IAN MCEWAN. Solar.
(Ed. Vintage Books, Londres, 2010, 390pgs.)
Para os grandes capitalistas, acionistas, donos de indústrias e CEOs de mega-corporações, o aquecimento global talvez seja considerado como um estraga-prazeres desagradável, como um discurso de ecochatos que tentam lançar pedras nas engrenagens dos lucros desenfreados… Reduzir a mero discurso um FATO empiricamente comprovável e referendável por qualquer cientista honesto, para na sequência desligitimá-lo como falso e falacioso: eis a técnica de auto-engano utilizada por muitos daqueles que fazem fortunas às custas da exploração do trabalho e da poluição ambiental.
Secretamente, no fundo de seus coraçõezinhos mesquinhos, os endinheirados talvez pensem com desdém nesse “problema menor”, o aumento da temperatura do planeta, subestimando as consequências fatais desta para a nossa e para centenas de outras espécies. Consolam-se dizendo que, afinal de contas, serão os pobres, como de praxe, aqueles que mais irão penar. Pois aqueles que possuem capital (gerado, é claro, pela exploração dos miseráveis em Bangladesh, por exemplo, que trabalham por salários de miséria para que a Nike venda tênis por 300 doletas na 5ª Avenida…), esses que tem o poder da bufunfa, ah!… Esses sempre podem comprar potentes aparelhos de ar-condicionado ou terras fresquinhas no Canadá ou na Noruega…
À perspectiva da extinção eles são cegos: só enxergam a necessidade de manter rodando a maquinaria infernal de geração de “riqueza” (óbvio que uma riqueza bastante desigualmente distribuída e de que podem gozar só plenamente só os 1% lá no topo…). Esta grotesca concentração de capital em poucas mãos, que o velho Marx já denunciava, prossegue hoje numa dimensão grotesca, mas ao menos está sendo globalmente contestada – dos protestos de rua de Gênova e Seattle, anos atrás, quando os descontentes manifestaram sua discórdia contra os rumos que G-8, FMI e Bando Mundial queriam impor ao planeta, até a grande “sensação” política do momento, o Occupy Wall Street.
No epicentro deste furacão está a questão do aquecimento global, esmiuçado em ótimos documentários, como The 11th Hour e Meat The Truth, e que também é o eixo temático central de Solar, o mais recente romance do inglês Ian McEwan, um dos mais brilhantes e lúcidos dos escritores de ficção hoje em atividade. Mr. Beard, protagonista de Solar, é um cientista de renome, já laureado com o Prêmio Nobel de Física, cujo ofício é pesquisar e testar modelos alternativos de energia que façam a humanidade superar sua perigosa dependência em relação ao carvão e ao petróleo.
O problema é que Mr. Beard, longe de ser um modelo de escrúpulo, é um beberrão, um mulherengo e um sujeito de preceitos éticos bastante duvidosos, apesar de ter sido “con-sagrado” pelo pózinho mágico de Estocolmo como uma das mentes mais à vanguarda em seu tempo. À medida que McEwan progride em sua narrativa, com a elegância e a espirituosidade da melhor prosa irônica britânica, com arroubos quase “machadianos”, acompanhamos a quixotesca jornada de Beard em busca do Santo Graal da energia eternamente renovável. Mas a vida amorosa – aliás bastante desastrosa – de Beard não cessa de se intrometer em seu trabalho científico. E a Ciência leva rasteiras frequentes dos ímpetos passionais e irracionais dos homens – e sempre consegue se reerguer sem ir à nocaute.
Solar, um dos romances mais “selvagemente engraçados” de McEwan, como disse o Sunday Times, é livro que nos convida a refletir em profundidade sobre os grandes dilemas de nosso tempo através das desventuras surreais de um herói falhado que tenta salvar a Humanidade da hecatombe, mas percebe que sua própria vida pessoal é uma hecatombe em miniatura. Em meio à complexidade desnorteante de nosso planeta endoidecido, que prossegue atulhando a atmosfera com tóxicos e continua sem tomar medidas drásticas contra a grotesca concentração de capital e desigualdade de renda, aguardamos atônitos os próximos capítulos da novela da História sem saber se o futuro nos terá como agentes – ou se seremos um curioso caso de espécie suicida que, através de sua cegueira e estreiteza egocêntrica, destrói àquilo sem o quê é incapaz de sobreviver.
Não se trata de ser apocalíptico e pessimista ao ponto de beirar o fatalismo derrotista (tendência devidamente escarnecida por McEwan); trata-se de reconhecer a urgência do problema e de agir o quanto antes, como diz Manu Chao, para “frear a loucura do Sistema”. As calotas polares, uma vez derretidas, não poderão ser re-congeladas. Não existe tecnologia disponível para reverter isso! E dá-lhe tsunami e inundação para matar multidões como se fossem formigas e reduzir civilizações a barro – como quando um formigueiro é devastado por um dilúvio…
UM TRECHO NOTÁVEL…
“Beard was not wholly sceptical about climate change. It was one in a list of issues, of looming sorrows, that comprised the background to the news, and he read about it, vaguely deplored it and expected governments to meet and take action. And of course he knew that a molecule of carbon dioxide absorbed energy in the infrared range, and that humankind was putting these molecules into the atmosphere in significant quantities. But he himself… was unimpressed by some of the wild commentary that suggested the world was ‘in peril’, that humankind was drifting towards calamity, when coastal cities would disappear under the waves, crops fail, and hundred of millions of refugees surge from one country, one continent, to another, driven by drought, floods, famine, tempests, unceasing wars for diminishing resources.
There was as Old Testament ring to the forewarnings, an air of plague-of-boils and deluge-of-frogs, that suggested a deep and constant inclination, enacted over the centuries, to believe that one was always living at the end of days, that one’s own demise was urgently bound up with the end of the world, and therefore made more sense, or was just a little less irrelevant. The end of the world was never pitched in the present, where it could be seen for the fantasy it was, but just around the corner, and when it did not happen, a new issue, a new date would soon emerge.
The old world purified by incendiary violence, washed clean by the blood of the unsaved, that was how it had been for Christian millennial sects – death to the unbelievers! And for Soviet Communists – death to the kulaks! And for Nazis and their thousand-year fantasy – death to the Jews! And then the truly democratic contemporary equivalent, an all-out nuclear war – death to everyone! When that did not happen, and after the Soviet empire had been devoured by its internal contradictions, and in the absence of any other overwhelming concern beyond boring, intransigent global proverty, the apocalyptic tendency had conjured yet another beast…”
IAN MCEWAN. Solar. pgs. 20-21.
Publicado em: 27/10/11
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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