<Iara Iavelberg (1944-1971)> tinha apenas 27 quando foi assassinada pela truculenta ditadura militar-empresarial brasileira. Formada em Psicologia pela USP, Iara é mais uma prova morta e mais um esqueleto incômodo que denuncia a partir de nossa história: preciosas vidas foram precocemente interrompidas pelo regime sanguinário iniciado há 60 anos e que se arrastou entre 1964 e 1985 (legando-nos resquícios repressivos e entulhos autoritários que duram até hoje – nossa Polícia Militar e nosso resiliente bolsofascismo que o digam).
Inaugurada em Primeiro de Abril de 1964 através do coup d’état, teleguiado pelos Yankees, que depôs o governo de João Goulart (<assista o documentário da Caliban Filmes>), a ditadura nada teve de branda no seu trato com os dissidentes e resistentes. O regime dos milicos e de seus braços empresariais não economizou na imposição da tortura, do exílio e da morte àqueles que se opuseram a seus ditames. A juventude insubmissa sofreu com a parte do leão da repressão fatal: <“56% dos mortos tinham menos de 30 anos”, como foi revelado por Cynara Menezes no Socialista Morena>.
Fato frequentemente velado e amordaçado: a ditadura dos “cidadãos-de-bem” em coturnos e com trabucos foi impiedosa contra muitos jovens, sobretudo universitários, que tiveram sua politização exacerbada no período pós-democrático dos anos 1960 em que tanto a UNE quanto grêmios e CAs foram duramente perseguidos e amordaçados.
Nascida em berço esplêndido e judaico, a jovem Iara amadureceu suas posturas políticas na frequentação do agitado mocó paulistano da Rua Maria Antônia, onde ficava sediada a FFLCH (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas) da USP, palco também de uma <famosa treta opondo os estudantes do Mackenzie aos USPianos em outubro de 1968>. Hoje, o <Centro Acadêmico do Instituto de Psicologia da USP carrega o nome de Iara>, alimentando a memória acerca de uma ilustre USPiana que a tirania não permitiu que chegasse nem aos 30. Ela não foi a única: lembremos também de <Ana Rosa Kucinski, para sempre em nossa recordação também em virtude dos escritos magistrais de seu mano Bernardo>.
Poderíamos criar, com a ajuda da historiografia especializada, um amplo panorama das jovens pessoas que os milicos mataram ainda em tenra idade; Iara estaria ali inserida numa espécie de Clube dos Mortos ao 27 alternativo àquele que reúne estrelas da música pop (Hendrix, Morrison, Joplin, Johnson, Cobain, Winehouse etc.), inserida no contexto mais amplo de repressão editorial no âmbito da educação. Segundo <Luis Felipe Miguel, professor da UnB>:
“A repressão na educação fazia parte do esforço de cerceamento do pensamento crítico. A ditadura fez o que pôde para destruir a escola pública, contribuindo para criar a indústria do ensino pago no país. Informantes infiltrados nas universidades impediam a livre discussão acadêmica. O famigerado decreto 477, em 1969, criminalizou a discussão política entre os estudantes.” (MIGUEL, Luis Felipe. https://www.instagram.com/p/C5A9rJtORHK/?img_index=7)
Afirmo aqui a tese de que Iara foi vítima de homicídio perpetrado pelo aparato repressor do Estado burguês ditatorial ainda que eu saiba de toda a controvérsia que envolve o estouro do “aparelho subversivo” em Salvador, 20 de Agosto de 1971, quando Iara chegou ao fim de seus dias. Aqueles que a mataram tentaram escrever na História Oficial a lorota de que ela havia se suicidado dando um tiro no próprio peito ao ver-se encurralada pela polícia. Uma das tarefas principais a que se propõe Em Busca de Iara, filme documental de Maria Pamplona (sobrinha de Iara Iavelberg, que nasceu pouco depois da morte de sua tia) e <Flávio Frederico> (cineasta carioca, autor de filmes como Caparaó, de 2006) é investigar a fundo este óbito.
O documentário, através de uma investigação minuciosa, que pode ser ensinada e debatida em faculdades de jornalismo e de cinema, acaba persuadindo a audiência, ao final da projeção, de que Iara morreu de morte matada e não por um auto-extinção na situação de estar encurralada. O filme expressa uma tendência em alta no cinema brasileiro: o de uma abordagem memorialística em que a cineasta assume uma certa narração em primeira pessoa e revela detalhes familiares, mas sempre num contexto de afirmação da tese “o pessoal é político”, como vê-se também em <Democracia em Vertigem, de Petra Costa (indicado ao Oscar de Melhor Documentário e uma das melhores obras já feitas sobre o golpeachment de 2016)> e <Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil, de Carol Benjamin (sobre o qual escrevi para Jornalistas Livres> e que depois <debatemos numa live com a presença de Carol e outros convidados>).
