Por Eduardo Carli de Moraes
Artigo apresentado como trabalho final na disciplina “Percepção, tempo e memória: um estudo sobre o pensamento demonstrativo”, dos professores Marcos Rosa (UERJ) e Guilherme Ghisoni da Silva (UFG), Semestre 2021.2, no Doutorado em Filosofia da Universidade Federal de Goiás. PDF apenas texto disponível no Research Gate.
CAP. 1 – INTRODUÇÃO: UMA GERAÇÃO SEM FOCO?
Intensificam-se os questionamentos na arena pública sobre a questão “a internet está criando uma geração de desatentos?” enquanto proliferam os diagnósticos de TDAH e as receitas de Ritalina (com EUA e Brasil liderando o índice dos maiores consumidores globais deste psicotrópico). Alguns intérpretes afirmam que a atenção “não colapsou mas foi roubada” por fenômenos da vida contemporânea como as redes sociais, os onipresentes smartphones (que parecem estar nos emburrecendo) e um cenário laboral e recreativo marcado pelo multi-tasking.
Nesta conjuntura, será que podemos considerar que os filósofos, pela história afora, prestaram a devida atenção… à atenção? Ou ela foi significativamente negligenciada nas reflexões filosóficas, não tendo sido levada em conta como uma das “faculdades” mais importantes para a compreensão de fenômenos cognitivos bastante complexos que não poderiam se concretizar sem ela? Por ex: sem atenção, seria possível à nossa consciência, diante da massa de estímulos disponíveis à nossa percepção, singularizar objetos, tratá-los como indivíduos e pensar demonstrativamente acerca deles?
A experiência empírica não seria um caos de impressões misturadas se não houvesse a ação de um holofote atencional (“attentional spotlight”, para emprestar a expressão de John Campbell) que ilumina um setor do experienciado em detrimento de outros? Poderíamos compreender a formação de conceitos, o processo de abstração ou a consolidação de memórias duradouras sem levar em consideração procedimentos prévios através dos quais atentamos para objetos e constituímos assim singularidades que podem ser acompanhadas por nós conforme se movem pelo espaço e pelo tempo?
Além disso, será possível compreender a atenção através de um apelo às pesquisas e descobertas das neurociências, aos experimentos laboratoriais focados no cérebro, de maneira focada no biológico e no resultado da evolução das espécies por seleção natural, ignorando o impacto da história e da cultura sobre diferentes e mutáveis regimes de atenção? Não será a atenção ela mesma um fenômeno mutante e que se transforma de acordo com as tecnologias e mídias que imperam na sociedade em que os sujeitos estão imersos? É em meio a esta constelação de questões e problemas que nos moveremos neste texto que procurará refletir sobre a diversidade e complexidade dos fenômenos atencionais em uma época em que cada vez mais soam alarmes acusando que estamos em estado de déficit atencional, fissurados em ritalinas e em processo acelerado de superficialização do pensamento.
CAP. 2: PENSAMENTO DEMONSTRATIVO E ATENÇÃO
Suponhamos que, ao assistir às Olimpíadas, um sujeito que esteja diante da competição de atletismo ou natação comente com o interlocutor a seu lado, utilizando-se frequentemente de seu dedo indicador: “este cara é o mais rápido do mundo” ou “aquele nadador é insuperável”. São proposições que incluem referências a objetos da percepção singulares, no caso, a seres humanos específicos que atuam como atletas. Nestes casos, os pronomes demonstrativos “este” ou “aquele” poderiam ser substituídos por nomes próprios, como Usain Bolt ou Michael Phelps, atuando em analogia a “setas” linguísticas que apontam para indivíduos que podem ser seguidos pelos sujeitos que atentam a eles conforme se movem pela pista ou pela piscina. Sobre o tema do pensamento demonstrativo com conteúdo singular, Carvalho (2016) esclarece:
“A demonstrative thought is one where the object of thought is determined relationally, via perception. (…) What I am interested in explaining is a more general capacity, to cognitively single out particular objects perceived in our external environment so that they can become the subject matter of thoughts. (…) The mental states we use to characterize them are attention-based states, which depend (in one way or another) on the allocation of attention to the object the thought concerns.” (CARVALHO: 2016, p. 1-2)
Em seu livro, Carvalho busca caracterizar, explicar e criticar as diferentes concepções acerca do pensamento demonstrativo, sobretudo a tradição perceptualista (presente em autores como Campbell, Pylyshyn e Wu, dentre outros), em contraponto com a tradição que a desafia, a conceptualista (autores como Strawson, Quine, Hartfield etc.). Ao não aceitar plenamente os argumentos dos campos perceptualista e conceptualista, Carvalho visa propor uma espécie de terceira via, por ele intitulada de pragmática.
Neste trabalho, nosso alvo principal será a questão da atenção, já que ela perpassa toda a discussão a respeito do pensamento demonstrativo e tem merecido um interesse crescente por parte de filósofos contemporâneos em livros como Attention, de Wayne Wu (Routledge, 2014). A percepção de objetos individualizados, que depois se tornam disponíveis para operações cognitivas de natureza representacional e para a criação de conceitos abstratos, parece depender necessariamente de atividades da consciência humana que envolvem a alocação de atenção a certos objetos. Estes são segregados do restante dos demais objetos presentes no campo perceptual e podem ser seguidos [tracked] pelo sujeito senciente, depois tornando-se disponíveis para operações mentais e cognitivas mais sofisticadas, tornando-se a matéria-prima de pensamentos.
Para utilizar mais um exemplo extraído da vida cotidiana e do mundo dos esportes, pensemos no espectador de futebol que observa com interesse o atacante que está com a bola aos pés e que avança com ela rumo ao gol, driblando adversários. O espectador é capaz de alocar atenção para o indivíduo singular que se move pelo espaço-tempo, além de poder atentar às ações dos zagueiros, do goleiro, do juiz; e assim pode proferir proposições tais como: “Este Messi é mesmo o melhor jogador do mundo.”
CAP. 3: O FILTRO E O HOLOFOTE
Wayne Wu, em sua obra Attention, utiliza-se de uma dicotomia interessante para pensar acerca dos fenômenos da atenção ao distinguir entre o filtro e o holofote. A atenção pode ser vista como aquilo que filtra a informação sensorial que adentra a consciência de maneira a selecionar aquilo que mais interessa ao indivíduo diante de suas tarefas, considerando a limitação em sua capacidade de processamento de informações e a necessidade de uma “filtragem” entre o relevante e o inócuo. Este filtro seria um primeiro estágio de “recepção” das impressões que penetram a consciência, e aquilo que foi “filtrado” na sequência poderá passar para um outro nível de processamento cognitivo. Mas a atenção também pode ser vista como um holofote que o sujeito lança sobre um certo local que interessa ver iluminado de acordo com as tarefas específicas que ele precisa cumprir.
“On the one hand, Broadbent emphasized filtering to explain the role of attention in perceptual processing, namely in selecting relevant information for further work-up. On the other hand, spotlighting suggests a phenomenal aspect to attention and has an echo in Treisman’s talk of attention as selecting features to bind for conscious awareness of objects (she spoke of attention as “glue” for feature binding).” (WU, 2014, “The Psychology of Attention”, pg. 41)
Podemos pensar em uma situação concreta que possa nos servir para exemplificar essa diferença: em uma sala de concerto, um sujeito que estuda música e que precisa entregar uma partitura de violoncelo para seu professor no mês que vem resolve atentar principalmente ao que estão tocando os violoncelistas. Neste caso, o sujeito tentará “filtrar” sua experiência para que passem pela peneira atencional sobretudo os sons provenientes dos violoncelos, enquanto outros timbres instrumentais não estarão em seu foco atencional. De maneira que, hipoteticamente, após o fim da execução da sinfonia esse sujeito não teria retido em sua memória quase nada daquilo que tocaram os baixos, trompetes ou as percussões, mas teria uma memória muito mais vívida dos violoncelos.
Há muitos experimentos empíricos sobre a atenção que operam justamente com a capacidade dos sujeitos de alocarem atenção a um certo fluxo de sons e ignorar outro, na medida do possível. Neste caso, porém, não é claro se esse sujeito está filtrando na experiência o elemento que lhe interessa devido à tarefa que precisa cumprir, ou se está lançando um holofote sobre os violoncelos. Mas será mesmo necessário pensar em uma lógica do ou ao invés de uma lógica do e? Ou seja, a atenção poderia simultaneamente estar atuando como filtro das impressões sensíveis mais relevantes para o organismo e também como holofote que direciona as energias psíquicas e cognitivas para aquilo que mais lhe interessa de acordo com as tarefas que o motivam?
Para compreender melhor essa questão abordaremos uma outra dicotomia que aparece de maneira recorrente nos debates acerca do pensamento demonstrativo e da atenção: a diferenciação entre um processo top-down (de cima para baixo) versus um processo bottom-up (de baixo para cima).
