Uma obra-de-arte inesgotável em sua riqueza semântica e musical, na complexidade dos afetos que expressa, na radicalidade de sua poesia, no senso lúdico que preside à sua pervasiva percussividade (que inclui até latidos de cachorro!), o Papa-Grammys “Fetch The Bolt Cutters” (2020) carrega em cada canção um microcosmos e constrói, pela soma das partes, um todo de intensa deslumbrância. Se alguém ainda duvidava que Fiona Apple é uma das artistas mais geniais de sua geração, este álbum chega para varrer tais dúvidas e terminar de consagrá-la como uma das vozes mais singulares e magistrais da música contemporânea.
“I know none of this’ll matterIn the long run…”
Em seu primeiro álbum de inéditas em 8 anos, o sucessor de The Idler Wheel (2012), a cantora, compositora e pianista mostra-se aberta aos riscos da criatividade ousada e, como escreve Guilherme Gontijo Flores na Revista Continente, busca filosofar sobre a vida-em-movimento e nossa capacidade de “re-mover a cada corte.” A vida nos fere e rasga, o tempo nos come e termina por nos reduzir a pó, mas a arte é também o suporte para que um corte não seja a morte. O mote é mover-se com a corrente, pegar os alicates para romper as correntes que nem sentem aqueles que não se movem…
A unicidade da movência de Fiona, sua rítmica verbal tão inspirada na poesia de Maya Angelou, faz com que em cada verso esteja incrustada uma fatia de mistério e uma promessa de beleza. Em cada série percussiva, em cada progressão de acordes do piano, em cada fonema que flui da boca de Fiona Apple, manifesta-se a música idiossincrática, arrasadora de lugares-comuns, de uma artista esplêndida, ousada, que demanda nossos ouvidos atentos e nossa decifração afetiva e cognitiva.
No ano de 2020, dificilmente teremos um disco tão intensamente celebrado pela crítica (com justiça!), que lidera o ranking e melhores do ano do Metacritic e recebeu elogios rasgados, notas 10 e 5 estrelas de respeitáveis órgãos da imprensa como Pitchfork, The Guardian, Slant, New York Times etc.
A faixa de abertura, “I Want You To Love Me”, carrega um título um pouco clichê, que nos levaria a esperar apenas mais uma canção de amor com as palavras de sempre – mas estamos falando de Fiona Apple, e não de uma compositora qualquer. Aqueles que ainda a desconhecem podem até, diante do título da música e sua explícita não-originalidade, aderir ao “não ouvi e não gostei” só por deparar com a milionésima ocasião em que alguém vem cantar sobre love e sobre want, algo tão velho quanto andar pra frente ou rimar amor com dor.
Mas Fiona é mestra em subverter nossas expectativas e transformar sua performance musical numa exploração existencialista da finitude da condição humana e da angustiada fome de ser amada. Há trechos da poesia que me soam como se ela fosse uma filósofa materialista, refletindo sobre o que será de seus átomos quando seu corpo enfim chegar ao c’est fini:
“I know when I go
All my particles disband and disperse
And I’ll be back in the pulse
And I know none of this will matter
In the long run
But I know a sound is still a sound
Around no-one
And while I’m in this body
I want somebody to want
And I want what I want
And I want
You
To love me…”
Há algo de trágico nesta abertura de disco: esta anunciação de um saber lúcido, quase amargurado, de que “nada disso vai importar no longo prazo” (I know none of this will matter in the long run). Afinal, daqui 1 século todos nós que estamos agora respirando estaremos frios e apodrecendo numa tumba, ou teremos sido reduzidos a cinzas numa incineração. Enfim, a vida não dura e a matéria que intimamente nos constitui, as partículas que nos tecem desde o infinitesimal, vão disband and disperse por ocasião da morte.
Fiona filosofa sobre o amor-em-face-da-mortalidade. E ela não pensa que o futuro distante em que tudo isto que somos terá desaparecido da face da Terra seja razão para deixar de cantar, agora, por mais efêmeros que sejam tanto a goela de quem canta, quanto os dedos de quem toca as teclas do piano, quanto os tímpanos e o coração de quem ouve. Ela canta seu desejo, encantando-nos com toda a complexidade de seus afetos, e acaba por transformar este “eu quero que você me ame” em um verso altamente significativo pois sabemos que está sendo dito por alguém que sabe estar num corpo por tempo limitado. Talvez isto intensifique o desejo de amor mais do que o arrefeça.
É preciso também falar algo sobre o uso que Apple faz do vocábulo “you”. Palavrinha que desgraçadamente aparece em quase todas as músicas já compostas em inglês, e no entanto ela é capaz de infundir originalidade e genuína invenção a ela, primeiro através do prolongamento do “you”, que atravessa vários compassos, tornando-se uma nota muito mais demorada do que uma semibreve.
