Nestes tempos em que tornou-se disseminada globalmente o estandarte (e a hashtag) #BlackLivesMatter, no Brasil traduzida por #VidasPretasImportam, é mais do que propícia uma reflexão sobre os vínculos entre o blues e a negritude como modo de ressaltar o óbvio: a “arte negra” também importa (e demais da conta).
“I’ve been working 3 jobs just pay my bills“, canta o bluesman Fantastic Negrito em “Hump Through the Winter”, questionando com retórica pontiaguda se mulheres negras, obrigadas a trabalhar em três trampos apenas para conseguirem pagar seus boletos, representa o glorioso ápice do que o Império Yankee tem a oferecer a seus súditos-cidadãos?
Aqui focaremos na carreira do novo ícone Fantastic Negrito para propor que formas culturais de alto impacto social como o blues, que se recusa a morrer e insiste em ressurgir (como fez com seu filhote rock’n’roll e com seu neto hip hop), não são compreensíveis nem em sua história, nem em seu dinamismo atual, sem um foco atento aos fenômenos da Diáspora pelo “Atlântico Negro” (para lembrar do brilhante livro de Paul Gilroy [1993]).
Anteriormente conhecido como Xavier, na ativa desde os anos 1990 quando lançou seu debut The X-Factor, o homem hoje conhecido como Fantastic Negrito encarna em sua arte toda a complexidade e riqueza destas formas culturais diaspóricas – tal como se manifesta em Oakland, Califórnia, nos tensos dias correntes. Este cara carrega e espalha, com sua música mágica e eclética, “toda a negrura do blues”, com uma boa dose de fúria indignada, e com isso venceu, em dois anos consecutivos, o Grammy de Melhor Álbum de Blues Contemporâneo.
Ele mesmo se descreveu como um cantor capaz de ser um paradoxal gentle screamer – um berrador gentil. Este foi um dos elementos que mais me impressionou em sua música: o fato dela ser capaz da explosividade de bandas como Bellrays, Dirtbombs ou Living Colour, mantendo-se em registros vocais que, por mais ríspidos e punky que sejam, conservam uma certa gentileza, um Marvin Gayeísmo, uma sutileza à la Curtis Mayfield. Como se quisesse expressar que é preciso gritar, mas sem perder a gentileza jamais.
Não estamos diante da estética do ogro, mas da lúdica criatividade de um resistente-resiliente que encontra sentido para a existência num investimento de suas forças vitais numa invenção estética bem abluesada.
Fantastic Negrito carrega desde o seu codinome uma espécie de Orgulho Negro expresso com boa dose de ironia, de auto-sarcasmo, onde também poderíamos ler uma alfinetada contra a branquitude que, gozando de seus privilégios, adorou pela História afora ser a consumidora de artefatos culturais criados, inventados, forjados e perfomados por Black entertainers.
Janelle Monáe e Fantastic Negrito são dois exemplos de Black entertainers atuais que se recusam aos estereótipos que a branquitude gostaria de vê-los submetidos de modo servil e mimético. Abrindo vastas avenidas para o afrofuturismo, conduzem suas sonoridades rumo ao imprevisível e à constante recriação das formas.
O que Xavier, o negrito fantástico, vem realizando não é apenas mimese do blues de outras eras: ele não é o Xavier do xerox, mas o xamã da recriação. Se há um pouco de aplicação de fórmulas consagradas, há também uma ousada hibridização em que o blues transa com o hip hop, com o funk, com o soul, com o punk – este é um cantor capaz de soar como Sam Cooke, como James Brown ou como os Bad Brains – às vezes no espaço da mesma canção.
Foi assim que ele se tornou responsável por parir um dos melhores álbuns da década 2010, The Last Days of Oakland (2017, 15 músicas, 50 min), que lhe consagrou com um Grammy de Melhor Álbum de Blues Contemporâneo no 59º Grammy Awards.
O que torna este álbum tão estupendamente bom talvez seja inseparável de toda a negrura do blues que este cara decidiu criar, pondo no liquidificador produtor de híbridos toda uma tradição que ele quer reavivar – não só o blues, mas o soul, o r&b, o folk… É uma arte na qual aflora todo o sofrimento sublimado dos “Working Poor”, aqueles que estão com os punhos cansados de tanto bater na porta e ninguém abrir. Este sentimento de keep on knockin’ but I can’t get in domina a vibe de frustração e de indignação que o Fantastic Negrito expressa, concretizando o aparente paradoxo de um soulful punk, de um funky folkster.