Vale a pena esclarecer que estas expressões estão sujeitas a interpretações equivocadas: caso emprestássemos um léxico da filosofia política, poderíamos compreender que top-down diz respeito a decisões tirânicas ou autocráticas que ocorrem na cúpula dos palácios e que descem para atingir lá embaixo a “ralé”, enquanto que bottom up diria respeito a uma pressão provinda dos desprovidos, dos oprimidos, dos que estão por baixo, uma pressão que sobe para fazer suas demandas serem ouvidas lá em cima onde moram as elites. Quando falamos, no debate econômico-político atual, de “trickle-down economics ”, estamos claramente diante de um modelo top down, em contraste com a expressão “grass roots movements” para se referir a movimentos sociais enraizados (como o MST ou os zapatistas de Chiapas) que pressionam os poderes constituídos a partir de baixo, a exemplo de povos indígenas e quilombolas em nosso país e que claramente estão atuando em modelo bottom up.
No caso da discussão que aqui nos interessa, salvo engano estas expressões tem outro sentido e envolvem uma postulação precedente, uma topografia conceitual na qual a percepção é marcada com um status de “baixo” e a cognição como “alto”. Um exemplo ilustrativo: caso eu esteja jogando futebol descalço em uma quadra e subitamente pisar em um caco de vidro, o meu pé irá enviar um “sinal” a meu cérebro, em um processo bottom up, bem diferente do processo que acabei de vivenciar ao cobrar um pênalti e no qual meu cérebro é que “decidiu” e ordenou ao pé, em um processo top down, que eu
deveria chutar a bola com força à direita do goleiro.
Mas ainda não chegamos ao cerne da discussão sobre top down e bottom up como este aparece no âmbito dos debates sobre o pensamento demonstrativo, pois neste parece haver uma topologia pactuada em que processos meramente percepcionais aparecem marcados com a “baixeza” e processos cognitivos são marcados como algo localizado na “altura”. De modo que um processo top-down inicia-se na cognição e envolve conceitos, depois incidindo sobre a percepção, enquanto um processo bottom-up inicia-se na percepção e “sobe” para processamento posterior cognitivo. Será isto apenas um reflexo de nossos preconceitos intelectualistas e da hegemonia do idealismo através da história da filosofia? Será isto a consolidação da velha ideia de que a sensibilidade é menos nobre do que a razão?
Retornemos pois ao nosso exemplo e imaginemos agora que o sujeito atento aos violoncelos está realizando este processo pois em seu aparelho cognitivo há certos conceitos aprendidos acerca da teoria musical, dos timbres, dos ritmos, harmonias e melodias, que ele mantém “in the back of his mind” enquanto atenta ao concerto. Este, para além da fruição estética que lhe proporciona, está sendo utilizado como um acessório para a tarefa pragmática que ele precisa cumprir: entregar a partitura de violoncelo a seu professor. De modo que trata-se de uma atenção que sobretudo lança holofotes sobre certos instrumentos musicais em detrimento de outros, em virtude de uma intenção voluntária que descende de seu aparelho cognitivo, de modo que teríamos claramente um processo dominado pela tendência top down, mas que não deixa também de mobilizar um filtro que age bottom up. Imaginemos agora que esse sujeito subitamente percebe uma mão tocando insistentemente em seu ombro na poltrona de trás, tal como sugerido por Wu:
“Consider being engrossed in a performance of Beethoven’s Ninth Symphony. Just before the climactic moment of the famous chorus, I pinch your shoulder. This is quite annoying, of course, since it breaks your concentration on the music, but it also does seem to be a compelling case of tactile attentional capture. Attention is devoted to auditory experience, as you listen to the music. Your intention for the past hour has been to listen, your attention has been focused on the music. There do not seem, then, to be any goals where tactile inputs are relevant. This is, of course, an anecdote, but a prima facie compelling one.” (WU, op cit, p. 39)
Deste modo, de maneira involuntária, o sujeito deixa de atentar aos violoncelos e vira velozmente seu rosto para trás para checar quem estava lhe chamando: a impressão tátil que atinge a percepção “sobe” ( bottom up) e interrompe a ação do holofote intencional que estava sendo lançado sobre os violoncelos num processo top down. Neste segundo evento há a irrupção de um fenômeno perceptivo, mais propriamente tátil, o contato de uma mão alheia no ombro do sujeito, suscitando uma reação comportamental quase automática, que não conecta-se causalmente a algum conceito orientador da atenção.
O que ocorre na sequência? Vários cursos de ação são possíveis ao sujeito quando este dado percepcional da mão, e depois do rosto da pessoa que o tocou, levar o sujeito a processar cognitivamente sua nova situação, num processo que parece claramente bottom-up. A face da pessoa que o chamou poderá suscitar reação de descontentamento ou raiva caso se trate de algum desafeto incômodo que atrapalha o sujeito em sua tarefa de atentar aos belos violoncelos compostos por Beethoven e de compor a sua própria partitura, e neste caso o comportamento suscitado pode ser uma frase como “ssssh! não me enche o saco” ou um gesto mímico de “faça silêncio!”.
No entanto a reação pode ser de deslumbramento e felicidade caso o sujeito tenha sido distraído do concerto pela pessoa por quem está apaixonado e a quem ansiava encontrar, de maneira que o contato desta mão e a visão desta face suscitará uma reação muito mais positiva e amigável diante daquela que lhe tocou. De todo modo, surge aqui, com o toque da mão no corpo do sujeito, uma atenção coagida ou involuntária, que se distingue daquela atenção intencional e voluntária que ele devotada aos violoncelos.
CAP. 4 – OS DEDOS ELÁSTICOS DA VISÃO (O MODELO FINST)
Após explorarmos este exemplo de atenção auditiva, vamos focar nos fenômenos da atenção visual. Como o mundo e a mente se conectam e interagem a ponto de tornar possível a visão de objetos singulares (segregados e seguíveis)? Sobre isto podemos acessar a teoria FINST (Fingers of Instantiation), proposta através da obra Things and Images pelo pesquisador e pensador canadense Zenon Pylyshyn (M.I.T. Press, 2007). “At the core of the connection between mind and world lies the question of how vision is able to select or pick out or refer to individual things in a scene”, afirma Pylyshyn (p. 24), isto é, no âmago da conexão mente-mundo está o problema: como é possível que enxerguemos indivíduos, que consigamos distinguir entre diferentes entidades individualizadas?
Pylyshyn engaja-se num diálogo com Johannes Kepler, o cientista que, dentre outras proezas, postulou a retina e sua conexão com o cérebro através do nervo ótico como um caminho plausível para uma explicação plenamente científica do fenômeno da visão. Porém, precisamos detalhar mais, buscar a arte das nuances, para compreender mais a fundo o que se passa quando o olho aberto “capta” a imagem da flor que está diante de seu nariz ou da estrela distante que ele vê como um pontinho no céu: como o olho “transmite” esta imagem ao cérebro que irá inteligi-la e transformá-la em representação (e uma representação que, para além de seu aparecer imediato, deixará uma marca mnemônica)? Para além disso, é preciso compreender o puzzle suplementar que é o fato de dois olhos gerarem uma imagem unificada. Nesta tentativa de compreender o aparato psico-físico que permite ao animal humano enxergar o mundo, Pylyshyn também afirma que confrontam-se as duas visões: a top down e a bottom up. Pylyshyn quer investigar “the balance between top-down and bottom-up analysis of visual information” (Introduction, pg. 3).
Esta é uma boa ocasião para notar de onde emergiu a teoria de Pylyshyn sobre indexação visual: justamente de uma noção de dedos da percepção, por assim dizer. São dedos “imaginários” e dotados de elasticidade, que poderíamos encostar em certos objetos para acompanhá-los em seus movimentos pelo espaço-tempo, uma noção tão fantasiosa que o seu próprio criador confessa que nasceu inspirada por uma comic strip chamada O Homem de Plástico.
“It seemed to me that the superhero in this strip had what we needed to solve the identity-tracking or reidentification problem. Plastic Man would have been able to place a finger on each of the salient objects in the figure. Then no matter where he focused his attention he would have a way to refer to the individual parts of the diagram so long as he kept one of his fingers on it. Even if we assume that he could not detect any information with his finger tips, Plastic Man would still be able to think ‘this finger’ and ‘that finger’ and thus be able to refer to individual things that his fingers were touching. This is where the playful notion of FINgers of INSTantiation came on the scene, and the term FINST seems to have
stuck.” (PYLYSHYN, pg. 28)
A teoria dos FINTS serve para explicar muita coisa, até mesmo as proezas no basquete de um Michael Jordan (p. 36), já que a habilidade em esportes de grupo tem muito a ver com a capacidade de tracking que o sujeito-atleta é capaz de realizar dentro da quadra ou campo, incluindo as informações que vem da “periferia” percepcional.
Outro exemplo mencionado pelo autor é “Onde Está O Wally?”, uma coleção de livros de Martin Handford que exigia do leitor-participante a realização de uma “varredura” visual em busca do personagem Wally (Waldo, no original) que sempre se escondia em meio a multidões e que precisava ser identificado. Para explicar como conseguimos cumprir a missão de encontrar o Wally, Pylyshyn faz referência à teoria da “inibição do retorno” que presume que certas áreas de um campo visual às quais já atentamos no passado sofrem com uma “inibição da re-atenção” que permitiria que a atenção “varresse” outras
áreas ainda não sondadas (pg. 63). Isto explica que conforme o tempo de dedicação a um certo quadro em que a busca pelo Wally progride a tarefa tende a ser concluída com sucesso.
