DICK CAVETT: So you agree there’s some kind of mad beauty in unorthodoxy?
HENDRIX: YEAAAAAH!
Porra, Jimi! Só mesmo começando com um palavrão e uma exclamação. Palavras sérias de gente acadêmica não dão conta para te descrever. Você põe o verbo dos eruditos em pane, assim como o antropólogo europeu careta diante do primeiro ritual xamânico-extático que presencia, incapaz de encontrar palavras em seu léxico para aquilo que é inédito.
Você era a criança do vodu, a maestria indomestivácel de teu sangue afro-indígena fazendo uma ponte entre EUA e Inglaterra para fazer o blues, a psicodelia, o funk e muito mais agirem como forças confluentes. Teus dentes mordiam as cordas da guitarra Fender Stratocaster com voracidade, lançando paredes de som e feedback através dos amps Marshall empilhados como uma nova Torre de Babel, e o mundo inteiro se alumbrava com sua exuberante selvageria.
Pô, Jimi, que série apoteótica de desacatos magníficos foi tua vida! Você botou fogo na guitarra em Monterey, após molhá-la com líquido de isqueiro, seu menino incendiário e espetaculoso, mas aquilo era muito mais que mero gimmick. Era teu primeiro grande show nos Estados Unidos após tua explosão in the U.K., e aquela performance talvez fosse para dizer que a guitarra, este teu grande amor-da-vida, não era senão um instrumento através do qual você expressava o universo: o infinito, os ventos, os relâmpagos, os vodus, as tempestades elétricas de um indomável espírito dionisíaco, transbordando de todos os pentagramas, aliado a teu domínio imaculado da apolínea linguagem musical.
Você explodiu o pentagrama com tuas síncopes. Você fez covers que humilharam as originais – em “All Along the Watchtower”, cantou melhor que Dylan algumas das palavras mais fortes de um dos melhores poetas da época, mostrando que o folk poderia ser eletrizado de maneira ainda mais radical do que a The Band concebera. Porra, Jimi, e você depois foi e caiu na podridão da morte precoce aos 27 anos, deixando-nos para sempre estarrecidos como aquele “o que seria se ele tivesse vivido mais?”, aquele what if que insiste em nos intrigar. Você ainda tinha oceanos de música a fazer fluir de ti, através deste instrumento elétrico de seis cordas que você manipulava, canhoto de altíssima dexterity, como um raro gypsy feiticeiro.
HENDRIX @ WOODSTOCK (1969)
O ápice de um ícone cultural de proporções gigânticas
Quando a aurora despontou naquela manhã de segunda-feira, em 18 de abril de 1969, sobre a fazenda que sediava o Festival de Woodstock, no interior do estado de Nova Yorke, seus raios iluminaram algo de proporções épicas. Apesar dos milhares de pequenos rituais pagãos e xamanísticos que ali tinham se desenrolado, turbinados por muito ácido lisérgico e cannabis, aqueles eram os estertores finais de um festival destinado a se tornar lendário. Não só pelas mais de 600 mil pessoas que compareceram, mas também pela sacramentação de certos ícones culturais que prosseguem reverberando em nossos tempos.
Jimi Hendrix, escalado para encerrar os três dias da mega-celebração hippie, após a passagem de uma espantosa caravana de talentos pelo palco de Woodstock (já haviam se apresentado The Who, Janis Joplin, Creedence Clearwater Revival, Grateful Dead, Sly & the Family Stone, Joe Cocker, Crosby Stills Nash & Young, entre outros…), acabou sendo empurrado pelos seguidos e colossais atrasos para o período da manhã. O Experience veio com os first rays of the rising sun, no horário em que os pais-de-família engravatados estão se preparando para o trabalho e já se instala um equivalente ao “clima de quarta-feira-de-cinzas” no festival…
Era uma segunda-feira de manhã, tradicionalmente um horário besta ou odioso, quando nada de interessante está acontecendo nas artes, as bandas já se calaram, as jams não estão mais rolando – quando levantam-se da cama a contragosto os estudantes, os operários, as grandes massas trabalhadoras… uma “hora do dever” (e não do prazer), quando somos requisitados pela “sociedade” ao trabalho (e não à qualquer ritual, culto ou prazer proibido), e quando os severos ponteiros do relógio fecham a cara e, sem alegria, moendo nosso júbilo, decretam o “Tu Deves!”, dragão que tanto horroriza qualquer nietzchiano…
Segunda pela manhã não parece ser, segundo a ortodoxia reinante, uma hora muito propícia nem pro rock’n’roll, nem para celebração do amor, da liberdade e dos poderes redentores da música. Mas quem disse que Hendrix dá a mínima para as ortodoxias? E não há muito mais beleza em, ao invés de seguir em “linha indiana”, criar o novo ao destoar das regras e rasgar as tradicionais cartilhas? Sim, Hendrix concordou com Dick Cavett naquela lendária entrevista: há alguma espécie de beleza maluca no rasgamento das ortodoxias, na ruptura com as regras aprendidas.