No <Jornal GGN, Cintia Alves afirma que o filme “reforça a tese de execução”>: “Desconstruir, por meio de depoimentos, documentos oficiais e laudos médicos, a versão oficial sobre a morte de Iara Iavelberg. Essa é a contribuição do documentário Em Busca de Iara à história nacional. A tese de que a mulher por trás de um dos principais inimigos da ditadura militar, Carlos Lamarca, disparou um tiro contra o próprio peito após ser cercada por militares cai por terra a partir do momento em que o corpo da militante é exumado. A família de Iara pôde reavaliar as causas de sua morte a partir da exumação, em 2003, após anos de luta no Judiciário. A análise do médico Daniel Munhoz, perito da Universidade de São Paulo, aponta que a distância do disparo não é compatível com a tese oficial de suicídio. Com o novo resultado, os restos mortais da mentora política de Lamarca foram enterrados novamente em 2006, no Cemitério Israelita de São Paulo, mas agora não mais na área reservada a suicidas, para “alívio da família”…” (ALVES, GGN).
Todo um drama mórbido envolvendo o cadáver de Iara, retido pelas autoridades por mais de um mês, depois enterrado em situação desonrosa, para décadas depois ser exumado e re-enterrado em contexto mais respeitoso de seu legado, enraíza Em Busca de Iara no campo de uma certa arqueologia sinistra que vai buscar a verdade lá onde é mais incômodo, insalubre e perigoso ir caçá-la.
Sua biografia na Wikipedia destaca elementos interessantes de um destino breve mas refulgente: “Iara casou-se muito cedo, com 16 anos, em uma cerimônia tipicamente judaica. O casamento, com um médico, durou apenas três anos e ela deixou a relação para entrar na militância política. Separada, e mal entrada nos vinte anos, virou adepta do amor livre, moda na época. (…) Militando no MR-8, conheceu Carlos Lamarca, comandante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) em abril de 1969, dois meses depois de ele desertar do exército. A paixão entre a filha de milionários paulistas que tornou-se socialista e o filho de sapateiro carioca, capitão desertor do exército brasileiro e um líder da luta armada, foi fulminante.
O casal era um dos mais procurados pela ditadura militar, inclusive com fotos espalhadas por todo o país. Os dois foram viver juntos e passaram dez meses escondidos em ‘aparelhos’ pelo país. Uma das companhias do casal nestes esconderijos e que testemunhou de perto a relação dos dois, foi a guerrilheira ‘”Vanda”, da VPR, codinome de Dilma Roussef, décadas depois a primeira mulher presidente do Brasil. Em 1970, começaram treinamento militar no Vale do Ribeira – onde Iara deu aulas teóricas de marxismo aos guerrilheiros. Neste ano, em 7 de dezembro, Lamarca liderou o sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher, no Rio de Janeiro, em troca da libertação de 70 presos políticos.”
O filme pode soar indigesto para algumas audiências por certas cenas de teor tétrico, onde vemos os cadáveres de Iara e Lamarca após suas execuções, e onde os especialistas das necrociências debatem acerca do que se pode afirmar a partir dos restos do cadáver exumado. A importância de tais cenas, em minha avaliação, consiste em ir na contra-corrente de uma atitude de esquecimento imposto que os acólitos da ditadura sempre quiseram promover, e que inclui uma certa noção equivocada de anistia que consiste em tudo perdoar e tudo esquecer. Os milicos e seus herdeiros atuais pedem-nos que não fiquemos caçando a verdade em meio aos esqueletos nem exumando cadáveres das vítimas – é “bola pra frente”. A encrenca com a atitude “bola pra frente” é a continuidade das impunidades, das ausências de responsabilização criminal dos operadores das atrocidades, o que também taca combustível nas chamas de patologias sociais como o neofascismo bolsonarista.
Tal atitude bolsofascista prega não apenas o esquecimento mas a impunidade daqueles que cometeram atrocidades e crimes contra a humanidade a serviço do regime: tal postura motivou, por exemplo, que um certo fascista notório, saudosista dos anos de chumbo, a dizer, acerca das famílias que buscavam por justiça, verdade e reparação, que “quem procura osso é cachorro“ – frase bizarra na boca de Bolsonaro, que durante seu péssimo governo lançou milhões de brasileiros à fome e à fila do osso, ao mesmo tempo que ajudava a lançar na cova mais de 700.000 pessoas devido ao obscurantismo negacionista de sua gestão da pandemia de covid19. Contra tal atitude bolsonarista, é preciso afirmar que é muitas vezes nas verdades acessíveis nos ossos e cadáveres das vítimas do regime ditatorial que podemos ir buscar elementos que nos capacitam para uma luta por justiça, verdade e reparação, ainda que tardias.