Ok, alguns dirão, mas isto só mostra uma cantora querendo ostentar suas capacidades respiratórias e mostrando que consegue expirar um “you” tornando-o uma semibreve pontuada que se estende num longo sustain.
Mas há mais: o contraste entre os primeiros refrões, em que “you” é sustentado sem saltos da nota na escala, e o arremate da canção, onde Fiona Apple adere a um espírito lúdico, brincalhão, e começa a fazer estripulias com seu fluxo expiratório. O “you” em sustain do começa transforma-se, culminando numa espécie de gag vocal bem engraçada, uma espécie de orgasmo de algum híbrido de filme erótico com comédia, que nos faz imaginar que a velha professora de canto se descabela diante das partituras do solfejo, pronta para agarrar uma baqueta e dar na cabeça da aluna irreverente.
Fiona mostra que já é mestre no solfejo e que não precisa respeitar nenhuma das regras ensinadas em conservatórios musicais – locais, aliás, como o nome já diz, destinos mais à conservação do tradicional do que à invenção do inédito. Além da revelação do homo ludens que habita Fiona, a canção revela a extensão do experimentalismo vocal que ela se aventura a realizar, aproximando-a de vanguardistas-da-voz como Björk, McFerrin, Esperanza Spalding ou Meredith Monk. Esta capacidade espantosa de levar a própria voz a extremos e se desdobrar numa polifonia de uma pessoa só já estava anunciada em maravilhas da trajetória pregressa da cantora como “Hot Knife”.
Logo na sequência, o espírito brincalhão que raiou no fim da faixa inaugural segue brilhando em “Shameika”, uma canção em que a eu-lírica relembra sua infância – assim como na faixa-título, ela parece embarcar em pequenas peças literário-musicais que parecem com o bildungroman, o “romance de formação”.
A personagem de Fiona começa por relembrar como, a caminho da escola, se divertia ritmicamente com seus grinding teeth ou pisando folhas secas como se fossem clashed cymbals.
“I used to walk down the streets
On my way to school
Grinding my teeth to a rhythm invisible
I used my feet to crush dead leaves like they had fallen from trees
Just for me, just to be crashed cymbals…”
A repetição do refrão “Shameika said I had potential”, somada à confissão de que “naquela época eu nem sabia o potencial significa”, evoca de maneira engraçada os modos como uma criança prodigiosamente musical é “destacada” de seu meio, considerada como privilegiada.
Nesta música, em versos como “eu nunca sorria pois o sorriso sempre parecia ensaiado”, também se manifesta outro dos desejos que marcam Fiona Apple: o de ser genuína, não fingida. De fato, ao ouvi-la sentimos aquela impressão que Jeff Buckley expressou lindamente em uma das canções de Grace, “So Real”.
Prossegue vivo o ódio de Fiona pela mentira, pela hipocrisia, pelo fingimento, pelas enganações que às vezes povoam as relações. Isto já se manifestava no começo de sua carreira, por exemplo em “Limp”, do 2º álbum When The Pawn…, onde ela troveja violentamente contra o destinatário (“you beat me with your bitter lies”).
Vale lembrar que Quentin Tarantino, fã e amigo de Fiona Apple, admira muitos dos versos dela pela violência que eles carregam (na mesma “Limp”, ela fala: “você acaricia meu gatilho e depois culpa minha arma”) – e nós nunca sabemos de fato se ela está apenas fazendo poesia e usando metáforas, ou se de fato faz canções que são substitutas de um acting out da agressividade sentida.
Em “Fetch The Bolt Cutters”, música que dá título ao disco, ela se apropria de uma fala da atriz Gillian Anderson (a Agente Scully de Arquivo X) na série The Fall. Na canção, Fiona dá vazão a seu desconforto com tudo que não é real, “not genuine” – o que conecta-se com o início de sua carreira, quando ela se insurgia, em “Never Is A Promise”, com as mentiras inaceitáveis do destinatário da canção (“never is a promise and I’ll never need a lie…”).
Também nesta canção, assim como em “Shameika”, há uma evocação de um passado, de um outro eu que Fiona foi, de uma infância perdida e reencontrada através da música, quando “ela ainda não havia encontrado sua voz” e procurava “vestir os sapatos que lhe disseram para preencher”:
“I grew up in the shoes they told me I could fill
Shoes that were not made for running up that hill
And I need to run up that hill, I need to run up that hill
I will, I will, I will, I will, I will…”
Esta força-de-vontade, esta reiteração do I Will, análogo ou I want what I want da primeira faixa, torna-se ainda mais arrebatada em “Under the Table”. Nesta canção, a eu-lírica se recusa ao silenciamento – ela foi levada a um jantar cheio de gente que não lhe interessa, e seu desconforto social começa a ferver até explodir no refrão rebelde: “chute-me por baixo da mesa o quanto você quiser, não vou me calar!” Ela o repete até que o mundo inteiro esteja convencido de que esta mulher não vai se calar. Ainda bem!