Outro exemplo: há um dispositivo informático de alta proliferação global e que hoje quase todo ser humano do planeta conhece: o mouse, aquele dispositivo que você move sobre uma superfície plana (preferencialmente “dançando” sobre um mousepad), e que produz na tela de nossos computadores uma setinha que nos permite, por exemplo, selecionar quais programas abrir ou em quais links clickar. Este objeto que ganhou este nome curioso – em Portugal o chamarão de rato – não tem muitas das características dos roedores, funcionando muito mais como uma espécie de dedo digital, uma versão cibernética do nosso dedo indicador. Na teoria de Pylyshyn, é como se nosso aparato percepcional fosse dotado de um “mouse de 4 setas”, e estas setas são como “dedos elásticos” que podem acompanhar até 4 objetos.
Outro exemplo pode ser extraído do âmbito bélico-militar: quando um sniper precisa abater um alvo que se move, exige-se de sua percepção que individualize um ser humano, avião ou drone inimigo que se move através do espaço-tempo e que faça o disparo no momento oportuno. Tal atividade também é replicada digitalmente em video-games de tiro (a exemplo do primitivo Doom e de outros que vieram depois, como Counter Strike), e possui uma imagem icônica na capa do álbum Moving Target, de Gil Scott-Heron, onde o cantor, compositor e poeta coloca-se como alguém que corre sob a mira
da arma do inimigo, realizando assim um comentário irônico acerca do destino da população afroamericana nos EUA, país marcado pelo racismo estrutural, pela persistência do apartheid e pela crueldade das leis Jim Crow.
O alvo que se move é, na música e na poesia de Scott-Heron, o indivíduo vítima da opressão racista, mas aqui queremos compreender filosoficamente como é possível, ou seja, por meio de quais processos perceptuais e cognitivos, que o sujeito que segura a arma (sniper) possa realizar um tiro certeiro.
Segundo Carvalho, em Demonstrative Thought, as teorias perceptualistas emprestam com frequência a imagem do dedo indicador:
“Just as we can maintain the numerical identity of an object in time by keeping our finger pointed at it, the perceptualist claims that something analogous is available at the level of visual perception. This last point is important, and illustrates a further reason as to why the idea of natural predication is useful in our discussion of perceptualism. For when a perceptualist claims that singular elements in perception function like demonstratives in language or thought, we should understand this almost literally, in the sense that there is something in the way particulars are picked out in perception that justifies the analogy with demonstratives. The demonstrative-like element is posited as something that singles out objects in the world ‘directly’, so to speak, without the mediation of other representations, providing the first and most fundamental point of contact between the mind and the external world. This perceptual mechanism is almost literally like a ‘pointing finger’, which can select an object in conceptually unmediated ways just by pointing at it. (CARVALHO, pg. 28)
A teoria de Pylyshyn acerca dos FINST opõem-se às teorias que fundamentam o pensamento demonstrativo na atenção pois sustenta que “a conexão entre mente e mundo é pré-atentiva. Antes de prestarmos atenção, já temos 4 índices rastreando objetos. Ou seja, quando a atenção é direcionada um objeto já foi selecionado como candidato à atenção pelo FINST.” (Ghisoni, em conversa com o autor) Ou seja, antes da atenção atuar, já existem “dedos da percepção” rastreando objetos de maneira desatenta e o holofote atencional irá lançar sua luz sobre algum dos objetos que já foi pré-selecionado pelos fingers of instantion. A hipótese Pylyshyniana é testada em experimentos empíricos que visam demonstram que os sujeitos tem uma alta taxa de sucesso em apontar onde quatro objetos-alvo móveis foram parar. Porém, caso tenham identificado cada um dos objetos com as letras A B C D, dificilmente os sujeitos saberão apontar exatamente onde cada um dos alvos específicos foi parar após sua trajetória.
Isto ocasiona que o modelo FINST seja contestado como não tão adequado ao propor uma analogia com os dedos da mão, sendo proposto um modelo alternativo apelidado HANST e que trabalha com a noção de uma mão que agarra vários objetos no campo perceptual, segregando-os dos objetos que não são alvo de alocação de atenção, possibilitando assim uma distinção entre os objetos dentro da mão e aqueles que ficam para fora desta grabbing hand (CARVALHO, p. 102) Parece-nos que também a teoria de Bruno Latour a respeito do black boxing trabalha com um modelo semelhante a uma grabbing hand
que reúne certos elementos em uma “unidade” sincrética.
CAP. 5: A LENTE DE AUMENTO DA ATENÇÃO CONSCIENTE E A COMPREENSÃO HISTÓRICO-CULTURAL VIGOTSKIANA
No âmbito dos debates acerca do pensamento demonstrativo, o fenômeno da atenção tem muita relevância, a exemplo da noção de experiential highlighting de John Campbell, que propõe que a consciência humana pratica uma espécie de realce semelhante àquele de uma caneta marca-texto no campo perceptual, destacando certos objetos em detrimento de outros.
“We can think of conscious attention as if it were a ‘pane of glass’: a transparent medium that makes the external world available to be consciously experienced by the subject, revealing what the world looks like at the locations one points the glass to. So if we imagine that the glass has limited scope, i.e., that it cannot simultaneously occupy the entirety of the visual field, as the glass is placed in certain portions of the scene it will reveal details of the scene behind it (at the same time that details that fall outside the scope of the glass will be lost). As a consequence, the subject will consciously experience objects behind the glass as experientially highlighted. But as a transparent medium, the glass itself makes no contribution to the phenomenal character of the experience of seeing through it.” (CAMPBELL, 2002: p. 118-9, apud CARVALHO: p. 57)
Aproveitando a metáfora, podemos pensar na lente de aumento (magnifying glass) como um instrumento óptico que permite ao sujeito visualizar certos elementos do ambiente que são demasiado diminutos: um nível acima, teríamos o microscópio como outra tecnologia que propicia a possibilidade de atentar ao minúsculo, ao invisível aos olhos nus. Fiel escudeiro nas mãos do célebre detetive Sherlock Holmes, criado por Conan Doyle, este vidro magnificante serve para que o sujeito possa focar sua atenção naquilo que está sob seu escrutínio e que sem ele poderia passar desapercebido.
Na Psicologia Pedagógica, o propositor da teoria histórico-cultural soviética, L. S. Vigotski, aborda os fenômenos da atenção em seu sétimo capítulo, A psicologia e a pedagogia da atenção. Sua tese é baseada nos cálculos de Wundt, que propunha pensar a consciência como algo mais amplo e abrangente do que a atenção, sendo esta uma das aptidões da consciência que tem por objetivo principal a seleção das impressões simultâneas presentes na percepção consciente: “Nossa consciência pode abranger de forma simultânea de 16 a 40 impressões simples enquanto a atenção é capaz de preparar nosso organismo para reagir simultaneamente a uma quantidade menor de impressões do mesmo caráter, de 6 a 12.” (VIGOTSKI: 2003, p. 126)
Não é preciso ser um gênio da matemática para perceber que na proposta vigotskiana a atenção tem por função a seleção daquilo que está sendo impresso na consciência podendo ser distinguida entre atenção voluntária ou interna, de um lado, e atenção involuntária ou externa, de outro lado. Em sua obra “História do desenvolvimento das funções mentais superiores”, o autor busca compreender como a atenção pôde se desenvolver tanto no aspecto fisiológico, ou seja, através da maturação do cérebro e do sistema nervoso central, quanto no aspecto cultural, isto é, compreendendo de que maneira as interações sociais historicamente condicionadas acabam por produzir gradualmente a atenção voluntária submetida à vontade do sujeito.
