SUBMISSÃO E INSURGÊNCIA EM KAFKA
Por Eduardo Carli de Moraes & Gisele Toassa
“Escrever – segundo Kafka acreditava – era sua única razão de viver e seu único meio de manter-se vivo. Escrevo, logo existo.
Sendo filho não de Deus, mas sim de Herrmann Kafka e da Idade da Razão, Kafka torturou a si próprio e aos que lhe eram íntimos com a tentativa constante de tentar justificar e racionalizar aquilo que não admite explicações. O momento em que mais se acercou da fonte de suas necessidades e de sua arte talvez tenha sido em uma carta a Milena Jesenská: “Tento constantemente comunicar algo incomunicável, explicar algo inexplicável, falar de algo que sinto apenas em meus ossos e que só pode ser experimentado nestes ossos…”
Kafka não era um homem que escrevia, mas alguém para quem escrever era a única forma de ser, o único meio de desafiar a morte em vida. (…) Ele permaneceu relativamente desconhecido durante sua vida, mas sua fama póstuma chegou quase a eclipsar a de todo o meio literário de Praga; os luminares de sua época estão mortos e, quer tenham sido queimados ou enterrados, já não têm o poder de assombrar-nos. Se Kafka o faz, isso se deve, em larga escala, à paixão obsessiva que levou para o escrever como um ofício sagrado.
Isso não equivale a imputar-lhe a pretensão furtiva de alguma missão divina, humildemente não confessada. A compulsão irresistível de escrever parecia-lhe parte de um destino obscuro e profundamente pessoal, e não há dúvida de que, em boa parte do tempo, sentiu-se mais compelido do que escolhido.
“O escrever me sustenta”, escreve Kafka a Max Brod em 1922, “Quando não escrevo, é bem pior, inteiramente insuportável, e termina, inevitavelmente, na loucura. Isso, é claro, apenas partindo do pressuposto de que eu seja um escritor mesmo quando não escrevo – o que, aliás, é um fato; e um escritor que não escreve é, na verdade, um monstro que corteja a insanidade.”
Por mais singulares que fossem os sentimentos de Kafka sobre a vocação que escolheu, eles refletem também o espírito de uma era em que a literatura havia tomado o lugar da fé, dos ritos e da tradição, convertendo-se, ela própria, numa espécie de religião. Esse fenômeno não se restringiu aos judeus: Flaubert fala na literatura como “la mystique de qui ne croit à rien” (a mística de quem não crê em nada).”
I. ENTRE SUBMISSÃO E INSURGÊNCIA
Em O Pesadelo da Razão, Ernst Pawel sugere que a vida e a obra de Kafka seriam uma longa reflexão sobre um estranho fenômeno que “está longe de ser raro”: “O prisioneiro que anseia pela liberdade e que, quando enfim se abrem os portões, recusa-se a sair.” (PAWEL: pg. 188)
Desde 1908 até o fim de sua vida, em 1924, o Doutor em Direito Franz Kafka trabalhou como funcionário do Instituto de Seguros de Acidentes do Trabalhador, em Praga, no Reino da Boêmia. Este setor da burocracia do Império Austro-Húngaro era uma espécie de escritório de advocacia que lidava com casos de trabalhadores feridos em serviço. Este Instituto “era responsável por bem mais de 35.000 empresas industriais”, de portes variáveis, espalhadas por um imenso território – o que às vezes exigia que Kafka viajasse para cantos do Império onde nunca antes estivera.
Em seu trabalho cotidiano, tinha que lidar com dúzias e dúzias de casos de “desgraçados”: os “Lulas” anônimos do proletariado machucado, aqueles que perdem dedos nas linhas-de-montagem ou acabam sendo tragados – como Carlitos em Tempos Modernos – pelas engrenagens. Kafka convive diariamente com casos de pessoas que, por exaustão ou distração passageira, não acompanham o ritmo da mecânica industrial, descuidam das cadências e acabam pagando o preço em membros decepados e outras desgraças.
De modo indireto, portanto, como explora Michael Löwy em Kafka: Sonhador Insubmisso, a obra kafkiana conteria uma aguda crítica ao mundo capitalista. Este seria visto através de uma ótica que desvela todo o pesadelo de um capitalismo burocratizado, mecânico, explorador,desumanizador, decepador dos corpos e destruidor da sanidade das mentes. O escritório onde Kafka trabalhava pretendia regular as relações entre patrões e empregados em casos trágicos de mutilação, invalidez permanente ou mesmo morte no serviço. “Esta experiência ao lidar com as reclamações de invalidez e morte em benefício de trabalhadores mutilados ou mortos em suas funções serviram para reforçar a identificação instintiva com os oprimidos que definiu sua orientação política manifesta.” (PAWEL: O Assalto à Razão, p. 183)
Na obra de Kafka, pois, o potencial político não decorre de qualquer tomada-de-partido revolucionária ou engajamento ativo na construção de um outro mundo possível, mas sim de sua denúncia, com conhecimento de causa, de um sistema desumanizante, que Kafka captava com rara sensibilidade ao “identificar-se instintivamente com os oprimidos”. Mas, em Kafka, esta “identificação instintiva com os oprimidos” de que fala Pawel não é ingênua mas crítica: Kafka surpreende-se, por exemplo, com a “humildade” e a “submissão” dos trabalhadores. Como relembra Max Brod, seu amigo Franz um dia comentou com perplexidade: “Como são humildes essas pessoas. Em vez de se precipitarem sobre o Instituto e estraçalharem o lugar em pedacinhos, eles vêm nos apresentar requerimentos…”
Kafka, portanto, parece perceber com perplexidade o fenômeno de massas que consiste em trabalhadores, um tanto resignados e fatalistas, que mantinham-se presos a formulários e rígidos horários, impotentes para mudar sua condição de oprimidos.
