abandonos e suicídios. Mas nem tudo são sombras neste romance agridoce, mesclado, poético e fluido.
O filho corre o risco de repetir alguns dos erros do pai: Juán começa o livro logo após ter “contraído casamento” com Luísa, e desde a lua-de-mel sente-se oprimido por um estranho mal-estar: “comecei a ter toda sorte de pressentimentos de desastre, de forma semelhante a quando se contrai uma doença, das que nunca se sabe com certeza quando vai ser possível se curar” (p. 8). Mas acaba passando por uma experiência de transmutação fundamental no decorrer do livro: ao conseguir desenterrar os segredos do pai, ao menos parcialmente, torna-se mais capaz de compreender seu próprio destino. Aprendiz da tragédia alheia (mas tão próxima), Juan salva-se de recair na desgraceira que a ignorância do passado familiar parecia conduzi-lo a repetir. E seus pressentimentos de desastre, que o propulsionaram a buscar verdades enterradas no passado, mexendo em desagradáveis vespeiros, auxiliam-no a aprender cruciais lições sobre o amor e outros crimes outras delícias. Não falta sabedoria à angústia deste homem tateante, cujo coração tão branco foi manchado mas nem por isso cessou de bater.
Publicado em: 31/05/11
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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