Segundo Vigotski, o primeiro psicólogo a considerar a atenção voluntária como produto do desenvolvimento cultural e histórico do homem foi Theodule Ribot (1839 – 1916):
“Ribot denominou a atenção involuntária de natural e a atenção voluntária de cultivada. Ele explica a questão do surgimento da atenção voluntária como o mesmo processo que obriga o homem a fazer a transição da selvageria primitiva para uma sociedade organizada, forçando a fazer a transição do predomínio da atenção voluntária para o predomínio da atenção voluntária. (…) Esta teoria envolve uma revolução enorme nos conceitos de atenção e lança os fundamentos para sua abordagem histórica. Segundo Ribot, atenção voluntária é uma forma histórica da atenção natural que surge sob condições específicas de adaptação do homem social a natureza. assim que o homem deixou o seu estado selvagem, por qualquer que tenha sido o motivo parentes suprimento inadequado de casas, densidade populacional, infertilidade do solo, proximidade com tribos mais bem armadas, e se defrontou com a morte ou com adaptação a condições mais complexas de sobrevivência, Isto é, o trabalho, a atenção voluntária tornou-se um fator fundamental nessa nova forma de luta pela sobrevivência… pode-se dizer que a atenção voluntária não existia antes do aparecimento da civilização ou que surgia por um instante como lampejo de um relâmpago.” (VIGOTSKI: 2021, p. 297, 298)
Outro pesquisador muito importante foi Edward Titchener, que pôde diferenciar entre formas precoces e tardias de atenção, propondo uma teoria a respeito da gênese da atenção voluntária como uma função mental superior em que também há a distinção entre uma atenção passiva e involuntária ou uma atenção ativa e voluntária. Para Titchener, atenção passiva ou involuntária é uma aptidão de seres vivos para os quais
“o novo, o inesperado e o movimento são provavelmente fonte de perigo e o ser vivo que não prestar atenção a eles pode morrer rapidamente. Há porém muitos casos em que uma impressão não apenas não atrai e mantém nossa atenção, mas ao contrário, parece que mantemos a atenção em uma impressão por nosso próprio esforço. Um problema de geometria não causa uma impressão tão forte para nós como um trovão. Quando resolvemos um problema geométrico, tornamo-nos gradualmente interessados nele e ficamos completamente absorvidos por ele, em pouco tempo o problema adquire o mesmo poder sobre nossa consciência, assim como um trovão no instante em que penetra nossa consciência. (TITCHENER, Psychology Text. Moscou, 1914, p. 226-30, apud Vigotski, 2021, p. 300)
Torna-se evidente portanto que existem certas modalidades de atenção voluntária, sob comando do sujeito e que implicam esforço. Estas não podem ser compreendidas apenas a partir da maturação fisiológica mas demandam uma explicação genética de natureza histórico-cultural e dinâmico-causal. Quando nos perguntamos por meio de quais processos foi possível que surgisse na natureza uma criatura capaz de prestar atenção a um problema de geometria ou ler atentamente um tratado de filosofia, não teremos chance de sucesso explicativo apelando apenas para causas fisiológicas mas necessitamos
compreender interações sociais historicamente determinadas, e dentre estas sobretudo a utilização de ferramentas ou instrumentos que servem como meios auxiliares sem os quais capacidades como atenção ou a memória não poderiam ser alçar aos níveis em que passam a merecer a denominação de funções
psíquicas superiores.
Esta experiência do esforço atencional voluntário, esta sensação que tem o sujeito de precisar desenvolver uma aptidão para dominar a sua atenção e exercê-la, esta virtude de difícil maturação e alvo de várias doutrinas pedagógicas e políticas, assemelha-se àquilo que Mary Wollstonecraft conceituou sob o termo exertion. Atenção voluntária, portanto, só pode ser desenvolvida através de um trabalho interior sério por parte do sujeito mas que nunca se passa no vazio social, mas é sempre co-determinado ou mesmo impulsionado pelas interações sociais a seu redor.
Vigotski argumentará que a atenção voluntária possui uma história de desenvolvimento que remete à primeira infância onde a criança tem sua atenção dirigida pelos adultos a seu redor. Isto se dá através do uso de dispositivos linguísticos ou comunicacionais como apontar o dedo para um objeto que está no campo visual da criança e posteriormente com condicionamento do comportamento através da conexão entre um som e uma coisa, ou seja, o estabelecimento de um signo de um certo objeto material.
“Assim, o desenvolvimento da atenção na criança desde os primeiros dias de sua vida está inserida em um ambiente complexo que consiste em dois tipos de estímulos. Por um lado, as coisas, os objetos e os fenômenos atraem sua atenção de acordo com suas propriedades intrínsecas; por outro, os estímulos catalisadores correspondem a, especialmente as palavras, direcionam sua atenção. Desde muito pequena, atenção da criança é uma atenção dirigida… fazendo uma comparação, poderíamos dizer que atenção da criança no primeiro período de vida não se move como uma bola que cai nas ondas do mar e é levada pela força de uma outra onda, mas se move ao longo de canais construídos separadamente, guiada para costa pela sua corrente. Desde o início, para criança, as palavras representam um caminho a ser usado para adquirir experiência. Inicialmente, o adulto dirige a atenção da criança com palavras criando uma espécie de apontadores adicionais – como setas – para os objetos em torno dela, criando com as palavras poderosas instruções-estímulos.” (VIGOTSKI: 2021, p. 317)
Portanto, “é uma operação cultural desenvolvida historicamente que leva ao aparecimento da atenção voluntária. O apontar orienta a atenção inicialmente, e é surpreendente que o homem tenha criado como um tipo de órgão da atenção voluntária o dedo indicador que, na maioria das línguas, tem seu nome derivado dessa função. Os primeiros indicadores foram uma indicação artificial com os dedos e, na história do desenvolvimento da linguagem, vimos que as primeiras palavras tiveram o papel de indicadores semelhantes para chamar a atenção. Por isso a história da atenção voluntária deve começar com a história do dedo indicador.” (VIGOTSKI, op cit, p. 326)
Como apontamos acima, o dedo indicador, conhecido em inglês como index finger, adentrou o mundo digitalizado em que hoje existimos de maneira muito significativa através do cursor do mouse: qualquer internauta surfando na internet sabe que existem duas diferentes manifestações deste cursor, a tradicional seta, com a qual podemos comandar a máquina para que um certo programa seja aberto através de um duplo clique com botão esquerdo, por exemplo, mas que também existe um cursor que mimetiza a função indicativa: os links podem ser selecionados através de um cursor que simula uma pequena mão humana com o dedo indicador em destaque.
No livro de Felipe Nogueira de Carvalho ele menciona alguns exemplos de situações que demandam a atenção do sujeito e que poderiam talvez ser melhor compreendidas através de uma teoria histórico-cultural como aquela proposta por Vigotski: um guia turístico destinado aqueles que visitam a cidade histórica mineira de Ouro Preto recomenda atenção aos aspectos barrocos das estátuas presentes em certas igrejas. Eis uma modalidade de atenção voluntária profundamente dependente de um aprendizado da história e da cultura do séculos precedentes à experiência estética presente – eu só poderei atentar às características barrocas se no meu processo de aprendizado prévio eu tiver tido acesso ao conceito de barroco e à caracterização deste período.
Já a aptidão para o ciclismo, que pode parecer como algo desenvolvido a partir de uma atenção a processos físicos relativos ao equilíbrio e à dinâmica do movimento, não é separável de um aspecto histórico-cultural, e não apenas pois a invenção da bicicleta se dá em certo momento da história humana. A capacidade de andar de bicicleta nunca é desenvolvida pelo sujeito em isolamento, mas quase sempre aprende-se a andar de bicicleta com auxílio alheio, através de instruções que vem de pessoas mais experientes, tanto de um outro ser humano que propicia caminhos para o desenvolvimento do equilíbrio, da auto-confiança e da desenvoltura no veículo, quanto de dispositivos técnicos auxiliares como rodinhas extra que tornam a bicicleta, destinada a ser utilizada com apenas duas rodas, provisoriamente um veículo dotado de quatro rodas, para fins de maturação da habilidade que está sendo desenvolvida. Uma bicicleta, sendo produto tecnológico e dependendo de interações sociais para seu desenvolvimento e para o aprendizado de seu uso, insere-se num fluxo histórico-cultural que remete, no passado distante, à invenção da roda e ao processo de hominização.
Vale frisar também que podemos atentar não apenas a objetos exteriores presentes em nosso campo perceptivo, como outros veículos com os quais interagimos ao pedalar uma bicicleta (desde carros que podem atropelar-nos até um helicóptero com suas hélices girando velozmente e produzindo um alto ruído acima de nossas cabeças). Também podemos atentar a processos internos, como o narrador Proustiano que presta atenção às suas lembranças ou como o filósofo e em sua reflexão busca atentar para uma cadeia de raciocínios ou “trem-de-pensamento” [train of thought], para emprestar aqui, traduzida de maneira literal mas na ciência de seu caráter também metafórico, a célebre definição de atenção proposta por William James.
“Everyone knows what attention is: it is the taking possession by the mind in clear and vivid form, of one out of what seem several simultaneously possible objects or trains of thought… It implies withdrawal from some things in order to deal effectively with others, and is a condition which has a real opposite in the confused, dazed, scatterbrained state.” (JAMES, William. Principles of Psychology (1890), apud WU: 2016)
Atenção envolve também a capacidade de segregação: ela destaca ou sublinha alguns objetos em detrimento de outros, dando aos primeiros uma espécie de palco iluminado por holofotes e relegando os últimos ao status de coisas desimportantes que merecem apenas ficar na sombras ou nas trevas. Evidentemente as ciências naturais após Darwin irão afirmar e a atenção é um produto da evolução por seleção natural e que possui um valor prático na luta pela existência, permitindo reações adequadas diante de perigos iminentes.