A primeira vez que notei Fantastic Negrito com mais atenção e espanto foi através do clipe de “In The Pines”, a canção que serviu como canto de cisne de Kurt Cobain, um velho blues de Leadbelly que o líder do Nirvana ressuscitou para, através dele, soltar seu angustiado wail final, abandonando o mundo dos vivos pouco depois.
É o tipo de cover que, depois de Cobain, não parece ser boa ideia pra ninguém tentar fazer. Mas o Fantastic Negrito mostrou que dava para ressaltar o elemento de negrura ali contido e fez sua esta canção que, por mais magistral, os gênios da músicas não permitem que se torne standard (pois não cessam de subvertê-la).
Depois de Leadbelly e Cobain, Fantastic Negrito trouxe seu viés para a canção, transformando a “girl” da música original, que não é “racializada”, em uma “black girl” que criou sozinha o filho só para ter a experiência terrível de testemunhar o rebento ser assassinado pela polícia. Sua versão é ilustrada por algo mais abrangente do que um mero video-clipe – é um curta-metragem que serve como explosivo manifesto estético-político.
“Black girl, black girl,
Your man has gone
Now you travel the world alone
Pode até ser verdade que Fantastic Negrito não é exatamente um OVNI sônico, que a rítmica de suas canções tem algo de tradicional e previsível, que ouvimos um som parecido com The Black Keys, Hot Hot Heat, White Stripes e Jack White, os Alabama Shakes, Gary Clark Jr, The Kills etc…
Mas também é verdade que o frescor de suas sonzeiras está relacionado com um sadio desrespeito de fronteiras entre gêneros. Please Don’t Be Dead, o álbum de 2018 que lhe rendeu seu segundo Grammy, é repleto de um espírito lúdico que já se manifesta no título sarcástico de músicas como “Plastic Hamburgers”, “Transgender Biscuits” e “Bullshit Anthem”.
O Fantastic Negrito, em muito do que ele faz, tá só de brincadeira, num espírito que remete aos Cramps, aos Modern Lovers, ou a Elvis Costello com os Attractions. Mas ele também sabe mergulhar a sério nas sombras e olhar através de “Dark Windows”.
E por falar em Costello, vale relembrar uma das obras-primas de seu álbum de estréia, My Aim Is True, “Blame It On Cain” (“Jogue a Culpa no Caim”), que Fantastic Negrito parece reviver, com muita negrura, com sua “Bad Guy Necessity”, que faz a seguinte reflexão: “todo mundo precisa de um cara do mal sobre quem jogar toda a culpa”:
“Everybody needs a bad guy
They need someone to blame
Everybody needs a bad guy
To point the finger to blame…”
O artista critica os “salvadores” que se propõem a livrar o mundo da escória dos bad guys. E que acabam se tornando os piores bad guys eles mesmos, arrogantes e auto-proclamados messias – que querem excluir da graça imensas fatias da população, que eles transformam em matáveis.
Vale dizer que o termo “Bad Guy” foi alçado ao estrelado supremo pelo hit de 1 bilhão de views da Papa-Tud’Os-Grammy Billie Eilish (em canção depois transformada num vigoroso ska-punk pelos Interrupters). Só que o Negrito Fantástico pôde fazer uma crítica da neo-direita racista com Complexo de Salvador de uma maneira que a adolescente branquela e privilegiada que é Eilish não poderia forjar devido aos limites de sua experiência social, ainda que ela tente se apropriar de uma rítmica verbal que provêm do hip hop e do trap.
Até mesmo em suas vinhetas e interlúdios, o álbum The Last Days of Oakland carrega uma carga de denúncia do racismo estrutural muito interessante, realizando uma espécie de mini radio-novela ou micro-documentário, montando um caleidoscópio de vozes negras. Em “What Do You Do”, ouvimos as estratégias de sobrevivência de um pessoal que, como diz o poema de Audre Lorde, “was never meant to survive”.
O extermínio racista nos guetos e periferias, onde o militarismo racializa populações para melhor limpar a face da Terra da presença de raças inferiores, não pode se passar sem toda uma atividade ideológica, destinada à auto-ilusão e à cegueira voluntária dos opressores, destinada a limpar por whitewashing a consciência das elites racistas-escravocratas, sob o risco de pesar demais por dentro, ainda que tenham a consciência moral propositalmente atrofiada, o fardo de tantos crimes perpetrados.
