Como definir Euphoria em uma palavra? Se fosse para caber num tweet, para consumo imediato em uma lida de 10 segundos, como sintetizar esta série acachapante produzida pela HBO? Eu escolheria o termo fissura. Eis a síntese da sina não só de Rue, que quase morreu de overdose na adolescência, e cuja saga a série nos faz acompanhar enquanto tenta atravessar viva o labirinto infernal de seus teenage years. Todo mundo nesta série extraordinária em sua sensorialidade e em seu ritmo sincopado está imerso em alguma fissura.
Euphoria – criada por Sam Levinson (filho do cineasta Barry Levinson) – é a saga da geração delivery em estado de exacerbada fissura por psicotrópicos, estupefacientes, antidepressivos, euforizantes, qualquer coisa que se consuma para dar aquele up no astral ou pra dar aquela pancada numbadora na dor. O retrato ágil desta galeria de personagens imersos numa miríade de vícios é realizada com uma rara maestria audiovisual. Neste sentido, evoca obras-primas como Réquiem Para Um Sonho, de D. Aronofsky (2000).
A VIOLÊNCIA NAS VÍSCERAS DA SOCIEDADE FISSURADA
Rue carrega em seu nome uma corruptela de “rule”: ela é a encarnação de uma regra que perdeu letra, de um nómos que entrou em pane. Suas atitudes são mesmo as de alguém que dribla as regras, que ginga para fora dos controles e dos obstáculos que a impedem de chapar. Unruly Rue vai triturando rules em seu caminho para que possa tratar a dor de seu viver com o alívio imediato de um fármaco, lícito ou ilícito, não importa.
Descrita às vezes como fuckin’ junkhead Rue, a protagonista de Euphoria não vive uma vida fácil. Na real parece morar dentro de um rap de Tupac Shakur. Ela tem a lábia afiada de alguém que cresceu sendo mais educada pela música pop e pelos feeds da Web do que pela escola ou pela família. É uma membra da Geração Z, a dos nativos digitais, galerinha que hoje vê como ícones figuras como Billie Eillish ou Kendrick Lamar.
Ela já conhece mais rehabs em seus 16 aninhos na Terra do que 99% das pretendentes a nova Amy Winehouse. Na ausência da figura paterna, em meio aos seus traumas de órfã e de anormal-queer, Rue frequenta as ruas de bairros perigosos, zanza por mean streets em busca do pó, do pico, da pílula. Seu vício frenético evoca personagens como Christiane F, ou como a namorada de Sid Vicious, Nancy Spungen. Ela também poderia ser alguém dentro dos livros de William S. Burroughs.
O contexto social mais abrangente têm suas similaridades com aquele que marca Breaking Bad, série de 5 temporadas criada por Vince Gillighan. Ambas lidam com figuras desencaminhadas, que saem do trilho esperado, que tornam-se “más” assim como fez o pacato professor de química Walter White, metamorfoseado num mega produtor de meta-anfetamina em parceria com seu ex-aluno encrenqueiro, Jesse Pinkman.
Rue é um pouco esta figura Jesse Pinkmanesca, alguém sempre à beira de abandonar não apenas a escola mas a companhia dos vivos, e ela também breaks bad. A certo ponto, ela coloca ao espectador a questão: “quantas minas vocês conhecem que traficam?” Ela promete entrar no mercado das drogas ilícitas não mais apenas como usuária, talvez por estar cansada de conviver com traficantes machões, tóxicos, violentos, como aquele que assombra com sua presença truculenta o seu traficante predileto.
É assim que Euphoria embarca num caudaloso rio cultural que tem em Breaking Bad uma de suas expressões mais bem-acabadas e lança Rue no labirinto da ilicitude do tráfico. O que atinge feições dramáticas na segunda temporada, quando ela é “traída” por Jules e seu namoradinho, que deduram para a mãe os primeiros passos de Rue no tráfico – e lá se vão alguns milhares de dólares em mercadoria pela privada abaixo…
O abuso de Rue é remetido ao trauma da orfandade, mas seu pai ter morrido não é causa única que explicaria sua drogadicção. Há um elemento mercadológico, societário, macropolítico, que a série não recalca e que faz o espectador refletir: a profusão de psicotrópicos que esta sociedade da Californication promove. Os mais velhos, apegados a uma ética mais austera e ascética, podem ler esta adolescência chapadíssima e hiper-conectada à WWW e às deep webs como perdida em meio ao vício moral da intemperança. Mas esta não pode ser atribuída a indivíduos, sendo socialmente produzida pela hýbris de medcamentalização de nossas vidas sob o capitalismo farmacopornográfico tão bem decifrado por Preciado.