Diante de um predador, um animal desatento corre um alto risco de virar janta. Quem quer que conviva com um gato de estimação, ainda que este seja produtos de milênios de domesticação, ou seja, de imposição da vontade humana sobre desenvolvimento das subespécies felinas, conhece o jeito um tanto arisco e assustadiço dos gatos, sempre super atentos aos perigos ambientais, assim como os cães passam por severos tormentos a cada Réveillon ou final de campeonato de futebol com o estrondoso expocar fogos de artifício e bombinhas, uma vez que evoluíram para atentar a tais exageros de decibéis
como potenciais perigos à sua sobrevivência.
CAP. 6: SINGULARIZANDO UM PRÉDIO NA PAISAGEM DA METRÓPOLE
Diante de um cenário urbano contemporâneo altamente verticalizado, repleto de arranha-céus e veículos voadores, um sujeito que contemplasse parado esta paisagem por 30 minutos poderia vivenciar internamente uma ampla diversidade de manifestações da multiforme atenção. Na obra de John Campbell, a imagem de um sea of buildings e depois a imagem de um sujeito que foca a atenção em um prédio específico servem para exemplificar como funciona o experiential highlighting, esta caneta marca-texto interior de que a consciência humana é dotada.
“Suppose that you and I are sitting side by side looking at a cityscape, a panorama of buildings. If I am to think about any one of those buildings, if I am to formulate conjectures or questions about any of those buildings, if I am to be able to refer to any one of those buildings in my own thoughts, it is not enough that the building should simply be there, somewhere or other in my field of view. If it is simply there in my field of view, though unnoticed by me, I am not yet in a position to refer to it; I cannot yet think about it. If I am to think about it, I have to single out the building visually: I have to attend to it. And if I want to refer to that building, to make a remark about that building for your benefit, I have to draw your attention to it. That is what pointing is. Pointing is at once the most basic kind of reference to objects, and the single most useful way of drawing someone else’s attention to an object. So reference and attention are not just different topics. When we think about demonstrative reference in particular— that is, reference made to a currently perceived object on the basis of current perception of it—it seems that reference to the object depends on attention to the object. So we should expect that philosophical problems about reference and psychological theorizing about attention should be capable of illuminating one another. (CAMPBELL: 2002, pg. 2)
Na obra de Carvalho, a capacidade de segregar um prédio específico em meio à paisagem também está em foco no debate sobre atenção e pensamento demonstrativo:
“Our paradigmatic example of a demonstrative thought in this book involves precisely an attentional relation to and a demonstrative thought about a distant object, located far beyond the subject’s near space: this is the case where one gazes out of the window onto an urban landscape and visually selects a particular building among others.” (CARVALHO, p. 129)
Imaginemos que um sujeito está em um mirante diante de um metrópole e inicia sua contemplação em um estado de fome severa, e por isso no interesse de encontrar nas redondezas um restaurante ou lanchonete onde saciar o ronco de seu estômago; ao invés de enxergar apenas um amontoado de casas edifícios, ele vasculha o cenário em busca de um alvo específico, um local que possa lhe servir comida. Atenção consciente e intencional, motivada pela tarefa de alimentar-se. Porém, pode acontecer, caso ele esteja na Ilha de Manhattan em 11 de Setembro de 2001, de sua atenção ser subitamente convocada para um novo alvo que irrompe na cena, um avião que se dirige às Torres Gêmeas. Se antes ele procurava com os olhos um McDonald’s ou um Starbucks, na plena cotidianidade rotineira, agora ele é convocado a atentar no Boeing 747 que parece em rota de colisão com o World Trade Center.
A reação deste sujeito hipotético diante da irrupção deste novo objeto de atenção dependerá de sua função social, de seu estado afetivo, de seus valores e prioridades. Caso se trate de um bombeiro ou de um médico, ele pode de imediato realizar os atos motores que o conduzem de volta ao trabalho, já que prevê de imediato que será requisitado em virtude das chamas ou dos feridos. Porém, uma pessoa de outra profissão, digamos um filósofo ou um romancista, pode permanecer de pés plantados no chão, sem se mover, observando a paisagem urbana que há poucos minutos era tão habitual e corriqueira, e que de súbito mostra-se transtornada pelo caos social mais absurdo.
Enquanto os bombeiros sacam suas mangueiras, os médicos seus remédios e os políticos seus discursos e planos de guerra retaliatória, o filósofo ou artista pode permanecer aparentemente imóvel e inútil, quando por dentro está em plena atividade de elaborar os conteúdos de sua consciência e tentar compreender, por exemplo, que causalidades político-sociais ou que desequilíbrios éticos possam ser os causadores desta peça de sangue e fogo tão espetacular. A atenção, portanto, está sujeita a variações, a attentional shifts, e também oscila entre o voluntário e o involuntário, o top-down e o bottom-up, o instintivo-espontâneo e o aprendido-intelectualizado, sem que possamos compreender a contento o fenômeno tentando reduzi-lo a uma de suas formas melhor reconhecer sua complexidade e dedicar-se à uma infinita decifração das maneiras de atentar que se transformam com o fluxo histórico-cultural.
CAP. 7: O DEDO E A LUA
Há um célebre dito budista que afirma: quando o dedo aponta para a lua, o tolo fica olhando para o dedo. O dedo não passa neste caso de um meio de comunicação, que aponta para algo no mundo, e não deve ser ele mesmo o nosso foco de atenção: fcar estagnado diante do signo é equivalente a tolice de fixar o dedo e não a lua cheia impressionante que ele indica. Não seria a linguagem em seu modo demonstrativo uma maneira de operarmos à semelhança desses dedos que apontam para Luas, ou seja, quando digo “este céu estrelado que tem uma bela lua cheia em seu âmago”, estou utilizando a palavra este de maneira similar a um dedo indicador que estivesse silentemente apontando?
A poesia aí também já começa a se manifestar através de uma imagem de uma “céu com uma bela lua cheia em seu âmago, já que leva o leitor a refletir acerca do que seria o âmago do céu estrelado, uma vez que um observador em Marte, Júpiter ou Saturno, dotado das nossas capacidades sensitivas, não enxergaria lua nenhuma em seu céu estrelado dada a miudeza desta satélite da terra. De modo que a suposição de um ser humano terráqueo debaixo da lua de que está diante do âmago do universo, como se estivesse em seu centro pulsante, talvez possa ser farejado por olfatos céticos como uma falácia egocêntrica nascida de um narcisismo percepcional e conceitual, um antropocentrismo que se manifesta também na crença errônea de uma centralidade Universal do sujeito consciente.
Não basta olhar para lua quando o dedo a aponta, é preciso também corrigir a percepção com a ideia cientificamente induzida de quê a terra não é o centro de tudo e que portanto um avanço rumo a uma objetividade maior do conhecimento exige um descentramento do sujeito, uma superação das Ilusões narcísicas que conduzem o sujeito a se postular como centro, tornando sua perspectiva particular, de maneira ilegítima e fraudulenta, como perspectiva absoluta e verdadeira.
Por exemplo: é possível que eu produza uma espécie de eclipse lunar falso ao fechar um de meus olhos e colocar uma pequena moeda na frente de meu olho aberto, interpondo este objeto metálico minúsculo entre minha retina e a lua cheia que posso observar no céu. O equívoco um tanto ridículo consistiria em absolutizar a minha perspectiva egocêntrica. Da mesma forma, posso fazer um prédio desaparecer de meu campo visual movimentando me pelo espaço até que obstáculos impeçam a minha visão de observá-lo:
“If you walked far enough to one side while keeping the building in view, the building should be progressively occluded by is neighbour until you couldn’t see it anymore. And if you wanted to see it again, you would also expect that if you walked in the opposite direction the building would gradually come into view again.” (CARVALHO, p. 132).
Outra distinção importante diz respeito à percepção de um prédio real, ou seja, um objeto material com o qual posso interagir, entrando dentro dele para pegar um elevador ou quebrando uma de suas janelas ao lançar uma pedra, e a representação pictórica do prédio, que não inclui a sensação por parte do sujeito de que ele pode interagir com aquilo que está sendo ali representado. Segundo Matthen, uma percepção genuína implica que o sujeito pode realizar uma ação no espaço-tempo enquanto que uma representação fotográfica ou pictórica de um objeto da percepção não está no aqui agora nem está sujeito a manipulação.
