FREAK KINGDOM!
ilustras: jason zuckerman
Uma trip gonzo-psicodélica alucinante. A narrativa é conduzida com o frenesi delirante de um Fellini ou Kusturica da era do ácido. O humor à la Monthy Phyton também marca presença. Gilliam fez um filme excessivo, verborágico, grotesco, com uma estética caricaturista meio Assasssinos Por Natureza (Oliver Stone). Fear and Loathing in Las Vegas é a ressaca moral da era hippie; ou pelo menos as ranzizices de Raoul Duke, gonzo jornalista, contra a falência do Ideal que tinha sido vendido por Timothy Leary e que desagou naquilo que Dead Kennedys tão bem satirizou…
Quase todas as viagens, neste filme, são bad trips. E uma das “morais da história” não é nada florida: todo o sonho psicodélico tinha se baseado numa falsa expectativa das maravilhas que seriam causadas pela “expansão da consciência”. A época que o filme retrata – Guerra do Vietnã, Nixon capengando na presidência, truculência do FBI contra o “sinistro perigo dos entorpecentes”, leis pesadíssimas nos Estados contra a posse de marijuana (20 anos de detenção; perpétua prisão se você for pego vendendo)… – nada tem de comum com o sonho do comunitarismo hippie, amor livre, make love not war.
O filme de Gilliam é mais herdeiro do “the dream is over” de Lennon, mas dito por alguém que nem por isso deixou de chapar. Fica por aí, head full of acid, provocando, quebrando a lei, experimentando todas as substâncias psico-ativas descobertas desde 400 antes de Cristo, e escrevendo as reportagens mais impublicáveis de todos os tempos. E reclamando. O puro caldo da Gonzofreakyness! Tanta mescalina para “abrir” os olhos, e aí a consciências abre-se para… testemunhar tantas desoladoras e hostis realidades sociais! Quanto policial autoritário, quanto político corrupto, quanto sujeitinho fascitóide, quanta pilantragem, burguesice e péssima música pop!…
É o meio dos anos 70 e o American Dream, que pretende ter se instalado e estar prodigalizando seus benefícios, aparece aos olhos de Douke e Gonzo como um Infernal Pesadelo – este filme se passa no American Nightmare, e não no American Dream. A cultura de circo, de diversão compulsória, de entretenimento ruidoso por todos os lados, causa tamanha aversão no personagem de Johnny Depp que ele pontua: “isto é como o mundo ficaria se a Alemanha tivesse ganho a Segunda Guerra! Esta é a cara do novo Reich!” Acusações pesadas, que o filme não poupa de disparar, cáustico em suas críticas, ainda que pareça, superficialmente, só a screwball-comedy do LSD...
Mas o buraco é mais em baixo: Fear and Loathing In Las Vegas têm pretensões contra-culturais. O texto é altamente beatnik, lembrando Ginsberg, Burroughs, Ferlinghetti e Lester Bangs a toda hora. E era uma época ótima para a arte mergulhar na junkieland, que tinha achado em Irvine Welsh um tão intenso proseador contemporâneo. O filme de Gilliam não veio sozinho: fez-se acompanhar por Trainspotting, de Danny Boyle, e Réquiem Para um Sonho, de Darren Aronofsky. Contemporâneos, imersos no mesmo zeitgeist. É aí que devemos situar vida e obra de Hunter Thompson, nestas suas ressonâncias no grande écran da 7a arte…
Em Thompson, em Kesey, em Alan Watts, em McKenna, e neste filme de Terry Gilliam, parece-me que a contra-cultura vai adiante fazendo a crítica de si mesma; ou melhor, passando sobre o crivo suas prévias encarnações. Medo e Delírio não é tão modesto quanto parece: não é uma “comédia maluquinha” qualquer, dessas que a Globo passaria sem pudor na Tela Quente. Pois Medo e Delírio pretende ser uma obra contra-cultural, de vanguarda, quase o novo Easy Rider. Pretende inclusive criticar a contra-cultura dos anos 60, mapeando suas ilusões, desfazendo suas quimeras, de modo ainda mais radical do que o clássico de Dennis Hopper.
Mas o filme é decerto unilateral e peca por um retrato muito negativista dos efeitos das “viagens”; não há nenhuma discussão séria sobre a Experiência Psicodélica e seu potencial libertário como a encontramos em Aldous Huxley, Terence McKenna, Ken Kesey, no próprio Timothy Leary... Mas decerto que o filme escapa dos simplismos mais óbvios. Dificilmente pode ser acusado de fazer “apologia”: as “nóias” e terrores e vômitos que as lentes de Gilliam nos fazem testemunhar são antes algo que cria aversão pela própria idéia de uma vida junkie. Também não se pode dizer, nem fudendo, que Gilliam que esteja se aliando com os caretas, policialescos e militarzóides que querem tratar “drogado” como lixo, lançar na cadeia, mandar pro campo de extermínio, criar uma Auschwitz for junkies!
O filme é muito mais a crônica de um pretendente a escritor da contra-cultura: o próprio Thompson assumindo seu alter-ego quixotesco Raoul Douke, posto no meio do vórtex de uma cultura cheia de conflitos, contradições, quadradices colidindo com conservadorismos. Uma contra-cultura que se insurge contra a cultura dominante, encastelada em seus pavores ao diferente, em suas cegueiras brancas, em sua fundamentalista intolerância contra a dissidência sexual e de gênero e contra a transformação radical da consciência através de plantas e compostos “de poder”…
Por isto há no filme encapsulada tanta eloquência, sobretudo na principal crítica que o filme faz à “ilusão hippie”: a crença, à qual Hunter Thompson aparentemente não podia se afiliar, de que havia alguém -alguma força, alguma inteligência, alguma providência… – que segurava a tocha, lá no fim do túnel, garantindo o triunfo do final feliz. Foi esta crença utópica que colapsou.
A Era de Aquarius foi o que colapsou, o que faltou ao encontro, a utopia destroçada e traída (morta asfixiada pelo Agente Laranja despejado sobre as pessoas e as matas do Vietnã). Parece-me que o valor maior de Fear and Loathing é o retrato desta ressaca hippie-beatnik, mostrando-nos que houve aqueles que chegaram ao fim do túnel só para descobrir que lá não havia luz. É das obras paridas por estes artistas das sarjetas, destes chapadões que sentem-sem em caos em meio aos escombros de um ex-utopia caída em ruínas, que transitam no não-trilhado e que se insurgem contra a normose reinante, que estão aqui retratados, em filme plasmados, para nossa estupefação e nosso aprendizado.
Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro
Originalmente publicado em Cinefilia Compulsiva
Publicado em: 18/01/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia