Nos tempos mais truculentos da ditadura, sob a vigência do atroz AI-5, a repressão desceu seu porrete amedrontador sobre vários artistas brasileiros que foram censurados, encarcerados ou exilados. Era o apogeu da cultura do silenciamento que os milicos impunham em sua “Cruzada Anticomunista” (para citar o título do livro de Parenti). Estamos carecas de saber que a galera da Tropicália foi uma das mais alvejadas pelos censores e silenciadores – e neste Novembro de 2022, em que faleceu Gal aos 77, vale a pena recordar alguns eventos culturais e políticos daquela época.
Um caso emblemático daquela conjuntura de sufocamento das artes pelo militarismo autoritário é o espetáculo Gal a Todo Vapor, realizado em 1971 no Teatro Teresa Raquel, em Copabacana. Prestes a viajar para Londres, onde já estavam Gil e Caetano, Gal Costa cantou ali com um travo de amargura na voz e com um pé no avião. Pois o sonho hippie parecia estar morto, assim como a Tropicália parecia ter sido “abatida em pleno vôo pelo AI-5”, como escreveu o jornalista Tárik de Souza.
“Quando você me ouvir cantar
Venha, não creia, eu não corro perigo!
Digo, não digo, não ligo, deixo no ar.
Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar…
Tudo vai mal, tudo!
Tudo é igual quando eu canto ou sou mudo
Mas eu não minto, não minto
Estou longe e perto
Sinto alegrias, tristezas e brinco
Meu amor
Tudo em volta está deserto, tudo certo…
Tudo certo como dois e dois são cinco.
Quando você me ouvir chorar
Tente, não cante, não conte comigo
Falo, não calo, não falo, deixo sangrar
Algumas lágrimas bastam pra consolar…
Tudo vai mal, tudo!
Tudo mudou, não me iludo e contudo:
A mesma porta sem trinco, o mesmo teto
E a mesma lua a furar nosso zinco…
Meu amor
Tudo em volta está deserto, tudo certo.
Tudo certo como dois e dois são cinco…”
Em livro muito interessante, Tudo em volta está deserto: Encontros com a literatura e a música no tempo da ditadura, Eduardo Jardim não apenas se apropriou de um verso da canção caetânica para dar título à sua obra. Fez mais: concedeu uma crônica historiográfica que leva o leitor a compreender mais profundamente os significados profundos desta produção cultural aqui em foco.
Este “TUDO EM VOLTA ESTÁ DESERTO”, segundo Jardim, era decodificado pelo pessoal que lotava o teatro naquela ocasião como referência direta à terra devastada que a Ditadura se esmerava em construir desde 1964. A conjuntura desértica que Gal cantava remetia ao estrangulamento das liberdades, à proliferação de desaparecimentos, ao sumiço de militantes que combatiam o regime, à supressão dos ímpetos libertários e das liberdades de expressão e reunião pela ditadura militar:
“Aqueles jovens apinhados em uma sala fechada, em um estado de forte emoção, sabiam que, fora dali, tudo era mesmo um deserto e tudo estava tão errado como a matemática da canção. O público era basicamente de estudantes e jovens artistas, os quais, de algum modo, tinham sido atingidos pela dura política repressiva que se instalara com o AI-5.
O governo avaliava com razão que os quadros das organizações armadas, que contestavam o regime, eram recrutados no meio universitário. Por este motivo baixou o decreto 477, em fevereiro de 1969, que punia com a expulsão da universidade e impedia o reingresso nela, por 3 anos, de todos os que participassem de atividades consideradas subversivas, como convocação de greves, organização de passeatas, produção ou porte de material de propaganda política, uso das dependências escolares para fins de subversão ou prática de ‘ato considerado imoral ou contrário à ordem pública’.