“When I attend to a building in the urban landscape below, it does not feel like I’m looking at a picture of the city as seen from my office window. It certainly feels like there is a real building out there, below me, in the hic and nunc, a three-dimensional material object I can attend to and think demonstratively of. If I take a picture of the urban landscape as seen from the same vantage point, develop it in the same size as the window frame and hang it next to it, there would be a clear phenomenological difference between looking through the window and looking at the picture.” (CARVALHO, op cit, p. 130)
Esta temática da atenção nos interessa também na filosofia pois está certamente envolvida de alguma maneira em outras funções psíquicas superiores como a abstração e a criação de conceitos. Por exemplo, meu conceito de “maçã” não terá sido forjado a partir de várias experiências perceptivas que tive de várias maçãs diferentes que meus órgãos dos sentidos puderam acessar, maçãs verdes e vermelhas (em vários tons), maçãs maduras e podres, das quais eu abstraio o termo geral “maçã”? Esta seria uma teoria empirista ou perceptualista da formação de conceitos. Porém um conceitualista ou intelectualista, calcado na teoria das formas platônicas, poderia propor que a “maçã” abstrata ou ideal pre-existia às maçãs reais e lhe serviu de modelo, este último sujeito então não perceberia a maçã em sua singularidade mas sim a propriedade geral abstraída “maçã”, enquanto o primeiro sujeito de tendências empiristas poderia reconhecer a particularidade da maçã “única”:
“The contrast here is between a creature who, when perceptually confronted with a particular apple, is only able to recognize that it is once again in a situation where ‘appleness’ is present in its external environment, one versus that is able to grasp it is faced with a particular apple: an apple that might be numerically identical to one encountered in earlier occasions, and that might be encountered and re-identified again in the future.” (CARVALHO, op cit, p. 143)
CAP. 8 – NEUROCIÊNCIAS E ATENÇÃO
Torna-se cada vez mais inegável que a atenção só poderá ser melhor compreendida através do estudo do que se passa em nossos cérebros quando “populações de neurônios”, para emprestar a expressão de Wu, realizam processos que metaforicamente chamamos de highlighting ou spotlighting, ou seja, atividades da consciência descritas à semelhança de uma caneta marca-texto que frisa um certo trecho ou de um holofote de teatro ou lanterna-de-mão que ilumina um certo local.
Nas pesquisas neurocientíficas analisadas em minúcias por Wayne Wu, os neurônios são descritos como entidades capazes de “disparos” diferenciais, mensuráveis por equipamentos hoje cada vez mais precisos (capazes de medir a a chamada firing rate), de maneira a privilegiar um certo estímulo X e desprezar um certo estímulo Y. Da mesma forma, J. Campbell refletirá sobre os fenômenos atencionais que singularizam e frisam um certo X, tornando-o segregado e acompanhável pelo sujeito, através de um mecanismo intrapsíquico em que o alvo atencional possui como fenômeno subjacente “neurons firing in synchrony” (Campbell, op cit, p. 40).
É até mesmo possível que o sujeito, atentando a X e ignorando Y, possa agir como se Y não existisse, dedicando todos os seus recursos mentais para X. Este bias, ou seja, a predileção por X, representa a atenção como uma competição dinâmica que nunca está desvinculada daquilo que o organismo considera sua tarefa a cumprir: “top-down attention involves goals influencing selection. A natural idea, then, is that what biases competition are goals, the tasks one aims to execute.” (WU, op
cit, p. 59)
Este autor irá reivindicar que as neurociências e a psicologia só poderão construir pontes entre si baseadas no alicerce firme de um princípio unificador e que o melhor candidato é o conceito de seleção baseada em tarefa [selection for task]. O que Wu parece falhar em considerar é o quão problemático torna-se falar em “task” sem realizar distinções qualitativas entre tarefas tão diferentes quanto pilotar um avião, salvar uma criança de um atropelamento, matar um pernilongo, escrever um tratado de filosofia, resolver uma equação matemática, tocar violino em uma orquestra, ou jogar videogame.
Se a palavra “task” serve como uma abstração que exclui as especificidades das tarefas, caídos numa forma de behaviorismo raso, que postula o ser humano como animal pragmático que sempre tem seu comportamento e seus mecanismos atencionais voltados à resolução de problemas práticos, sem estabelecer distinções não apenas entre o grau de dificuldade da resolução ou cumprimento das tarefas (algo potencialmente mensurável por uma espécie de “termômetro” que vai de uma base “fácil” rumo
a um topo “difícil”), mas entre tarefas de diferente natureza – uma tarefa pessoal, como aquela envolvida em preparar um suco para consumo próprio, é de natureza bastante diferente de uma tarefa que transcende o indivíduo e que é colaborativa, associativa, como ocorre com ativistas de um movimento social, músicos de uma filarmônica, companheiros de revolução etc.
Durante um certo tempo, o sujeito atarefado por estar atentando para algo que logo cessará de interessá-lo ou ocupá-lo se, por exemplo, seu horário de trabalho se esgotou, ou sua performance acabou: o músico, após o fim do concerto, cessa de dedicar à partitura e ao maestro o foco da atenção que devotou durante a performance pública da sinfonia; a atenção “relaxa”, o organismo descansa de sua concentração, um fenômeno que Campbell, atento ao dinamismo do fenômeno, chamou de attentional shifts e que coloca em cheque a própria metáfora da caneta marca-texto, já que esta deixa marcas
perenes no papel grifado, enquanto a experiential highlighting não pratica nenhuma modificação perene do objeto da atenção e este não cessa também de variar de acordo com as tarefas e os ócios.
“Similarly, if you are, as it were, visually interrogating a scene, for example if you are a policeman looking for signs of trouble, the visual information-processing you are performing is in the service of your conscious objectives; once you believe you are off-duty your vigilance may relax and the information-processing is simply no longer performed… Conscious attention to an object—the experiential highlighting of that aspect of your perception—means that this aspect of your experience has a different functional role to the functional role it had when it was not so highlighted.” (CAMPBELL: 2002, p. 3)
Devemos aqui sublinhar ainda que, segundo Campbell, a filosofia se dedicou bastante ao estudo da referência mas muito pouco ao estudo da atenção. Esta última pesquisa vive um verdadeiro boom no âmbito das ciências cognitivas/neurociências e também da psicologia experimental.
CAP. 9: OS DIFERENTES SENTIDOS E SUAS MODALIDADES DE ATENÇÃO
Em um experimento que poderíamos chamar de “fingir-se de cego por 30 minutos”, o sujeito experimental tem seus olhos vendados e deve obedecer às ordens do experimentador que o indica, através de instrução verbal, objetos sensíveis aos quais ele deve atentar. Neste caso, não seria absurda ou incompreensível um realização de uma tarefa ordenada tal como “atente à melodia da música que você está ouvindo!” ou “atente à textura da fruta que está segurando!”
O sujeito poderia até mesmo ser bem-sucedido, mesmo em sua “escuridão visual”, de identificar o objeto auditivo ou tátil de sua atenção (“isto é Beatles!” ou “estou passando o dedo em um abacaxi!”). Neste caso, teríamos uma atitude de re-conhecimento que expressa algo da experiência passada do sujeito – ele não poderia ter reconhecido os objetos de sua atenção caso nunca tivesse ouvido a música dos Beatles ou nunca tivesse segurado um abacaxi.
O cego provisório deste experimento imaginário pode, em suas trevas temporárias, valer-se de sua experiência visível prévia inclusive para matar charadas relativas a outras experiências sensoriais: se lhe dão um livro para tatear, ele poderá se beneficiar dos livros que já viu para identificar com facilidade qual o objeto que está sob sua atenção tátil. Já um sujeito nascido cego não poderia ter um conceito adequado nem dos livros (nunca viu as letrinhas impressas numa série encadernada de papéis como os leitores de visão intacta viram, de maneira que para ele o livro, desde que não esteja escrito em braille, é uma espécie de tijolo-de-papel que não lhe abre a possibilidade de uma experiência aprofundada do pensamento ou da criatividade alheia através da leitura própria) nem das cores, já que não pôde ter nenhuma experiência da diversidade cromática. Este exemplo expressa um problema que interessou há tempos John Campbell:
“…a problem that had long interested me: the connections between references to objects made on the basis of perceptions of them in different sensory modalities, such as sight or touch or hearing. (…) The fundamental problem is to articulate the relation between attention to an object and knowledge of the reference of a demonstrative referring to it” (CAMPBELL, J. Oxford: 2002, Preface, V.)
“Those who do not have our experience of the world will not be able to think of it as we do. Someone who has never had experience of the colours will not be able to understand the concepts of the different colours. As Locke said, a scholarly and indeed brilliant individual born blind, on pursuing an investigation into the nature of the various colours, may eventually say of scarlet, “Tis like the sound of a trumpet!’, but this will not reflect any knowledge of what scarlet is. (CAMPBELL, J. Oxford: 2002, Introduction, p. 1)
Pode-se atentar a sons, a cheiros, a aspectos táteis dos objetos materiais, mas não nos é possível separar os estímulos sensíveis provenientes de diferentes sentidos como se fossem compartimentos estanques. Como exemplifica Campbell, eu posso perfeitamente reconhecer um helicóptero sem vê-lo, apenas pelo som que ele faz, mas este reconhecimento também depende em parte do fato de que eu previamente conheci um helicóptero visualmente e aprendi a conectar sua aparência e o som que costumam fazer suas hélices.
Para além da distinção entre atenção voluntária e involuntária, podemos também distinguir entre uma atenção visual que envolve movimentos corporais (alguém me diz “aquela mulher que conhecemos no boteco ontem está atrás de você” e eu me viro para olhá-la) e uma atenção visual que não envolve movimentos reconhecíveis mas sim um “enxergar pelo canto do olho” (“If you say to me, ‘Don’t look now, but that man over there seems to recognize you’, I may exactly maintain fixation on my wine-glass, but look at him, as we say, ‘out of the corner of my eye’” (Campbell, 2002, p. 9).
