DIONISO EM TEBAS
Por Jean-Pierre Vernant (1914-2007)
No panteão grego, Dioniso é um deus à parte. É um deus errante, vagabundo, um deus de lugar nenhum e de todo lugar. Ao mesmo tempo, exige ser plenamente reconhecido ali onde está de passagem, ocupar seu lugar, sua preeminência, e sobretudo assegurar-se de seu culto em Tebas, pois foi lá que nasceu. Entra na cidade como um personagem que vem de longe, um estrangeiro excêntrico. Volta à Tebas como à sua terra natal, para ser bem recebido e aceito, para, de certa forma, provar que ali é sua morada oficial.
A um só tempo vagabundo e sedentário, ele representa, entre os deuses gregos, segundo a fórmula de Louis Gernet, a figura do outro, do que é diferente, desnorteante, desconcertante. É também, como escreveu Marcel Detienne, um deus epidêmico. Como uma doença contagiosa, quando ele aparece em algum lugar onde é desconhecido, mal chega e se impõe, e seu culto se espalha como uma onda.”
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“Cadmo, primeiro soberano de Tebas, herói fundador dessa grande cidade clássica, é ele mesmo um estrangeiro, um asiático, um fenício, que vem de longe. Cadmo teve vários filhos e filhas, entre elas Sêmele e Ágave.
Sêmele é uma criatura encantadora. Zeus terá relações com ela, não de um dia, mas mais duradouras. Sêmele, que vê Zeus deitar-se a seu lado toda a noite com forma humana, mas que sabe que se trata de Zeus, deseja que o deus lhe apareça pessoalmente em todo o seu esplendor, em sua majestade de soberano dos bem-aventurados imortais.
Mas é sempre um perigo para os homens querer que os deuses se apresentem diante de seus olhos tal como são, como fariam parceiros mortais. Quando Zeus acata o pedido de Sêmele e aparece em seu esplendor fulminante, ela é consumida pela luminosidade flamejante, pelo brilho divino do amante. Sêmele queima. Como já está grávida de Dioniso, Zeus faz um corte na própria coxa, abre-a, transforma-a em útero feminino e ali coloca o futuro filho, que é então um feto de seis meses. Quando chega a hora, Zeus abre a coxa e o pequeno Dioniso pula para fora, assim como fora extraído do ventre de Sêmele. O bebê é esquisito, escapa às normas divinas, já que é ao mesmo tempo filho de uma mortal e filho de Zeus em todo o seu esplendor.
Dioniso terá de lutar contra o ciúme tenaz de Hera, que não perdoa facilmente as aventuras de Zeus e sempre implica com os frutos desses amores clandestinos… Um dos grandes cuidados de Zeus é afastar Dioniso do olhar de Hera e confiá-lo a amas que o escondam.”
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“Quando o menino cresce um pouco, também vai perambular e, volta e meia, será vítima de perseguições de personagens bem instalados em suas terras. É o que lhe acontece quando ainda é bem jovem, ao desembarcar na Trácia, levando em seu séquito um cortejo de jovens bacantes. Licurgo, o rei do país, vê com muito maus olhos a chegada do jovem estrangeiro e dessa moças que deliram como adeptas fanáticas de uma nova divindade.
Licurgo manda prender as bacantes, joga-as na prisão. Licurgo persegue o deus e o força a fugir. Dioniso joga-se na água, escapando de Licurgo, e é a deusa Tétis, a futura mãe de Aquiles, que o esconde por certo tempo nas profundezas marinhas.
Quando sai de lá, depois dessa espécie de iniciação clandestina, desaparece da Grécia e vai para a Ásia. É a grande conquista da Ásia. Percorre todos esses territórios com exércitos de fiéis, sobretudo mulheres… Dioniso e seus seguidores põe para correr todos os exércitos que se levantam contra ele, tentando em vão bloquear seu avanço; percorre a Ásia como vencedor. E depois o deus volta para a Grécia.”
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“Em seu retorno a Tebas, ele, o errante, o menino perseguido pelo ódio de uma madrasta, o jovem deus obrigado a se jogar na água para evitar a cólera de um rei da Trácia, ei-lo adulto. Chega no momento em que Penteu, filho de sua tia Ágave, irmã de sua mãe Sêmele, é rei de Tebas. Sêmele morreu. Cadmo ainda está vivo, mas velho demais para reinar.
Dioniso chega disfarçado a Tebas, que é um modelo de cidade grega arcaica. Não se apresenta como o deus Dioniso, mas como o sacerdote do deus. Sacerdote ambulante, vestido de mulher, ele usa os cabelos compridos batendo nas costas, tem tudo do meteco oriental, ar sedutor, falante… tudo o que pode perturbar e irritar Penteu, o jovem rei.
Em torno de Dioniso, chegam a Tebas suas seguidoras. Em torno dele gravita um bando inteiro de mulheres jovens e mais velhas, que são as lídias, ou seja, mulheres do Oriente – o Oriente como tipo físico, como modo de ser. Nas ruas de Tebas, elas fazem um escarcéu, sentam-se, comem e dormem ao relento.
