“O homem não tem uma natureza humana definitiva, não é uma criatura terminada, mas uma aventura da qual pode ser em parte o criador.”
ALBERT CAMUS. O Homem Revoltado.
Eu, tornar-me o co-criador de mim mesmo? Que tarefa pesada, e que responsabilidade! Mas que frêmito de aventura, que brisa de risco causando arrepios de excitação! Que noite estrelada de mistério e heroísmo! Criar a mim mesmo… é o jeito. Pois não tenho como deixar esta tarefa pra Deus. Não acredito em ter sido criado pelo divino: sempre me senti um fruto da Terra, e não alguém que desceu cá pra baixo, lançado lá de cima, feito um querubim a quem cortaram as asas.
Compreendo aqueles que possuem a nostalgia de um Paraíso Perdido, mas, no meu caso, jamais tive Paraíso algum. E portanto não sei da nostalgia por um Éden que não vivi nem posso imaginar ter vivido. E como diz muito sabiamente aquele velho blues: “You can’t lose you ain’t got / You can’t miss what you ain’t never had…”.
A mim não me mentiram que a origem dos bebês era uma cegonha: fiquei sabendo, desde tenros anos, de sementinhas plantadas pelo papai nos férteis campos da “barriga” da mamãe. Este conto-de-fadas sanguinolento e teimoso chamado cristianismo, ao que me parece, faz de Deus uma espécie de cegonha metafísica: historinha fictícia que se inventa para não “chocar a crianças” com as verdades da carne e do sexo. Querem nos convencer de que não somos de fato filhos da Terra, mas criaturas que a Cegonha divina lançou lá de cima, e nossa proveniência verdadeira seria as nuvens…
Lorota e baboseira! Sou filho da Terra e não gosto que me mintam! Sou nascido das vísceras de uma mulher, da porra de um homem mesclada com um óvulo não-menstruado, produto de uma noite de amor lá pelos idos de 1983, depois de Cristo, quiçá perto do Natal. Se minha mãe tivesse entrado num convento, na infância, fazendo voto de castidade, eu não teria nem nascido. Vocês entendem meu ponto.
Não creio num Espírito Santo qualquer que “anime” a Natureza: sou filho do fluxos e não dos deuses! Acredito é na semente, lançada na Terra, e que lentamente se torna planta. Com raízes firmes no solo do planeta. Temos mais afinidade ontológica com as plantas do que temos com os deuses, estes produtos da nossa imaginação tão alheios à nossa verdadeira realidade. Desde que me lembro de começar a pensar na vida, apalpar seus mistérios aos tateios, que me sinto assim, mais uma planta ambulante ou macaco com super-cérebro, com minhas raízes sempre grudadas à terra, do que qualquer anjo alado a se divertir em Cucolândia das Nuvens…
Sou absolutamente terrestre. Foi a Terra quem me criou, e não algo lá no Céu. Sou filho da Natureza, mas de uma natureza terráquea e terrestre, aquela mesma que suja os nossos pés de barro quando andamos descalços pelos campos, aquela que nos desarruma o penteado com ventanias e tempestades, aquela que toca nossa pele quando pulamos na água ou quando o fogo nos queima.
Dizer que o celeste criou o terreste me parece absurdo: foi das próprias entranhas da Terra que emergiu a água, e das próprias entranhas da água emergiu a célula, e das próprias entranhas da célula emergiu a vida. A vida, se me permitem a imbecilidade de sustentar uma convicção muito forte que tenho (sou de opinião que ter convicções fortes é uma imbecilidade!), é uma criação terrestre. Este planeta não precisou de ajuda externa alguma para fabricar-nos, a não ser daquela crucial exceção: que não é Deus, é óbvio, mas as estrelas – sobretudo o Sol.
O Sol!
A estrela que chamamos de Sol é uma estrela dentre bilhões de outras estrelas. Não adianta perguntar para os melhores astrônomos do mundo ou da História qual o número exato de estrelas que há no Universo: ninguém sabe precisar. Um número assim, conforme me ensinaram na escola, costuma ser apelidado de “infinito”. Pois bem, pelo menos para os poderes matemáticos da razão humana, o número de estrelas no Universo é tão incontável que tascamos neste número o atributo da infinitude: não te espanta? (Ei, tens olhado o suficiente para os céus estrelados, para o “silêncio eterno dos espaços infinitos” que apavorava Pascal?)
Conta-nos ainda a Ciência que estas estrelas todas, longe de terem sido criadas por um velhinho barbudo sentado numa nuvemzinha, nasceram após a explosão cósmica monumental que resolveram chamar de Big Bang. Como percebem, a figura de Deus foi exilada desta narrativa, desta tentativa de explicar o mundo, pois tornou-se uma “hipótese desnecessária”. Mais que isso: inacreditável, pueril, insensata.
Ainda assim, não estou satisfeito: essa resposta – Big Bang – não me parece o bastante. Resta vivo o maior dos mistérios. Resta aberta a porta para centenas de outras perguntas. O que causou esta explosão? O que havia antes dela? Quanto tempo decorreu desde esta explosão, e quanto tempo antes dela? Estas explosões são relativamente “frequentes” na história do cosmos, ou são eventos raros? O Big Bang é algo único, que só é capaz de acontecer uma única vez, ou é algo passível de repetição, como algumas cosmologias hinduístas sugerem? Não sei respostas.
Só sei, e com uma certeza decorrente de uma experiência recorrente, de um teste empírico constantemente dando-me o mesmo resultado, que a vida decerto depende absolutamente do Sol. Com certeza esta dependência em que estamos em relação à estrela mais próxima de nosso planeta têm muita a ver com a gênese de religões, mitologias e credos animistas. Concordo plenamente com o porra-louca do George Carlin – “I worship the Sun!” – quando ele sustenta que crer no Sol faz muito mais sentido que crer em Deus. Mas, ainda assim, me parece, a mim que não sou físico, astrônomo nem cosmólogo, que o Sol é algo, para a Razão humana, tão incompreensível quanto alguns místicos supunham que Deus fosse.
O Sol é um grande mistério, prossegue sendo, talvez nunca deixe de ser, por mais que nossos telescópios se desenvolvam. Nenhuma nave ou foguete humano jamais pousará no Sol – disso tenho convicção plena. Sunshine, o sci-fi de Danny Boyle, tentou imaginar como isso seria. E concluiu: qualquer navinha metida-a-besta que terráqueos temerários mandassem naquela direção seriam reduzidas a pó e desintegradas de longe pela Potência Espetacular daquela força bruta vomitando fogo.
Lembro do choque que senti quando aprendi na escola que os raios do Sol viajavam a uma velocidade de 300.000 quilômetros por segundo e ainda assim demoravam mais de 8 minutos para chegar até nós. Não existe nada no Universo por nós conhecido que seja mais veloz. Portanto, nada consegue atravessar as distâncias tão bem quanto a luz. E há infinitos pontos de onde emana a luz neste Universo: eis o que chamo de uma realidade absolutamente FRENÉTICA! Quem algum dia pôde acreditar num Universo estático me parece quase um cego, um insensível!
O Universo não somente é eternamente movente, movimento perpétuo, Fluxo Eternal, como a ocorrência de velocidades ALTÍSSIMAS é uma banalidade: acontece todo momento, em infinitos “lugares”, simultaneamente. Não conheço ninguém que não sinta uma “vertigem” ao compreender isso.
Eis o ponto: talvez Heráclito é quem está certo ao afirmar que “tudo flui”, e que Nietzsche, filósofo que tanto deve (e com gratidão confessa) à Heráclito, é quem tenha razão quando nos diz que “o pecado hereditário dos filósofos é a falta de senso histórico” e que é ridículo pensar no homem de hoje como algo que já nasceu pronto e, além do mais, já está finalizado. Ridículo!
Não só não nascemos prontos: ainda mal começamos o processo de nascimento em que, decerto depois de dores de parto intensas, daremos à luz algo de novo a brilhar no planeta do Futuro. Como diz o poeta Murilo Mendes: “Nascer é muito comprido.” O homem não é algo que surgiu feito; é algo que veio-a-ser. Somos um produto da história da Natureza. E podem ter certeza que demorou um bocado. O tempo decorrido antes que existisse qualquer ser-humano é imensamente superior ao tempo que decorreu desde os primeiros Homo Sapiens. Pensem sobre o seguinte e sintam, novamente, algo de vertiginoso lançando nossa razão em trevas estonteantes:
”Comparados com a história da vida orgânica na Terra,
os míseros 50.000 anos do Homo Sapiens
representam 2 segundos ao fim de um dia de 24 horas.”
(um biólogo citado por WALTER BENJAMIN
– Obras Escolhidas I, p. 231.)
Vertiginosa perspectiva! Somos algo de muito recente na história do planeta. E neste tiquinho de tempos conseguimos realizar mais proezas do que qualquer outra das milhões de espécies que a Terra abrigou e abriga. Somos a única espécie que criou a linguagem e a escrita, os castelos e as igrejas, os foguetes e os telescópios, a roda e a Internet, a engenharia genética e a clonagem, as bombas atômicas e os mísseis teleguiados. Fizemos muito em pouco tempo e quase conseguimos mandar tudo às favas numa hecatombe nuclear oni-aniquilante.
Quedamos vivos e somos mais de 7 bilhões coexistindo neste exato momento. Com opiniões absolutamente divergentes e variadas sobre o cosmos, a vida, o sentido de ambos, e da ação correta nesta vida que só fingimos que compreendemos, mas que se parássemos para pensar… nos pareceria uma incógnita. Um X imenso, tão imenso que preenche todo o Universo. Matando-nos porque diferem as opiniões religiosas, políticas, econômicas. Penando com injustiças grotescas, como as centenas de milhões de pessoas vivendo na penúria absoluta, só pele-e-ossos, enquanto milionários enchem o rabo de caviar e gozam perante suas contas bancárias recheadas de zeros à direita.
Transformar milhões de seres humanos em zeros-à-esquerda, condená-los aos massacres cotidianos impostos nos campos de extermínio em massa que o capitalismo cria em suas periferias, para que alguns zeros-à-direita possam ser enfiados na conta suíça de um especulador financeiro sem escrúpulos que absolutamente não precisa de mais grana: eis a triste praga de nosso tempo. Dentre outras, é claro, mas esta é a que mais me fede à Causa Suprema. Que soluções tenho? Estou meditando sobre possíveis, sem ter as respostas prontas (filosofia: processo de gerar respostas sempre incompletas!), mas deixando pegadas para que outros possam me seguir neste caminho, oferecer conselhos, dar palpites, ferventar a reflexão com novas ideias.
Mas uma coisa que acho que falta demais neste mundo é uma Abertura de Percepção, uma Mente Aberta, que enxergue, para além dos dogmatismos e das crenças, o profundo Mistério que nos circunda. Se quisermos ter algum sucesso no desvendamento desta Incógnita Cósmica de tamanho estratosférico, utilizando para isso os recursos da Ciência, da Filosofia, da Arte, da Psicodelia, temos ao menos que reconhecermo-nos como inacabados, criaturas que constrõem-se conforme caminham, rios que fluem nas correntezas do tempo, seres que transformam-se necessariamente, verdadeiras “Metamorfoses Ambulantes”, como tão bem disse Raul Seixas, e que não possuem nenhuma ajuda lá de cima senão aquela fornecida pelo Sol.
Publicado em: 02/10/11
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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