A Wikipedia registra ainda: “a certidão de óbito de Iara, assinada pelo legista Dr. Charles Pittex, oficializa a morte da militante em 20 de agosto de 1971. O corpo foi entregue à família apenas um mês após a sua morte, em caixão lacrado, com a proibição explícita de que fosse aberto. Iara foi enterrada no Cemitério Israelita de São Paulo, em um local destinado apenas a suicidas, e com os pés voltados para a lápide (posição que simboliza desonra no judaísmo). Carlos Lamarca morreu menos de um mês depois, em 17 de setembro, em Pintada, no sertão da Bahia. Os irmãos Samuel e Raul, também militantes, estavam exilados no Chile e apenas voltaram para o Brasil depois da Anistia, em 1979.
Em 1998, a família de Iara começou uma batalha judicial contra o Estado, solicitando a exumação do corpo da guerrilheira com a intenção de investigar as causas de sua morte. A investigação foi liderada pelo professor da Universidade de São Paulo (USP), Daniel Muñoz. O especialista em medicina legal concluiu então que, na verdade, o tiro mortal de Iara foi disparado de uma longa distância, descartando a hipótese de suicídio.
Em 2003, após anos de negativas, através de um mandado judicial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, os familiares de Iara, inconformados com a versão oficial da morte por suicídio, conseguiram que a Federação Israelita de São Paulo fizesse a exumação do corpo da ex-guerrilheira, que havia sido entregue à família em caixão lacrado. Os restos mortais puderam, mais de trinta anos depois, ser removidos da ala de suicidas para perto do túmulo de seus pais, em outra área do cemitério judaico.”
O relacionamento de Iara e Lamarca também é um dos focos do documentário, que trás também muitos depoimentos de militantes que aderiram à resistência armada através de organizações como a Polop, o MR-8 e a VPR. O filme frisa que Lamarca era bastante ignorante acerca da literatura marxista, por exemplo, e que Iara foi não apenas sua namorada ou parceira sexual, mas também agiu como sua educadora; mais intelectualizada, tendo passado por uma formação USPiana, ela teria introduzido o ex-militar, convertido em liderança guerrilheira, ao mundo dos debates esquerdistas enraizados nas obras de Régis Débray, Lênin e Marx/Engels tão estudados e debatidos pela resistência à ditadura na época.
A conjuntura erguida sobre os escombros do regime de Jango, e que se extremizou a partir de Dezembro de 1968 com o AI-5, não é ainda uma página virada de nossa história. É só lembrar que nas eleições de 2018 e de 2022, o candidato Jair Bolsonaro, vencedor da primeira (ainda que de forma ilegítima, por Lula, que as venceria, estava injustamente encarcerado) e derrotado na segunda, não escondeu seu tesão pelos anos de chumbo, nem sua idolatria irrepreensível por Ustra e outros torturadores-em-chefe. A popularidade acabrunhante de Bolsonaro é outro sintoma da patologia social deste Brasil desmemoriado, que não soube punir os agressores de sua democracia e os assassinos de sua juventude politizada.
Como revelou <Quebrando Mitos, o filme Fernando Grostein Andrade e Fernando Siqueira>, durante sua infância e adolescência, o jovem Jair Bolsonaro testemunhou a caçada a Lamarca ocorrendo no Vale do Ribeira e torcia despudoradamente pelos milicos contra o ex-militar transformado em guerrilheiro. Bolsonaro sempre gozou sadicamente com um militarismo truculento que prende, mata e tortura uma esquerda vista pelo prisma desumanizante e demonizador da direita reacionária, presa na jaula de uma ótica estúpida, conservadora de injustiças e apegada ao que de pior o patriarcado e a supremacia branca já construíram. A extrema-direita tem um apego patológico às soluções violentas impostas por machos em uniforme que portam armas de fogo e justificam todas atrocidades ao rotularem de “perigosos terroristas” aqueles que resistem legitimamente a um governo ilegítimo, constituído após golpe de Estado.
Os destinos entremesclados de Iara e Lamarca também marcam o filme de Sergio Rezende, lançado em 1994, baseado em fatos reais e feito bem ao estilo de Costa-Gravas, no qual que Iara é interpretada por Carla Camurati e Lamarca por Paulo Betti. Este relacionamento poderia nos conduzir a outras reflexões, que adiaremos para outra ocasião, sobre a contradição entre o amor considerado como posse e o amor adjetivo como “livre”. Trata-se da discrepância entre a monogomia tradicional como compreendida e imposta no seio de sociedade cristãs tradicionais, um panorama relacional mais aberto e poliamoroso. Sobre o tema (cujo debate fica prometido para o porbir) vejam por exemplo este instigante trecho dos seus Diários em que Lamarca, endereçando-se a Iara, escreveu-lhe: “Uma coisa é absoluta, inexorável – você é minha mulher – e isso é o que de mais lindo me aconteceu na vida. Se é antidialético crêr no absoluto, no eterno, eis-me, nesse caso um antidialético ferrenho.” Dialético em política, antidialético no amor?
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Fins de Março de 2024,
Aos 60 anos do Golpe de 1964
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MEMÓRIAS DA DITADURA – PERSEU ABRAMO –
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Publicado em: 27/03/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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