A canção fala muito sobre a personalidade de Fiona nos versos “I would beg to disagree but begging disagrees with me.” É um verso tão complexo que pode ser analisado na universidade, em cursos de semiótica e linguística, primeiro pela mistura dos verbos – to beg e to disagree – e de seus tempos. Percebam que cada verbo, no verso, ocorre duas vezes, mas conjugado em tempos diferentes.
A expressão “beg to disagree” é de certo modo corrente, e quer dizer algo como “vamos concordar em discordar”, ou melhor, eu imploro que possamos ter uma discordância saudável e não bélica (também se diz “beg to differ”).
Fiona Apple torce o sentido da expressão ao dizer que implorar discorda com ela, ou seja, que sua personalidade não é implorante. A canção, em especial no seu refrão, adquire quase que um sabor punk, tamanha a atitude de explicitação da discórdia que a eu-lírica berra com seu “não vou me calar, pode me chutar!”
“Kick me under the table all you want,
I won’t shut up, I won’t shut up!”
Vejam também a maestria de gênia que Fiona Apple aplica à construção da poesia cantada de “Cosmonauts”: parece claro que esta é uma canção de amor e ódio, como ela costuma fazer tão bem; sentimentos positivos e negativos, afetos alegres e tristes, obviamente mesclados e em mood swings abissais, como ela também de praxe realiza com maestria desde sua adolescência e que se manifestam desde seu debut “Tidal”.
Aqui também ela mobiliza seu tradicional arsenal de diálogos entre um Eu e um Outro, naquele processo dito “confessional” (mas que julgo altamente ficcional e poético), que faz da canção ouvida uma espécie de prazer proibido de espiar o Diário Íntimo alheio. Muitas canções de Fiona nos dão aquela impressão de estarmos observando pelo buraco da fechadura uma D.R. bem complexa, que pode acabar em sexo reconciliador ou em morticínio trágico.
Mas não há clichês por aqui, a começar pelo fato de que “seremos iguais a cosmonautas” não é o tradicional refrão que esperaríamos de uma canção de pop romântico. Esta singela canção é, como todas neste espantoso 5º álbum de Fiona Apple, a expressão de uma singularidade que só posso descrever com um adjetivo besta de tão pleonástico: uma singularidade singularíssima!
Desçamos ao microcosmos de “Cosmonauts”, a suas engrenagens líricas profundas, para olhar mais de perto. Se entendi bem, a eu-lírica, no começo da história, estava “de boa com o seu Nada”. Mas a aparição da Face do Outro causou a ignição de um fusível. O destinatário da canção já aparece, de cara, como aquele que acendeu um pavio que detonou a bomba da paciência desta instável eu-lírica. “Não há tempo para interromper a detonação”, canta no prelúdio a barda Fiona, destilando o veneno de sua poesia sempre pontiaguda.
A música é uma carta que serve à confissão: você me mudou, não sou mais a mesma, e isto não é necessariamente uma boa notícia, “What I’ve become is something / I can’t be without your loving”. O que poderia ser apenas uma confissão de dependência emocional – repleta de súplicas de “seja bom comigo antes de se mandar!” – é transcendido quando a cantora-compositora propulsiona seu poema pianístico rumo às estrelas e convoca metáforas cósmicas para se referir à teia de afetos em que está enredada: “Eu e você seremos como uma dupla de cosmonautas / Exceto com mais gravidade do que quando começamos” (“You and we will be like a couple of cosmonauts / Except with way more gravity than when we started off.”)
Estes são versos singularíssmos, tanto que precisaríamos inventar um nome parecido com Fellinesco ou Kafkiano para descrever estas criações poético-musicais “Appleísticos”: é tanto mistério envolvido que a canção nos chama a ouvi-la uma dúzia de vezes, pois que diabos significa, para um casal, tornar-se “cosmonautas com mais gravidade do que tínhamos ao começar”?