BORDERLINE: UM PSIQUÊ EM ESTADO DE ABISMO
Rue tem uma psiquê que somos tentados a chamar de borderline. Ela está sempre prestes a se jogar em algum abismo. A série explora sem moralismos e destroçando tabus os extremos da condição adolescente atual através do abuso de substâncias e do romance de gênero fluido de Rue com a adolescente transexual Jules.
As drogas são para unruly Rue um recurso recorrente – ela usou, abusou e ainda não se regenerou. As brigas familiares frisam tudo que há de disfuncional em seu núcleo primevo de pertença, onde a ausência da figura paterna parece lançá-la para as ruas e seus perigos, enquanto a mãe e a irmã desesperam-se tentando fazer com que Rue não morra ainda jovem.
Na série, não faltam expressões da toxicidade de machos gangsterizados que agarram as minas pelo pescoço, que as obrigam a se despir, que se impõe pela força bruta de uma voz grossa ou dos músculos. Rue – que Zendaya interpreta com uma autenticidade impressionante – parece estar cansada de ter que vivenciar estas relações com os brutamontes para sustentar o seu vício. A série é também a crônica de sua tentativa de tornar-se sóbria, de encontrar um mínimo de caretice que a permita não ser destruída pela compulsão à repetição no consumo de euforizantes e antidepressivos. De pico em pico, de pó em pó, ela estava indo era para um túmulo precoce e uma vida desperdiçada.
Este Twin Peak ultra-violento não deixa de revelar uma certa masculinização forçada de Ruepara lidar com um contexto onde machos tóxicos proliferam e rosnam, querendo dominar a sociedade inteira e, evidentemente, também o microcosmo das drogas. Na série se expressa isto que Márcia Tiburi apelidou “sociedade fissurada” em tintas hardcore, sem pudores de exibir a nudez e o sexo explícitos (esta é a série com mais paus exibidos sem firulas de toda a história da TV?). Qual é a tua fissura?
As fissuras são lucrativas e o turbocapitalismo moribundo quer aproveitar este hipermercado. Como? Fissurando-nos em Prozacs e Rivotrils, em Viagras e Nolvaginas, além é claro de corações artificiais nas telas digitais, everything that numbs the pain…
Rue, a estranha, a inadaptada, é também expressão de uma subjetividade jovem hegemônica, incapaz de protelar a satisfação da pulsão em uma conjuntura social onde tudo conspira – sobretudo a ubíqua publicidade propagada pela indústria farmacêutica – a vender soluções químicas, compráveis na drogaria ou com os traficantes no mercado clandestino multibilionário. A boca de fumo é só a faceta ilícita de uma tendência social hegemônica de chapação lícita também descontrolada. O laissez faire deu nisso: um United States of Addiction.
Rue poderia ser uma riot girl em Portland, uma MC juvenil em New Orleans, uma Krautrocker em Frankfurt, uma punkrocker em London. Rue é muitas garotas assim, que transbordam da regra, breaking the law. Mas está provavelmente – apesar da ausência explícita de referência a uma cidade na série – engolfada por uma cultura californiana, hollywoodiana, um local onde a oferta de estupefacientes é estarrecedora e os milhões de dólares que circulam no mercado de drogas é acachapante. Euphoria é o retrato agridoce, tragicômico, assustador-sublime, da frenética busca por um fix chapante em meio à Californication.
GERAÇÃO Z: RUMO AO GÊNERO FLUIDO E À SEXUALIDADE PÓS-BINÁRIA
Euphoria, através do romance teen-queer entre Rue e Jules, expressa também algo sobre a Geração Z: pesquisas indicam que, de maneira sem precedentes, os nativos digitais consideram o gênero como algo fluido e desapegam-se cada vez mais de papéis muito rígidos como aqueles impostos pelo hetero-patriarcado, instância impositora da heterossexualidade compulsória. Em um interessante trecho do artigo publicado no site Them, aponta-se:
“…the show does offer some real, raw insight into what it means to be a teenager in 2019, especially in an age when gender and sexuality labels mean less than ever before. A 2017 study found that members of Generation Z (those born between 1995 and 2015) are less likely to identify as “straight” than any other generation before them. Over a third of digital natives self-identify under the LGBTQ+ umbrella, compared to a fourth of Millennials. In fact, less than half of Gen-Z youth identity as “completely heterosexual.” Appropriately, the wildly precocious high-schoolers in Euphoria are sexually open, adventurous, and fluid. Nowhere is this more apparent than in the budding relationship between the show’s central protagonist, Rue (Zendaya), and her best friend-cum-lover, Jules (Hunter Schaefer). (CUBY, Michael)
https://www.them.us/story/euphoria-rue-jules-queer-teen-love-story
https://www.teenvogue.com/story/heres-how-and-why-sexual-identity-exists-on-a-spectrum
O clima cultural da Gen Z é hoje muito mais marcado por ícones pop que se declaram como não-binários, como transexuais, como pansexuais, com exemplos que proliferam: se, à época do lançamento de Matrix, o filme era atribuído aos irmãos Wachowski, hoje a saga já tem como suas criadoras reconhecidas as irmãs (trans) Lana e Lilly Wachowski; aquela que era conhecida como Ellen Page, uma atriz cis que estrelou Juno, Inception, Tallullah e Fragmentos de Tracy, demanda hoje ser reconhecida como o ator trans Eliott Page; a banda punk Against Me, que tinha antigamente um vocalista homem, hoje é liderada pela mulher trans Laura Jane Grace; e estrelas como Miley Cyrus e Janelle Monáe dizem-se pansexuais.
