Quando a fé enfurece mais do que amansa, quando convida à violência e não à partilha, quando é a desculpa para a intolerância e uma ocasião para a ruptura de diálogo com o outro em sua diferença, é preciso perguntar sem medo de que nos acusem de heresia: de que vale a conservação desta fé furiosa que tantos malefícios comunitários dissemina?
Em Fé e Fúria, um filme de Marcos Pimentel, temos um dos melhores acessos à devida contextualização sobre a ascensão do cristianismo neopentecostal e a esteira de crimes de intolerância religiosa que ele vem deixando atrás de si, sobretudo no que diz respeito às fúrias desatadas (e cada vez mais empoderados através da força econômico-financeira e mass-midiática) contra os praticantes de religiões afrobrasileiras. Como bem expressou a Revista Curta Circuito (2020):
“O Brasil é o país das misturas e dos contrastes. Ao melting pot das raças que aqui se encontraram – o negro trazido da África, o índio nativo, o colonizador europeu – agregou-se um sincretismo de culturas e religiosidades. Muitas vezes esses cruzamentos e congregações não se deram de modo pacífico. Em outras, geraram uma riqueza sem paralelo em qualquer outro lugar do mundo. Do candomblé, do catolicismo e do espiritismo – com uma pitada indígena – nasceu a umbanda. Por outro lado, temos um cristianismo protestante com sabor local, único. As lendas, o folclore e as histórias sensacionalistas de teor urbano preenchem um imaginário que a maioria dos brasileiros transmite de geração a geração. (…) [Fé e Fúria] é um documentário recente sobre as diferenças intransponíveis entre os evangélicos e os praticantes do candomblé e da umbanda. Quase como em uma guerra santa, ouvimos argumentos e ponderações de ambos os lados. Alguns lógicos, outros baseados no medo ou no poder econômico. A linguagem evangélica é usada até por traficantes de drogas, agressões são cometidas em nome de Deus, existem os “deuses deles” e os “deuses nossos” (sic). Marcos Pimentel faz um registro poderoso dessas manifestações, que muito dizem sobre o Brasil atual.” – ACESSAR REVISTA COMPLETA EM PDF (93PGS)
Por Bianca Dias – psicanalista e crítica de arte e autora do livro “Névoa e assobio”, fez História da Arte na Faap e é mestre em Estudos Contemporâneos das Artes na Universidade Federal Fluminense. Revista Curta Circuito, 2020, pg. 35.
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Os caminhos para entrar em contato com o sensível e os aspectos mágicos e enigmáticos da existência são muitos e heteróclitos. No filme Fé e Fúria, Marcos Pimentel faz uma aposta precisa na elucidação dos modos pelos quais as experiências, crenças e instituições religiosas incidem sobre as vidas subjetiva e coletiva. Se Deus é um nome que damos ao que transcende e escapa, se a religião é o testemunho de nossa incompletude essencial, da falha ontológica que nos constitui como sujeitos, cabe perscrutar os caminhos da invenção de ficções que orientem nossa existência coletiva.
Fé e Fúria se debruça sobre conflitos religiosos existentes nas favelas e subúrbios de Rio de Janeiro e Belo Horizonte, para analisar o recrudescimento da crescente onda conservadora no país, que surgiu, essencialmente, de uma relação com a religião que deixou de ser fonte articuladora e aglutinadora de sentido, e cria uma espécie de vazio ético e existencial que culmina em devastadoras consequências no âmbito social e político, nas trocas simbólicas e na relação com a alteridade que vão da intolerância religiosa aos gestos mais extremos de extermínio da diferença, culminando, por exemplo, na destruição de terreiros por traficantes evangélicos.
Em depoimentos colhidos a partir de uma abertura para o desconhecido, Marcos Pimentel avança em uma escuta fina, acolhendo a fé a partir do enigma e da singularidade, como na figura excêntrica de um sujeito que doa seu corpo ao ilimitado do gozo, numa suspensão que habita os limites da body art e da religião, como se todos os vetores identificatórios se confundissem. O campo da fé se abre, de maneira a implodir tudo que estava ajustado até então. Ali, a própria carne é imolada, ofertando ao olhar uma relação literal do sacrifício que agora cede – através de uma nova economia psíquica produzida pelo capital – à promessa de um gozo sem limites.
A dimensão religiosa e política se enuncia desde o título do documentário. Fé e fúria se tornam indissociáveis, e a condição de desamparo – que não é contingente ou passageira, mas fato que estrutura as relações – toma o centro das filmagens em que se investigam os destinos morais e éticos da incerta condição humana e de uma espécie de política do ódio, intrínseca ao neopentecostalismo.” LEIA MAIS
Publicado em: 27/12/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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