Se, por um lado, ela parece se referir ao fenômeno inverso ao esperado numa viagem cósmica comum – um astronauta deixando a Terra sente uma redução da gravidade, e não um incremento, e por isso “flutua” no interior da nave espacial -, por outro ela parece se referir às dinâmicas relacionais, às gangorras entre fases “leves” e lúdicas, em contraste com fases “pesadas” e graves. Eles serão cosmonautas que sentirão mais peso no espaço sideral do que na terra, mas isto porque na aventura relacional já estão acumulando “fardos”, já se explodiram mutuamente, já carregam uma vivência compartilhada que impede a leveza plena mas confere densidade e “peso”.
O verso imediatamente anterior ao refrão é um conselho, quase uma súplica, “make lighter of all the heavier”, um pedido de tornar mais leve o fardo, parece que Fiona quer menos gravidade, mas anuncia que estes cosmonautas estão condenados a mais gravidade.
E aí a canção é propulsionada aos astros, o Sol está penetrando num “dark sky”, e a eu-lírica está sabendo amar-se somente através dos olhos de seu destinatário, e tudo deságua em algo também singularmente Appleístico: uma repetição catártica. Ela está repetindo, não como uma vitrola quebrada, mas como uma sabiá percussiva, martelando a mensagem para que seja memorizada, aquele o “started of”, “started of”, “started of”, repetido ad nauseam, que volta umas 40 ou 50 ou 60 vezes (perdi a conta…).
O efeito estético é fazer do “start”, do começo do relacionamento, do início da viagem, do tempo onde eles eram terráqueos e não cosmonautas, uma espécie de Tempo Perdido que é insistentemente re-evocado, mas não com nostalgia pela perda, mas com algo parecido com a descoberta da radical impermanência dos estados afetivos, da fluência dinâmica das relações entre o pesado e o leve, do irrefreável fluxo que enterra o passado enquanto faz fluir um futuro através do presente.
Nesta música, a canção evoca uma relação que, distanciando-se do seu start, vai ganhando em peso e densidade e que nunca poderá retornar ao estado de bexiga de hélio.
Ela retorna ao tema do pesadume em “Heavy Baloon”, seguindo sua aventura de relatar o insustentável peso das relações, o avesso da Milan Kunderiana insustentável leveza do ser: “People like us get so heavy and so lost sometimes / So lost and so heavy that the bottom is the only place we can find.”
Já em “For Her”, que começa a capella e com uma velocidade na declamação verbal que aproxima Fiona de certos rappers, elaa aborda temas espinhosos da “guerra entre gêneros”, evocando o abuso, o vício, o estupro masculino. Assim, ela está voltando a encarar temas que a assombram desde a pré-adolescência: “You raped me in the same bed your daughter was born in”, ela canta após um dolorido e catártico “good morning…”. Confessa sua dificuldade em estar de joelhos sobre o chão frio e gelado dos fatos (“She’s tired of planting her knees on the cold hard floor of facts”), mas não se cansa de enumerar, através de seu prisma irônico, os fatos reprováveis de seu destinatário (na verdade, a canção parece dirigida a vários tóxicos detentores de cocks…).
“Como muitos sabem, Fiona Apple contou ter sido estuprada aos 12 anos de idade por um desconhecido no prédio onde então morava com a mãe, um trauma que a marcou para a vida, com transtornos alimentares e psíquicos. Embora ela pareça não ter problemas em abordar o assunto nas entrevistas, desde seu álbum de estreia, Tidal (1996), ela não havia ainda composto sobre o tema, e a aparição agora, numa forma tão complexa e pungente, é a marca da grandeza que ela tantas vezes alcança como compositora e intérprete” – escreve Gontijo Flores, que dedicou-se a uma minuciosa análise da letra.
São viagens interpretativas assim que são desatadas na mente do ouvinte atento e empático diante das músicas deste álbum prodigioso. E talvez um sinal claro de que um álbum é mesmo prodigioso seja o fato de que, sobre cada uma de suas canções, possamos escrever um monte de impressões, dissecando sensações e pensamentos que cada música nos evoca. Em contraste, álbuns inteiros de artistas medíocres nos deixam na indiferença e na frieza – como quando utilizamos, enquanto estimadores da música, frases como “este disco nem merece comentários.”
Os discos de Fiona Apple, todos eles, me parecem supremamente merecedores de comentários. Suas canções são microcosmos que nos convidam à escuta participativa e à escrita crítica que os decifre, que nos pedem uma sintonia sentimental que nos conceda as chaves para coligar com a criadora desta intrincada teia de verbo-e-som. A trilha pode parecer árdua, mas mover-se na companhia desta criatura inquieta e indomavelmente criativa é salutar: com o tempo, começamos a sentir o quanto é salutar, inspiradora e deslumbrante a convivência com “a arte de radical sensibilidade” de Fiona Apple, como disse a New Yorker.
Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro – Agosto de 2020
Publicado em: 21/08/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia