“O que é que o futuro já fez por mim?”, pergunta o “tapado” humano do presente, dando de ombros, de maneira ostensiva e desdenhosa, em relação ao porvir do planeta.
Se pedirmos ao cidadão-comum, consumidor voraz de hambúrgueres e combustíveis fósseis, financiador de empresas ecocidas, clamando para que ele pense nas futuras gerações e permita que elas pesem desde já sobre suas escolhas e ações, é bem provável que sejamos ignorados.
Este cidadão provavelmente vomitará sobre nós os implantes culturais que a ideologia nele inculcou: pragmático e imediatista, dirá que não se importa em nada com aqueles que ainda não nasceram, que a única coisa que importa é o aqui-e-agora, que a vida só vale a pena se a gozarmos sem entraves, e talvez até encha a boca para ecoar Thomas Jefferson e defender seu direito inalienável à busca da felicidade (the pursuit of happiness).
Tal atitude de “foda-se o futuro!”, somada à postura de gozo presente através da consumação de mercadorias disponibilizadas pelo mercado capitalista, com suas seduções construídas pelo aparato de marketing, de fato está fazendo o futuro se foder – e o presente junto, pois o horizonte faz parte do presente e hoje o horizonte está cada vez mais nublado e ameaçador.
A atitude de desprezo pelos temas da justiça intergeracional, de desdém pelo apelo para que atentemos à vida porvir e às condições planetárias para que esta vida por nascer necessita para florescer, é um dos problemas mais graves do mundo – ainda que seja tão pouco debatido e tratado quase como tabu. Este “foda-se o futuro”, quando transforma-se em fenômeno de massas, altamente disseminado, como é o caso hoje, torna-se uma gigantesca bomba relógio. Ela explodirá sobre os que virão, mas já está explodindo sobre nós que caminhamos para lá e que não estaremos vivos para sentir na pele os efeitos catastróficos do que hoje fazemos e deixamos de fazer.
Escreve Hans Jonas: “Com o que fazemos aqui e agora, na maioria das vezes pensando em nós mesmos, afetamos maciçamente a vida de milhões de pessoas, alhures e no futuro, que não foram consultadas a esse respeito. Hipotecamos a vida futura em troca de vantagens e necessidades atuais a curto prazo – e, quanto a isso, na maioria das vezes, em função de necessidades autocriadas.
O ponto relevante aqui é a intrusão de dimensões remotas, futuras e globais, em nossas decisões prático-mundanas cotidianas, é uma novidade ética que a técnica nos confiou; e a categoria ética que este novo fato traz para o primeiro plano se chama responsabilidade”. (Ed. Paulus, p. 54 – 55)
Justo na época onde mais precisamos de figuras públicas responsáveis, capazes de ouvir desde já a voz de futuras gerações, atentas ao apelo dos seres sencientes do porvir, cientes da importância da ecologia, vivenciamos a catástrofe do empoderamento de canalhas ecocidas e genocidas como Jair Bolsonaro e seus sinistros ministros. Seu Jair é evidentemente um analfabeto ecológico completo, incapaz em sua estupidez relinchante de qualquer pensamento ético minimamente sensível e racional – é uma máquina de vomitar ódio e produzir a morte em massa. Um sujeito que demonstrou, com sua péssima gestão da crise do coronavírus, ter a mesma competência para a administração pública que tem um orangotango pilotando um Boeing 747.
Em um momento histórico onde é mais urgente do que nunca frear a destruição ambiental e a aniquilação das possibilidades de um planeta acolhedor da diversidade da vida-em-teia que aqui tem desenrolado seu longo drama de evolução, estamos empacados em podridões políticas que empoderam canalhas estúpidos e destrutivos como Bolsonaro e seu Ministro “passador de boiada” – sobre tais líderes, vale a ironia que inaugura um dos melhores álbuns do indie-rock pós Ok Computer, o Sophtware Slump do Grandaddy: “Ele é burro, ele é cego, ele é o piloto”….
É mais urgente que nunca, como alerta Jonas, romper com o antropocentrismo (e o especismo a ele conectado), e isso exige uma revolução ética que os populistas da extrema-direita estão muito distantes de serem capazes de fazer. Eles representam, na verdade, uma tendência suicidária que conduz a Humanidade na rota da auto-destruição. São a encarnação da necrofilia bem quando precisamos de biofilia em escala planetária – com tudo que isto implica de primaria ao bio e não ao antropo.
Como diz Jonas, é preciso “romper o monopólio antropocêntrico da maioria dos sistemas éticos anteriores, sejam religiosos ou seculares. Era sempre o bem humano que devia ser fomentado…. mas agora a biosfera inteira do planeta, com toda a sua abundância de espécies, em sua recém-revelada vulnerabilidade perante as excessivas intervenções do homem, reivindica sua parcela do respeito que se deve a tudo o que é um fim em si mesmo, quer dizer, a todos os viventes.
Sem dúvida, o mandamento de não deixar aos nossos descendentes uma herança desolada expressa esta ampliação do campo de visão ético ainda no sentido de um dever humano perante os homens, como um aumento da solidariedade inter-humana…. pois vida extra-humana, natureza empobrecida, significa também uma vida humana empobrecida… a inclusão da diversidade da vida como tal no bem humano e, portanto, a inclusão de sua preservação no dever do homem, vai além do ponto de vista orientado utilitariamente e de todo ponto de vista antropocêntrico.” (pg. 56)
A tremenda injustiça geracional que consiste em ligar o “foda-se” hoje e deixar que os viventes futuros paguem a conta de nossos excessos, exige um outro imperativo ético que faz a nós seu apelo: quem de nós falará hoje por aqueles que ainda nem nasceram? Quem lutará, desde já, para que aos humanos futuros seja legado um mundo digno de ser vivido? Por que perguntar o que o futuro já fez por você, ao invés de perguntar o que você pode fazer pelo futuro?
Nos debates atuais sobre justiça ambiental, é cada vez mais premente o imperativo de “defesa dos direitos das populações futuras”, um tema que coloca inúmeros problemas de alta complexidade teórica e prática, dificuldades desafiadoras que deveriam estar merecendo o melhor de nossos esforços, e não o pior do nosso desdém:
“Como os representantes dos movimentos por justiça ambiental fazem logicamente a articulação entre lutas presentes e ‘direitos futuros’? Propondo a interrupção dos mecanismos de transferência dos custos ambientais do desenvolvimento para os mais pobres. Pois o que estes movimentos tentam mostrar é que, enquanto os males ambientais puderem ser transferidos para os mais pobres, a pressão geral sobre o ambiente não cessará. Eles fazem, assim, a ligação entre o discurso genérico sobre o futuro e as condições históricas concretas pelas quais, no presente, esse futuro está se definindo. Dá-se aí a junção estratégica entre justiça social e proteção ambiental: pela afirmação de que, para barrar a pressão destrutiva sobre o meio de todos, é preciso começar protegendo os mais fracos.” (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA; 2009, p. 147)
Eduardo Carli de Moraes / A Casa de Vidro – www.acasadevidro.com
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília C. A.; BEZERRA, Gustavo. O que é Justiça Ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
JONAS, Hans. Técnica, Medicina e Ética – Sobre a prática do princípio responsabilidade. Coleção: Ethos. São Paulo: Ed. Paulus, 2013.
Publicado em: 18/09/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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