Ao ver isso, Penteu fica furioso. O que está fazendo ali esse bando de vagabundos? Quer expulsá-los. Dioniso, de seu lado, quer restabelecer um vínculo com o divino. Restabelecê-lo não durante uma festa ou uma cerimônia, e sim na própria vida humana, na vida política e cívica de Tebas tal como ela é. Pretende introduzir um fermento que abra uma dimensão nova na vida diária de cada um.
Para isso, deve enlouquecer as mulheres de Tebas, essas matronas solidamente implantadas em seu estatuto de esposas e mães, e cujo modo de vida é diametralmente oposto ao das mulheres lídias que compõem o séquito de Dioniso. São essas tebanas que vão enlouquecer com os delírios do deus Dioniso.
Elas largam os filhos, deixam inacabados os afazeres domésticos, abandonam o marido e vão para as montanhas, para as terras incultas, para os bosques. Lá, passeiam em trajes espantosos para senhoras tão dignas, entregam-se a loucuras de todo tipo, às quais os camponeses assistem com pensamentos confusos, admirando-as ao mesmo tempo estarrecidos e escandalizados.
Penteu é informado. Seu ódio é duplo. Para começar, ele se volta contra os fiéis do deus, as devotas seguidoras do deus, tidas como responsáveis pela desordem feminina que se espalhou na cidade. Manda a polícia agarrar todas essas lídias fervorosas do novo culto e jogá-las na prisão.
Assim fazem os encarregados da disciplina urbana. Contudo, mal chegam à prisão, Dioniso as liberta, por magia; ei-las de novo dançando, cantando nas ruas, batendo seus crótalos, fazendo barulho. Penteu resolve atacar o sacerdote itinerante, o mendigo sedutor. Manda prendê-lo, acorrentá-lo, trancá-lo nos currais!
Penteu acha que o caso está resolvida e dá a seus homens a ordem de se equiparem para uma expedição militar, partirem para uma caçada no campo e trazerem todas as mulheres que cometem excessos por lá.
Os soldados da repressão, a mando de Penteu, dirigem-se ao escarcéu das lídias. Aquelas mulheres, enquanto eram deixadas tranquilas, pareciam nadar na felicidade, não eram agressivas nem ameaçadoras; ao contrário, nelas, entre elas e em torno delas, nos prados e nas florestas, tudo parecia maravilhosamente suave; pegavam no colo os filhotes de animais, de todas as espécies, e os alimentavam no seio como a seus próprios filhos, sem que nunca os bichos selvagens lhes fizessem o menor mal…
Segundo afirmavam os camponeses e segundo o que os soldados tiveram a impressão de ver, vivam como num outro mundo, de perfeita harmonia entre todos os seres vivos, homens e bichos misturados, animais selvagens, predadores, carniceiros reconciliados com suas presas, lado a lado, todos alegres, fronteiras abolidas, na amizade e na paz. A própria terra se punha em uníssono. Bastava uma pancadinha com o tirso e do solo jorravam fontes de água pura, leite, vinho. A idade de ouro voltara.
Assim que os soldados apareceram, assim que se exerceu contra elas a violência guerreira, então essas mulheres angelicais se tornaram fúrias assassinas. Com seus tirsos, mais uma vez se jogaram para cima dos soldados, espancaram-nos, mataram-nos, foi uma debandada geral.
Enquanto isso, Dioniso está preso nos currais. Mas, de repente, suas correntes afrouxam e o palácio real se incendeia. Os muros desabam e ele sai ileso.
Vitória da suavidade contra a violência, das mulheres contra os homens, do campo selvagem contra a ordem cívica. Penteu é informado dessa derrota enquanto Dioniso se mantém sorridente diante dele.
Penteu encarna o homem grego num de seus aspectos maiores, convencido de que o que conta é uma certa forma aristocrática de comportamento, autocontrole, capacidade de raciocinar… E, mais ainda, esse sentimento de nunca se rebaixar, de saber se dominar, não ser escravo de seus desejos nem de suas paixões, atitude que implica, em contrapartida, certo desprezo pelas mulheres, vistas, inversamente, como seres que se abandonam com facilidade às emoções. E, por último, o desprezo por tudo o que não é grego: como os bárbaros da Ásia, lascivos…
Penteu nutre a ideia de que o papel de um monarca é manter uma ordem hierárquica em que os homens estão no lugar que lhes cabe, as mulheres ficam em casa, os estrangeiros não são admitidos e em que Ásia e Oriente têm fama de ser povoados por gente efeminada…
Dioniso, o sacerdote, vai agir com uma inteligência de sofista, por perguntas, respostas ambíguas, a fim de despertar o interesse de Penteu pelo que acontece num mundo que ele não conhece e não quer conhecer: o mundo feminino desregrado. Ele pensa que talvez não fosse má ideia ir dar uma olhadinha. Vai manifestar um desejo que não tinha, o de ser um voyeur.
Tanto mais porque acha que algumas das mulheres de sua família entregam-se no campo à vida desregrada, participam de orgias sexuais assustadoras. Ele é pudico, é um jovem sem mulher… Dioniso lhe diz: “Tu podes ir lá sem que ninguém te veja, secretamente, vai assistir ao delírio delas, às loucuras, assistirás a tudo de camarote e ninguém te verá…”
O rei Penteu veste-se como mulher, deixa os cabelos soltos, feminiza-se, torna-se parecido a um asiático. Dioniso pega Penteu pela mão e leva-o até o Citerão, onde estão as mulheres. Penteu trepa no alto do pinheiro. Vê chegar sua mãe Ágave e todas as moças de Tebas, que enlouqueceram com Dioniso e que por conseguinte estão num estado de delírio muito ambíguo. Estão enlouquecidas, sim, mas não são propriamente adeptas do deus. Não são “convertidas” ao culto de Dioniso.
Por não o terem aceitado como fizeram as lídias, as mulheres tebanas estão doentes de dionisismo. Diante da incredulidade, o dionisismo se manifesta na forma de doença contagiosa. Em suas loucuras, ora se comportam como adeptas do deus – em meio à beatitude do retorno a uma idade de ouro, em meio à fraternidade na qual todos os seres vivos, os deuses, os homens e os animais, estão misturados – , ora, ao contrário, uma raiva sanguinária toma conta delas. Assim como desbarataram o exército, assim também podem degolar os próprios filhos ou cometer qualquer loucura. É nesse estado alucinatório de distúrbio mental, de ‘epidemia dionisíaca’, que estão as mulheres de Tebas.
A certa altura, Penteu se debruça um pouco mais para ver melhor, a tal ponto que as mulheres descobrem lá no alto um espião, um vigia, um voyeur. Ficam furiosas e todas se precipitam para tentar vergar a árvore. Penteu cai no chão, elas se jogam para cima dele e o despedaçam. Esquartejam-no como em certos sacrifícios dionisíacos se esquartejava a vítima crua, viva. Assim, Penteu é desmembrado. Sua mãe agarra a cabeça do filho, espeta-a num tirso e passeia, às gargalhadas, com essa cabeça, que em seu delírio ela julga ser a de um leãozinho… Aos poucos, Ágave sai do delírio. Lentamente, fiapos de realidade reaparecem nesse universo onírico, sanguinário e maravilhosamente belo, no qual ela afundara. Finalmente, percebe que a cabeça agarrada ao tirso é a de seu filho. Horror!”
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“A volta de Dioniso, para casa, em Tebas, esbarrou com a incompreensão e provocou um drama durante todo o tempo em que a cidade foi incapaz de estabelecer o vínculo entre as pessoas da terra e o estrangeiro, entre os sedentários e os viajantes, entre, por um lado, sua vontade de ser sempre a mesma, de continuar idêntica a si mesma, de se negar a mudar, e, por outro, o estrangeiro, o diferente, o outro. Enquanto não há possibilidade de combinar esses contrários, produz-se uma coisa aterradora:
Os que encarnam o vínculo incondicional com o imutável, os que proclamam a permanência necessária de seus valores tradicionais diante do que é diferente deles, do que os questiona e os obriga a terem sobre si mesmos um olhar diferente, são exatamente estes – os que afirmam sua identidade, os cidadãos gregos convictos de sua superioridade – que se jogam na alteridade absoluta, no horror, no monstruoso.
Quanto às mulheres tebanas, irrepreensíveis em seu comportamento, modelos de reserva e modéstia, todas, Ágave à frente – a rainha-mãe que mata o filho, o esquarteja e ostenta sua cabeça como um troféu – todas, de repente, assumem a figura da Górgona Medusa: carregam a morte nos olhos.
Quanto a Penteu, ele morre de um modo pavoroso, rasgado vivo como um bicho selvagem, ele, o civilizado, o grego sempre seguro de si, que cedeu ao fascínio do que pensava ser o outro e que ele condenava. O horror vem se projetar na face daquele mesmo que não soube reconhecer o lugar do outro.
Depois desses acontecimentos, Ágave se exila, Cadmo também, e Dioniso prossegue suas viagens pela superfície da terra… Em Tebas haverá um culto a ele, que conquistou a cidade, não para expulsar dali outros deuses, não para impor sua religião contra a dos outros, mas para que no centro de Tebas, em pleno coração da cidade, fossem representados, em seu templo, suas festas e seu culto, o marginal, o vagabundo, o estrangeiro, o anômico. Como se, à medida que um grupo humano se recusa a reconhecer o outro e abrir-lhe espaço, esse próprio grupo se tornasse monstruosamente outro.”
JEAN-PIERRE VERNANT
“O Universo, os Deuses e Os Homens”
Ed. Cia Das Letras
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Publicado em: 10/09/13
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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Dioniso o deus errante.
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Comentou em 26/02/16