Jimi Hendrix, sem dar a mínima para o relógio, como quem diz “eu vivo é na eternidade do presente!”, tomou conta daquele palco em Woodstock com a delicadeza de um furacão. Subiu depois de consumir no backstage o que a Wikipedia descreve com modéstia como uma “dose potente de LSD” e convocou um culto hippie que jamais seria esquecido. Para provar que toda hora é uma boa hora para celebrar dionisiacamente a vida e suas maravilhas.
As pessoas que estavam ali para ver Hendrix eram os heróicos remanescentes de uma maratona/epopéia. Estavam ali, sujos de lama e chapados, a maioria com os ossos moídos pelo cansaço e os ouvidos judiados por decibéis em excesso, numa segunda-feira de manhã. Quadro curioso! Os ritos e hinos da AmériKKKa terminaram de ser moídos quando o Hino Nacional foi subvertido e virou uma espécie de lobo uivante elétrico, gritando com dissonância e rugidos elétricos indomáveis, mas ainda assim fazendo a melodia patriótica reconhecível, ainda que em meio aos cacos de som, ao caos criativo do voodoo child de Seattle.
Para qualquer um que siga a cartilha do capitalismo industrial consumista, que nos quer autômatos bem-regrados sacrificando-nos ao deus “produtividade” e consumindo supérfluos nas horas-de-lazer, a segunda-feira de manhã jamais poderia ser ocupada com algo do tipo: um ritual hedonista, quase uma orgia dionisíaca, em que o xamã Jimi e seu pilhado chá de música enfeitiçavam a platéia, até que todos, capturados pela beleza irracional e esplendorosa daqueles momentos, entregassem seus escudos e consagrassem seus sentidos e suas consciências àquele espetáculo enigmático e inédito como se observassem a explosão de uma supernova…
O que ocorreu aquele dia foi um sacrilégio pagão de deixar assombrado qualquer cristão carola. A guitarra ganha nas mãos de Hendrix o status de um objeto de um ritual xamânico, instrumento do transe místico… Hendrix pira em público sem o mínimo pudor. “He didn’t mind lookin’ freaky, like I didn’t mind.“, comenta Little Richard (ele mesmo, de “Long Tall Sally” e “Tutti Frutti“), o pastor do rock and roll que prenunciou muito da performance incendiária de Jimi (e na banda-de-apoio de quem o jovem Jimi tocou, afiando seu R&B e seu rock’n’roll).
HE DIDN’T MIND LOOKIN’ FREAKY
A beleza e intensidade da experiência que Hendrix criou ali, para o testemunho dos presentes e dos pósteros, é um eloquente tratado sobre os benefícios da desmesura, do descontrole, da catarse ego-sacrificante… Jorram pétalas elétricas da guitarra desse menino-mago, turbinado com psicotrópicos que o deixavam “pra lá de Bagdá”, em enigmáticos contatos com forças cósmicas inacessíveis a nós, reles mortais. Até hoje suspeito que aquela dose de LSD mandou Hendrix mais ou menos… não exatamente pra Bagdá, mas mais propriamente pra região do Haiti.
“I’m a voodoo child, Lord knows… I’m a voodoo child!” – berra ao microfone, e quem testemunha aquilo na hora suspeita que aquele negão, pra ter adquirido um talento tão descomunal, deve ter feito macumba, magia negra ou pacto com o tinhoso.
Diante daquela confissão do “filho do Vodu”, alguns podem ter se assustado como se estivessem diante do anti-cristo, mas o feitiço se espalha… E não tarda e as pessoas já estão remexendo-se e dançando como se estivessem de fato num voodoo no Haiti, como que possuídas pelo “demônio” daquela música enfeitiçante.
“Love & Understanding & SOUND!” – diz Jimi Hendrix para a platéia, como se enunciasse, sintético e direto-ao-ponto, sua nova tábua de valores. E aquilo que hoje conhecemos por Movimento Hippie acolhia com pleno abraço este “credo”, que nada tinha de fundamentalista e dogmático. Hendrix em Woodstock é uma aula magna sobre o movimento hippie e que nos conta que, entre outras coisas, que nenhum hippie gosta de carregar cruz: prefere dançar livre do peso destas bagagens impostas e malditas.