Rue lida com naturalidade ao artifício com que Jules transita do pólo menino ao pólo menina. A própria presença forte, densa, nas peles dos personagens, de maquiagens indica um gosto pelo glam, pelo glitter, que dá aquela piscada de olhos a uma cultura que, algumas décadas antes, entronizou figuras andróginas como o Bowie circa-Ziggy Stardust, Marc Bolan do T Rex ou a banda proto-punk de travecos The New York Dolls.
Rue aproxima-se de Jules sem colocar a fundo a questão da “moralidade” de relacionar-se com uma pessoa meio andrógina, marcada pela indefinição de gênero, e que transita por relações com homens e mulheres, forjando aos poucos sua ID de mulher trans (que já tem imagens gravadas “dando” para o pai de Nate…).
Rue e Jules são queer chicks da Geração Z, aquela que tende a se descolar cada vez mais das identidades straight. Vivendo nos tempos do amor líquido de que nos fala Zygmunt Bauman, enxergam o gênero e a sexualidade como fluidos e não como sólidos.
Há uma dissidência de gênero que se elabora em Jules, e que fascina Rue para este relacionamento. De modo que em seus corações selvagens as regras dos caretas, a straight-jacket dos normais, é um gospel com letras faltantes. Como uma Bíblia parcialmente devorada por um cachorro e na qual apareceria a palavra rule com o L faltando. Unruly Rue e transgrils Jules são encarnações de uma contestação ao nómos que se estetiza num dar-estilo-à-própria-existência que poderia ser decifrada sob um prisma Foucaultiano.
A VIOLÊNCIA ANDA TÃO UBERIZADA
A uber-violência está no cerne de Euphoria. Uma subcultura jovem uber-chapada é também toda trespassada pela violência recíproca. Ex: Nate é especialista em maltratar suas namoradinhas – capaz de agarrar uma mulher pelo pescoço até quase matá-la por choking, é também capaz de torturar um outro rapaz a quem atribui puladas-de-cerca com sua namorada.
Vidas precárias, mortes brutas e súbitas, marcam esta violência uberizada, inimiga da paciência do luto e da elaboração artística pela via do drmaa trágico. O capitalismo em estado de necrose secreta a bílis de uma uber-violência, de uma brutalidade ubíqua. Rue é a barda deste caos. A narradora de violências que a perpassam. A língua-beatnik que descreve com ferinidade as vidas daqueles com quem convive. Longe de ser apenas vítima, Rue é protagonista de um destino angustioso, querendo asas de Ícaro para voar deste labirinto onde transita de skate e quebrando todas as correntes com que tentam encerrá-la na jaula das normoses.
Ao final de sua segunda temporada, lançando-se no labirinto de uma metalinguagem cada vez mais complexa, a série insere no enredo uma peça de teatro escrita por Lexi, chamada Our Lives. As vidas que víamos na TV agora estão representadas na peça-dentro-da-série, assim como as ressonâncias desta nos jovens ali representados. Aponta-se aí para a possibilidade de uma transfiguração estética da existência em que estes jovens cessam de ser as vítimas de uma cultura uber-narcotizada e hiper-violenta, para tornarem-se os narradores de suas próprias teias de relações, os bardos de seus caóticos labirintos de vínculos entrelaçados e de substâncias desnorteantes.
Esteticamente ousada, de montagem estarrecedoramente bem orquestrada, com uma rítmica fílmica de arrancar elogios dos cinéfilos que apreciam Aronofsky, Larry Clark ou Gus Van Sant, Euphoria é uma obra que merece ser assistida por todos aqueles que se interessam num mergulho na condição dos sujeitos contemporâneos.
Unruly Rue e transgirl Jules, protagonizando uma série polifônica que ainda inclui muitos outros dramas de personagens secundários, reinventam o amor-queer na adolescência rebelde enquanto a série nos faz rodar num rollercoaster de emoções frenéticas e vidas caóticas.
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Publicado em: 16/04/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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