“Suppose that you have a complex scene before you—say, a number of people you have never met before. As you look over the throng, you attend now to one, now to another face in the crowd. What does this experiential highlighting of one rather than another person come to? It affects the functional role of your experience of that person. It means that you are in a position to keep track of that person deliberately over time, you are in a position to answer questions about that person on the basis of vision, and you are now able to act with respect to that person. In an ordinary situation, until you highlighted that person in experience, you could have done none of those things.” (CAMPBELL, op cit, p. 10)
CAP. 10: GERAÇÃO DESATENÇÃO
Dito isto, partiremos agora para a tentativa de decifração de eventos cotidianos contemporâneos onde a atenção é requisitada. Em várias situações do dia-a-dia, a frase “preste atenção!”, frequentemente entoada em tom imperativo ou escrita com ponto de exclamação, visa produzir um efeito no mundo bastante peculiar: a ativação de uma aptidão mental ou habilidade de consciência que não é simples de decifrar. A frase pode ser dita por uma professora diante da lousa, advertindo um aluno demasiado avoado. Ou pode ser dita por um médico diante de seu paciente no momento grave da revelação do diagnóstico ou da medicação sugerida. Ou pode ser dita por um guarda de trânsito que alerta um transeunte acerca do perigo de ser atropelado pelo ônibus que está em rota de colisão com seu ameaçado corpo. Ou pode ser dita por um juiz que condena um réu que distraiu-se ou dormiu ao volante e matou pessoas no trânsito: “sua desatenção custou vidas”. Os exemplos poderiam ser multiplicados.
Este dito pode ter efeito performativo, ou seja, tal qual exposto por Judith Butler, inspirada na linguística de Austin, em vários casos este dito faz acontecer : quem diz a outrem “preste atenção!” pode produzir um efeito no mundo que consiste em “ligar” no outro, através do dedo invisível da palavra, uma espécie de interruptor que torna ativa e direcionada a um certo alvo uma aptidão humana que interessa profundamente a todas as ciências humanas compreender a fundo. Atentemos, pois, à atenção!
A atenção é um fenômeno múltiplo, abordável por várias perspectivas: do ponto de vista ético, já se afirmou que consiste “na forma mais rara e pura de generosidade”, como afirma Simone Weil, o que implica que ser desatento ao outro é uma maneira de ser viciosamente egocêntrico. Pensadores têm afirmado que a possibilidade do altruísmo (Cf. Thomas Nagel), ou o poder da empatia (Cf. Roman Krznaric), só podem se concretizar através do exercício virtuoso da atenção generosa (alocêntrica ou alterofílica).
Do ponto de vista pedagógico, proliferam interpretações sobre os desafios para que os educadores conquistem aquilo que não cessam de pedir em frente ao quadro negro: “atenção, turma!” A “Geração Ritalina” é diagnosticada de maneira crescente com a famigerada TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, enquanto o conluio da indústria farmacêutica com os psiquiatras empurra comprimidos às mancheias nas goelas de uma juventude plugada desde cedo nos apps como os Tik Toks e Instagrams.
“No enxame digital”, para emprestar a expressão de Byung-Chul-Han, parece que somos cada vez mais transformados em sujeitos distraídos e cuja “hiperatividade” consiste principalmente num frenético bater de dedos sobre telas. O pensador brasileiro Rossano Cabral Lima tem se mostrado um dos mais relevantes intérpretes de nossos tempos de desatenção, como fez em seu livro “Somos Todos Desatentos? O TDA/A e a Construção das Bioidentidades” . O short attention span é um fenômeno cada vez mais disseminado na era dos feeds e tweets, onde quase ninguém parece ter nem o tempo nem a atenção necessários para a leitura focada do Ulisses de Joyce ou da Crítica da Razão Pura de Kant – na verdade, com que frequência abandonamos no meio, por preguiça ou cansaço, um tweet demasiado longo!
O pensador alemão Christoph Türcke pontua que “a galopante síndrome de déficit de atenção somente pode se tornar compreensível por meio de uma abrangente teoria da cultura”, e o autor que prevê que este problema “está apenas em seus primórdios e seu verdadeiro ímpeto ainda está porvir” (p. 130-131):
“De fato vivemos o início de uma fase histórica na qual a atenção humana se apresenta como um bem passível de ser perdido. Com maior urgência, pois, coloca-se a questão: como afinal foi adquirido outrora o que agora está em vias de se perder? Como logrou penetrar a natureza humana a ponto de, por milênios, parecer um dom natural? Quem tenta entender com seriedade os atuais déficits de atenção vê-se arrastado em direção a um passado remoto e diante da questão sobre o quê afinal se pode entender por hominização. (TÜRCKE, p. 11)
CAP. 11: AS MUTAÇÕES HISTÓRICAS DA ATENÇÃO
É preciso compreender que a atenção não é uma aptidão fixa e imutável, que teria sido forjada pelo processo de evolução da vida orgânica neste planeta e que, em sua manifestação nos sujeitos humanos, não teria sofrido nenhuma modificação significativa no decorrer do processo histórico. É muito mais provável que a atenção tenha passado, esteja passando e vá passar por modificações radicais de acordo com o momento histórico em que os sujeitos vivem. De modo que devemos levar em consideração não apenas a bio-evolução mas também a tecno-evolução, como sugerido por Stanislaw Lem, para uma compreensão mais ampla dos fenômenos.
Para exemplificarmos nossa tese, iremos refletir sobre o modo como a invenção de novos meios de comunicação impactou os respectivos regimes de atenção, em diálogo com obras contemporâneas de pesquisadores como Nicholas Carr e C. Türcke. Nas obras de ambos existe um esforço no sentido de demonstrar o quanto novas tecnologias surgem e impactam a maneira como os sujeitos humanos irão operar suas capacidades atentivas. Podemos pensar no surgimento do cinema como a disseminação de um dispositivo social que criou uma nova experiência compartilhada de atenção: a escuridão da sala propicia que os sujeitos possam realizar uma “imersão” nas imagens projetadas na grande tela, e os olhares dos sujeitos nas trevas olham todos em direção a um “horizonte” comum, o filme.
É evidente que antes do surgimento da chamada sétima arte já havia espetáculos teatrais ou operísticos que ocorriam em espaços em que o palco iluminado e a configuração das poltronas do público convidavam a uma imersão naquilo que estava sob os holofotes, no entanto o advento do cinematógrafo e da sala de cinema certamente ajudam a instituir socialmente um novo regime de atenção devido a peculiaridade do novo meio, sobretudo o processo de montagem que permite ao cineasta realizar uma obra contendo “saltos” espaço-temporais inimagináveis para um para um dramaturgo. Para Turcke, a disseminação massiva de filmes a partir do século 20 acabou por produzir sujeitos cada vez mais acostumados narrativas audiovisuais repletas de cortes, em um processo que atinge seu paroxismo no contexto contemporâneo em trailers e videoclipes extremamente entrecortados e dos quais foram banidos os longos planos-sequência, convidam à contemplação, com os quais se deleitavam cineastas como Tarkovsky, “escultor do tempo”.
A mutação histórica que conduziu à “domesticação” do cinema também impactou o regime de atenção: assistir a um filme “no escurinho do cinema” (para lembrar da canção de Rita Lee que faz uma crônica cômica de ocorrências neste espaço), diante de uma tela gigante, é bem diferente do que assisti-lo em casa, em um televisor de 20 polegadas, através de uma fita VHS, com as crianças brincando ao redor do aparelho e com várias pausas para ir ao banheiro ou até a geladeira. A imersão na obra propiciada pelo cinema é insuperável, ainda que seja possível que um espectador possa pegar no sono diante de uma obra que o aborrece ou que outro espectador pode perder o fio da meada por estar com a mente preocupada com ocorrências externas à sala.
O cinema passa por outras transformações históricas nos dias que correm através da disseminação concomitante de serviços de stream com Netflix e celulares conectados à internet cada vez mais populares. Tal contexto também impacta o regime de atenção: a sala escura do cinema, compartilhada com uma maioria de pessoas estranhas, é substituída pelo televisor em LED na sala de estar compartilhada com amigos e familiares, diante do qual quase todos postam sim munidos desses aparelhos celulares e frequentemente disparando mensagens por WhatsApp, checando notificações de Facebook ou rolando feeds de Instagram. Torna-se cada vez mais comum um tipo de espectador incapaz de concentrar-se no fluxo audiovisual tal como ele foi concebido pelos produtores da película, um espectador distraído e multitarefas que muitas se utiliza do filme assistido com pretexto para postagens em redes sociais simultâneas ao próprio desenrolar da obra.