O hippie chuta o cristianismo pra escanteio enquanto baila. Expulsa a tirania do pecado e da penitência e instaura (ainda que numa “zona autônoma temporária”, para usar o conceito de Hakim Bey), uma era de mais calor, colorido e alegria. Nenhum sinal de culto ao sofrimento na atitude de Hendrix e banda (Billy Cox, Mitch Mitchell e o resto da trupe): “happiness, happiness, happiness!”, repete Jimi ao microfone, como um mantra evocador de good vibes. Hendrix faz ali o papel de construtor de tapetes voadores que nos levariam a visitar inimagináveis wonderlands.
Tanta excitação fez com que aquele alvorecer de dia mais se parecesse com o alvorecer de uma nova era. Quando um Lennon tomado pela amargura e pelo desencanto cantar, anos depois, “the dream is over”, talvez tenha em mente o sonho que parecia tão tangível e palpável enquanto Hendrix esteve no palco de Woodstock. Pois ali não era difícil que muitos embarcassem nos tapetes voadores da utopia, surfando nas ondas levantadas por Hendrix: ali estava ainda intacto o “utopismo” hippie, mesclado com a indignação e a revolta contra a ilegítima e perversa sangreira do Vietnã (que, como bem sabiam muitos dos jovens americanos “antenados” com a contracultura, era muito mais um massacre imperialista injustificável do que qualquer tipo de conflito “legítimo”).
Hendrix tocava com o combustível para o entusiasmo que eram o engajamento do movimento anti-guerra, a força do Black Panthers e das feministas, do Weather Underground e da literatura beatnik, da mensagem de Bob Dylan e da força vulcânica do rock britânico (na época, Beatles, Rolling Stones, The Who ainda estavam na ativa, todas no auge)…
Resta destacar nesta matéria tateante e cheia de devaneios (que procura explicar o inefável e pôr em palavras o indivízel…) um dos detalhes daquele show que mais “mitológico” se tornou: a “releitura” hendrixiana do hino nacional americano. Aquela ruidosa e irreverente descontrução da “Star Spangled Banner”, tocada de maneira (para usar um adjetivo light) “pouco ortodoxa”, repleta de dissonâncias e microfonias, retrata um artista cheio de garra instintiva, soltando ruídos de desdém iconoclasta, diante da era do tonalismo, da harmonia obrigatória, do respeito às tradições venerandas dos pastores e políticos dos povos…
Se isso simboliza tão bem Jimi Hendrix e sua era, talvez seja porque aquele som é discordante e dissonante em relação ao discurso político oficial, mas ao mesmo tempo intimamente conectado com o sentimento de rebelião e ceticismo contra o governo federal americano daqueles tempos sangrentos, em que vietcongues e mariners morriam como moscas…
Aquilo é Hendrix esfregando na cara do poder: “agora vamos fazer do nosso jeito, caros Senhores da Guerra, já que vocês têm feito um trabalho tão mau-feito”. O espírito dylanesco do “the times they are a-changin’” pulsava ali, naquela linda insubmissão e redefinição dos “limites”, naquele estupro esplêndido da fronteira que separa a veneração da re-criação… Quando Dick Cavett pergunta a Hendrix sobre a canção, Jimi responde, com auto-segurança, como que apaixonado pela própria criação e orgulhoso de seu rebento: “eu não considero que aquilo foi heterodoxo; achei que foi lindo”.
Porra, Jimi! Pilotando a guitarra como se fosse um tapete voador debaixo da bunda de um bando de hippies viajando com o melhor ácido já cozinhado por Hoffman, mano Hendrix só precisou de 27 rotações ao redor do Sol, preso a este hospício esférico chamado Terra, para virar esta presença que ecoa e ressoa. Imortalidade pode não existir, mas ecoar para além de sua própria morte, deste jeito, é para raros artistas. Símbolo de uma geração que encontrava beleza na discórdia, que opunha flores a rifles, que unia forças contra os massacres e injustiças cometidas pelos caretas e reaças na Casa Branca e no Exército. Uma união apolínea-dionisíaca que se consumou com a tragédia da morte precoce em Londres.
Um meteoro hippie cruzando os céus com exuberância de cometa, encarnando em sua carne negra tudo que sua época pôde fazer de melhor, todo um estilo-de-vida alternativo performado e pré-figurado nas fuças da moribunda civilização capitalista ocidental, que depois de duas Guerras Mundiais parecia continuar sua insana jornada rumo ao abismo e aos cogumelos atômicos. Hendrix foi a encarnação desta junção entre a dissonância crítica e o entusiasmo utópico e, por isso, símbolo supremo do movimento hippie na “Era Woodstock”.
Por Eduardo Carli de Moraes
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Publicado em: 22/04/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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