Além de dificultar a arregimentação de quadros para os grupos armados, outro objetivo do decreto foi impedir que o movimento estudantil se reorganizasse e voltasse a promover manifestações como as ocorridas nos anos anteriores.” – EDUARDO JARDIM
Para além do deserto por todo lado que é acarretado por um regime militarizado de opressão totalitária, como aquele instalado pelo golpe de 1º de Abril de 1964 e tornado ainda mais bruto no fim de 1968, vale a pena refletir sobre este esplêndido verso “tudo certo como 2 e 2 são 5”, uma referência a 1984 de George Orwell.
Este refrão é maravilhoso em sua antenada menção à distopia que Orwell publicou em 1949 – “tudo em volta está deserto, tudo certo” revela a maestria do poeta que, se na primeira parte do verso carrega num pathos lamentoso, na segunda parte certamente nos soa super irônico. “Tudo certo”?!? Se tudo ao redor está deserto, nada está certo – o que o eu lírico confirma, escolhendo mesmo a via satírica que seu tudo certo já sugeria. “Tudo certo como 2 e 2 são cinco…”
No livro-pai de todas as distopias contemporâneas, o Partido Único exige de seus súditos que afirmem que “2 + 2 = 5” caso o Grande Irmão assim o exija. O destino de Winston Smith enquanto funcionário do Ministério da Verdade – onde cotidianamente se fabricam mentiras e se excluem jornais, revistas e livros no Buraco da Memória, tudo para servir a atual encarnação da ideologia atribuída ao líder Big Brother – evoca um constante esforço para fazer o falso passar por verdadeiro.
Bem, 2 + 2 nunca será 5 a não ser que já tenhamos deixado a sociedade se degradar a tal grau de barbárie que o conceito de verdade objetiva morreu, e em seu lugar foi posto um conceito acanalhado de verdade: verdadeiro é o que o patrão fixou como tal.
Na verdade, confesso que não sei se Caetano leu ou não 1984 – estou supondo que sim pois ele sempre foi um leitor onívoro e provavelmente não teria deixado escapar um dos livros mais importantes do século XX. De todo modo, o cancionista sentiu na pele a prepotência do poder autoritário nos cárceres do regime, no exílio, sendo alvo de censura – e um pedacinho desta história Caetanesca está no livro e no documentário Narciso em Férias.
“Como 2 e 2” parece-me uma canção que encapsula o entrechoque do artista libertário com o poder autoritário, fazendo-o décadas antes do Radiohead propor algo semelhante na faixa “2+2=5” que abre Hail To The Thief. As ditaduras, as teocracias, os totalitarismos, todos os regimes de mandonismo autoritário, desejam as artes postas sob correntes ou coleiras. Não querem cidadãos livres para expressar fatos e afetos ao criar canções, filmes, livros; quer súditos servis, papagaios submissos que repetirão 2 + 2 =5 se o patrão, o papa, o pastor, o aiatolá, o papai, o gangster-chefe assim o ordenar.
Este desvio que aqui fizemos pela arte tropicalista nos tempos da ditadura não é à toa: é pra lembrar que, na Ditadura, as inovações estéticas e comportamentais sugeridas pelos artistas da Tropicália foram duramente reprimidas e silenciadas, e que foi justamente a Constituição de 1988, aquela da “redemocratização”, que enfim derrubou a censura às artes e aos meios de comunicação após 10 anos de vigência do infame, do justamente famigerado, do entulho autoritário odiável conhecido como Ato Institucional 5:
A este conceito canalha de Verdade que a ditadura distópica impunha, que reduz a verdade àquilo que foi fixado pela autoridade hegemônica provisoriamente vigente (e, em nosso caso e na maioria dos outros, desprovida da legitimidade que o sufrágio universal concede ao representante eleito), a este conceito fake de verdade conectada ao que os poderosos querem que assim seja tido, é preciso se insurgir. Nossos melhores artistas, em meio a diversas distopias, são aqueles que se insurgem para dizer que o Grande Irmão, ou o General metido a fodão, não estão com essa bola toda: goste o opressor ou não, a soma de 2 e 2 será sempre 4 independente de seus decrépitos decretos.
Eduardo Carli de Moraes
14/11/2022
In Memoriam: GAL COSTA (1945 – 2022)
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Publicado em: 14/11/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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