Esta conjuntura inédita que Nicholas Carr disseca em livros como The Shallows – What The Internet Is Doing To Our Brains e The Glass Cage, nos quais desenvolve reflexões bastante inspiradas por Marshall McLuhan, pensador canadense célebre pela criação de expressões como “aldeia global” e “o meio é a mensagem”. Com advento das tecnologias digitais e dos fenômenos sócio políticos e econômicos que ficaram conhecidos sob o nome de globalização, deixamos para trás a era de hegemonia da “galáxia de Gutenberg ”, ou seja, nossa Civilização não é mais aquela que emergiu da imprensa e dos livros, jornais e revistas que esta nova tecnologia pôde produzir em massa. Mais do que o conteúdo que foi impresso, a própria forma nova moldou a civilização Gutemberguiana e transformou a mente humana. Hoje a travessamos uma nova fronteira com a chegada da era da internet:
“McLuhan understood that whenever a new medium comes along, people naturally get caught up in the information – the ‘content’ – it carries… McLuhan saw that in the long run a medium’s content matters less than the medium itself in influencing how we think and act. (…) Media work their magic, or their mischief, on the nervous system itself. (…) Every new medium, McLuhan understood, changes us. ‘Our conventional response to all media, namely that is how they are used that counts, is the numb stance of the technological idiot’, he wrote. ‘The content of a medium is just ‘the juicy piece of meat carried by the burglar to distract the watchdog of the mind.’” (CARR: 2011, p. 3)
A emergência de uma nova galáxia de mídia digital, sobretudo com a popularização do acesso à rede mundial de computadores, acarreta impactos tremendos nas mentes humanas cada vez mais submetidas a um regime de hiperconexão e hiperatividade baseada na interação com máquinas operadas por controles remotos, teclados, mouses e touchscreens. Segundo Carr, tal conjuntura daí produzindo sujeitos cujo cérebros então progressivamente se tornando incapazes de conhecimento aprofundado e de reflexão densa, numa espécie de superficialização generalizada induzida pelas novas mídias, o que
pessoas que este autor denomina como the shallows e dotadas d’um juggler’s brain:
“Dozens of studies by psychologists, neurobiologists, educators, and Web designers point to the same conclusion: when we go online, we enter an environment that promotes cursory reading, hurried and distracted thinking, and superficial learning. It’s possible to think deeply while surfing the Net, just as it’s possible to think shallowly while reading a book, but that’s not the type of thinking the technology encourages and rewards. One thing is very clear: if, knowing what we know today about the brain’s plasticity, you were to set out to invent a medium that would rewire our mental circuits as quickly and thoroughly as possible, you would probably end up designing something that looks and works a lot like the Internet. It’s not just that we tend to use the Net regularly, even obsessively. It’s that the Net delivers precisely the kind of sensory and cognitive stimuli—repetitive, intensive, interactive, addictive—that have been shown to result in strong and rapid alterations in brain circuits and functions. With the exception of alphabets and number systems, the Net may well be the single most powerful mind-altering technology that has ever come into general use. At the very least, it’s the most powerful that has come along since the book.” (CARR, op cit, p. 115)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os filósofos negligenciaram por muitos séculos a atenção, e teríamosdificuldades de localizar menções a ela entre as faculdades da alma elencadas por muitos grandes pensadores, ainda que seja cada vez mais evidente que atenção consciente é aquilo sem quê não poderia haver nem pensamento demonstrativo, nem processos epistêmicos de abstração, nem consolidação de memórias.
O cada vez mais pervasivo problema do déficit de atenção – que motiva vídeos de influenciadores digitais (como este “Tempo e Atenção” do canal Tempero Drag) e análises de jornalistas investigativos (como Anatomia de Uma Epidemia, de Whitaker), indica muito mais do que um problema que deve interessar apenas ao campo da pedagogia ou da psicologia social. Pois o problema da atenção na contemporaneidade impacta também a produção filosófica, que amadurece e se constitui através reflexões e pensamentos que demandam um regime de atenção hoje em crise ou mesmo em colapso. Torna-se cada vez mais raro o sujeito capaz de ler de cabo a rabo os tratados filosóficos de Kant, Hegel ou Espinosa, afinal quem perderia semanas de seu tempo lendo A Crítica da Razão Pura ou a Ética demonstrada à maneira dos geômetras quando pode ter acesso ao verbete da Wikipédia sobre essas obras, ali sintetizadas?
Caso sejamos incapazes de dar a devida atenção aos fenômenos atencionais seremos cada vez mais os reféns das megacorporações fabricantes de Ritalina, cada vez mais os superficiais e fúteis consumidores de informações voláteis produzidas por oligopólios de mídia. Para além disto, caso Simone Weil tenha razão, o fracasso no exercício da atenção seria um fiasco em nossa prática da virtude da generosidade, como escreve Ecléa Bosi:
“A atenção é uma forma alta de generosidade e todas as vantagens da instrução são secundárias ao exercício da atenção: é um bem em si independente de recompensa ou aquisição de informações. Os estudos são nada mais que uma ginástica da atenção, seja qual for seu conteúdo. Ela nos convida a privar tudo o que chamamos de eu da luz dá atenção e transferi-la para o que está fora de nós, movimento contrário ao de certa psicologia que procura escavar os poços do ego na história individual. Nesses exercícios de desprendimento e de observação a atenção vai penetrar a ação de uma qualidade nova.” (BOSI, E. O Tempo Vivo da Memória. 2a ed, Ateliê Editorial, 2013, p. 211).
É chegada a hora da filosofia dedicar-se à atenção com mais afinco, compreendendo a complexidade desta aptidão de nossa mente sem a qual não poderíamos ter pensamentos demonstrativos com conteúdo singular, nem consolidação de memórias duradouras, nem experiência estética significativa, nem condutas éticas baseadas na alteridade que atenta empaticamente ao outro quebrando a jaula do eu. No âmbito epistemológico, ético-político, estético e lógico, a atenção é partícipe fundamental de processos complexos que este trabalho procurou apontar sem a pretensão de esgotá-los.
Para finalizar, concluímos dizendo que, em nossa opinião, a atenção não pode ser compreendida apenas por um viés biológico ou fisicalista, que a considerasse apenas como o fruto de um processo de evolução das espécies que teria nos concedido uma “faculdade da alma” que não se alterou nos últimos milênios; pelo contrário, julgamos que não devemos nos limitar à perspectiva evolucionista e à compreensão que a neurociência nos traz, por preciosas que sejam tais pesquisas, e ganharemos mais adicionando a esta compreensão uma leitura genealógica que atente para as transformações histórico-culturais ocorridas com a atenção durante o processo de hominização e através das transformações das civilizações.
A atenção é um fenômeno em devir, não um ser em estado pétreo, e vale aqui a lição ensinada por Vigotski em sua magistral pesquisa acerca das funções psíquicas superiores em que o autor sempre destaca a necessidade de compreensão a partir de duas linhas, que podem ser ditas confluentes, mas que não se confundem: a linha biológico-evolutiva e a linha histórico-cultural. Atentar não é a mesma coisa no paleolítico e após a invenção da imprensa por Gutemberg; tampouco atentar é a mesma coisa para alguém que pôde ler os primeiros jornais impressos e o sujeito contemporâneo plugado na Internet.
Em nossa época, quando a capacidade para a atenção prolongada parece estar em déficit, acarretando a superficialização generalizada da reflexão, com a produção em massa de sujeitos incapazes de se dedicar à leitura de um livro na íntegra, com impactos devastadores para a consolidação de conhecimentos e memórias duráveis, pode-se dizer que a atenção é também um imperativo. Sem ela, sem o exercício de nossa capacidade para o foco, para a concentração, a vida humana fica empobrecida e nossas relações talvez careçam de virtudes essenciais cuja prática é impossível aos desatentos.
Se “tudo é perigoso”, isto só frisa a necessidade imperiosa de lembrarmos o coro da canção : “ É preciso estar atento e forte / Não temos tempo de temer a morte / Atenção para as janelas no alto / Atenção ao pisar o asfalto, o mangue / Atenção para o sangue sobre o chão / Atenção! / Tudo é perigoso…”. Contra os perigos da desatenção, pratiquemos pois, infindavelmente, a reflexão sobre a atenção e todas as práticas de concentração que tornam nossa condição melhor ao fazer-nos “atentos e fortes”.
BIBLIOGRAFIA
BOSI, E. O Tempo Vivo da Memória – Ensaios de Psicologia Social. 2a ed, Ateliê Editorial, 2013.
CARVALHO, F. N. Demonstrative Thought – A Pragmatic View. Berlin/Boston: De Gruyter, 2016.
CAMPBELL, John. Reference and Consciousness. Oxford University Pess, 2002.
CARR, Nicholas. The Shallows – What The Internet Is Doing To Our Brains. New York: Norton, 2011.
JAMES, William. Principles of Psychology (1890). Apud WU: 2016.
PYLYSHYN, Zenon. Things and Images: How the Mind Connects with the World. M.I.T. Press, 2007.
TITCHENER, Edward. Psychology Text. Moscou, 1914, p. 226-30, apud Vigotski, p. 300.
TÜRCKE, C. Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção . Paz & Terra:
2016.
VIGOTSKI, L. S. História do Desenvolvimento das Funções Psíquicas Superiores.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2021.
—————-. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003.
WEIL, Simone. O Enraizamento. Lisboa, Relógio D’Água, 2004.
WU, Wayne. Attention. Routledge, 2014.
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Publicado em: 04/06/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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