Só que esta ideologia pode também “colonizar” a mente dos próprios oprimidos, que passam a “hospedar” o opressor e suas ideias (cf. Paulo Freire). Uma arte que expulse o opressor da cabeça dos oprimidos se faz, portanto, extremamente necessária como uma catarse que vá para além do individual e se alce ao status de catarse coletiva.
O modo como a “Era Trump” (2016-2020) é refratada no espelho artístico do Fantastic Negrito, na guitarra endiabrada do xamânico Xavier, fica explícito no vídeo dedicado aos “Hambúrgueres de Plástico” (video-clipe a seguir): o refrão punk – “let’s break out these chains, let’s burn it down!” – convoca o ouvinte a uma insurreição incendiária contra as correntes. Este let’s soa em sua boca não como um fonema clichê que pipoca no pop a toda hora, mas como uma convocação à união na ação – let’s (act!).
De maneira documental-jornalística, o vídeo nos informa sobre a natureza dessas correntes a serem quebradas – feitas de doses cavalares de consumo dos remédios psicotrópicos fabricados pela BigPharma e das armas instrumentais para a morte em massas vendidas pelo Complexo Industrial Militar.
Em obras assim, Xavier El Fantastic Negrito se alça ao nível das canções rebeldes mais incríveis que fizeram seus contemporâneos – penso em obras como “Black Rain” de Ben Harper -, mas também honra toda uma tradição: recheiam o vídeo de “Plastic Hamburgers” fotos de blueseiros e roqueiros negros que marcaram época e foram sementes (Chuck Berry, Muddy Waters, Buddy Guy, Son House, Bo Didley, Big Joe Williams, dentre outros mestres que injetaram toda sua negruma [all their Blackness] no blues, são evocados no clipe ao lado de “branquelos” como Janis Joplin, Mick Jagger e Keith Richards…).
Bicampeão do Grammy de Melhor Álbum de Blues Contemporâneo, Fantastic Negrito é a voz impossível de ignorar dos Estados Unidos em suas vísceras, na explosão de expressividade que vem daqueles que se recusam a serem apenas oprimidos e querem ser os mestres de seus supostos mestres.
Que não me acusem de estar racializando o rolê ao ressaltar que é toda a negrura do blues de Fantastic Negrito que o tornou esta força cultural tão potente e ressonante. Não vejo absurdo em afirmar que ele é um dos blueseiros que lidera na Era Black Lives Matter.
O que volto a ressaltar é que não se compreende o blues sem uma atenção à blackitude – não que a “negritude” seja da essência imutável do blues, já que nem ele nem nada possui esta fantasia ilusória do essencial-que-não-muda: o blues segue sendo um estilo fluido e metamorfoseante (Son House e Fantastic Negrito, por exemplo, não fazem exatamente uma música de “essência idêntica”, mas representam encarnações históricas diversas de um fluxo cultural multifacetado que os engloba e que chamamos, por comodidade, pela mesma palavra: “o blues”).
Também não quero afirmar que o blues seja uma área off limits para os “branquelos” – estes já prestaram lindos serviços ao estilo através de figuras como Janis, Clapton, Rory Gallagher, Paul Butterfield, Tedeschi-Trucks Band etc.
O que afirmo aqui é que a experiência da negritude, ou de ser assim racializado e marginalizado por uma sociedade de estruturas segregacionistas, faz parte da tessitura concreta que historicamente deu origem às manifestações culturais blueseiras – assim como ocorreu com o samba no Brasil. Em termos mais simples: ninguém nunca vai entender e sentir o blues, ou o samba, se ignorar all the blackness / toda a negritude envolvida na forja coletiva de tais fenômenos culturais.
Herdeiro da Diáspora pelo Atlântico Negro, organismo-liquidificador onde se hibridizam o blues com o soul, o hip hop com o punk, Fantastic Negrito manfiesta-se um folkster existencialista que já passou pelo coma e pela vivência de quase-morte [near-death experience] para depois emergir, transmutado pela experiência e a sabedoria que esta distila, como o magistral maverick da música sem fronteiras nem racializações.
As musas da música agem aqui com todo o seu embriagante potencial concreta de congregação, triturando o binário do branco-e-preto dentro do liquidificador cromático que tem em Fantastic Negrito um dos melhores operadores cósmicos. Apesar de só compreensível, como fenômeno cultural, na moldura das guerras raciais dos EUA, esta é uma música que exala por todos os poros a luz de um colorido indomável, fatal para os racistas, mas também saudavelmente mortífero para todos os binarismos reducionistas que brancopretificam o real.
Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Goiânia, Novembro de 2020
Publicado em: 29/11/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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