Lembremos do começo de A Colônia Penal: neste conto, Kafka descreve um aparelho de tortura que existe numa ilha-penitenciária. Ali, são supliciadas pessoas que não sabem que crime cometeram – um pouco como Josef K., em O Processo, que jamais descobre o que ele fez de errado e permanece até o fim do romance convicto de ter sido vítima de uma calúnia.
Na Colônia Penal, os condenados têm suas peles marcadas brutalmente por uma “tatuagem” sinistra e sanguinolenta – no caso específico que o conto relata, “Honre seu superior” é a tatoo que é imposta. É um cenário de pesadelo, principalmente pois as autoridades brutais que ali reinam não sofrem nenhum tipo de contestação por parte dos submetidos. A literatura de Kafka é um recorrente assombro diante da apatia, da incapacidade de levante, que acomete muitos humilhados e ofendidos.
“Vamos às atividades do dia:
Lavar os copos, contar os corpos,
E sorrir de nossa morna rebeldia…”
Letra do rapper CRIOLO, na música “Lion Man”
(Álbum “Nó na Orelha”)
Kafka, na Colônia Penal, descreve um condenado cuja mais impressionante característica é sua impassibilidade, sua aceitação resignada do que lhe é imposto; o condenado é de uma “sujeição tão canina que a impressão que dava era a de que se poderia deixa-lo vaguear livremente pelas encostas, sendo preciso apenas que se assobiasse no começo da execução para que ele viesse…” (Trad. Modesto Carone, Pg. 30)
Se Kafka pôde escrever cenas tão vívidas de tortura – em A Colônia Penal e no capítulo “O Espancador” de O Processo, por exemplo – isto talvez se deva não somente às torturas de que ele se sentiu vítima, nas mãos de seu pai Hermann, mas também à sua experiência profissional junto ao proletariado da Boêmia. Eis um campo de pesquisa muito amplo e interessante a ser pesquisado pelos estudiosos de Kafka, e que têm já foi trilhado em obras de muito interesse por Michael Löwy, Ernst Pawel, Pierre Bourdieu etc.
Nada utopista ou otimista, Kafka não cessa de refletir sobre a problemática da submissão. Estar diante de gente tão submissa deixa-lhe perplexo: como pode que o condenado possa sofrer penas tão terríveis na máquina de tortura e ainda assim mostrar-se comportado como um cão? A mesma perplexidade pode surgir diante dos fenômenos que Pierre Clastres descreve sobre os ritos de iniciação que utilizam técnicas torturantes como modo de marcar uma passagem: que força é esta que leva os torturados a se submeterem a tamanhos sofrimentos? Em outros termos, como responder ao mistério: por que a revolta é tão rara?
A elucidação disso exigiria uma análise mais detida de outros textos, como o Tratado da Servidão Voluntária de La Boétie, O Medo à Liberdade de Erich Fromm, A Psicologia de Massas do Fascismo de Wilhelm Reich – o que não é intenção do presente artigo. Para focarmos a atenção na obra kafkiana, apontemos uma impressão de leitor: ao retratar a tortura, parece-me, Kafka certamente foi mais influenciado por suas vivências existenciais, por sua realidade laboral e familiar, do que por quaisquer leituras que tenha feito das teorias e ideologias de seu tempo. Max Brod pinta o retrato de um Kafka que abominava seu próprio emprego, “vítima impotente aprisionada nas engrenagens de um impiedoso esmagador de cérebros e condenada a uma labuta insensata e desumana”, como relata Pawel (p. 185).
Mas o biógrafo lembra que este emprego não poderia ser tão horripilante assim, já que possibilitava a Kafka ter ¾ dos dias livres (seu turno era de somente 6 horas, das 8 da manhã às 2 da tarde…), “estando longe de ser estafante em termos de volume ou carga horária”. De modo que Pawel afirma: “longe de ser uma peça de engrenagem sem nome num motor gigantesco, Kafka esteve, desde o início, em posições de decisão, e contribuiu com sua quota para uma redução significativa dos acidentes mutilantes e fatais em algumas das principais indústrias da Boêmia.” (Pawel: Pg. 185)
Kafka, é claro, não podia suportar bem a vida de burocrata, antagônica em relação à existência de artista criador que ele julgava ser sua vocação sagrada: “já em 1912, seus poderes como artista criador tinham começado a afirmar-se integralmente – e Kafka passou a encarar as exigências do cargo como causa fundamental da esmagadora depressão que lhe minava a criatividade.” (Pawel: pg. 186)
Permaneceu um grande solitário, vida afora, não se filiando a nenhum partido ou causa – não vinculou sua identidade nem ao judaísmo, nem ao sionismo; tampouco pregava slogans marxistas ou anarquistas (apesar do fascínio que sobre ele exerceram figuras como Kropotkin e Herzen). Longe de ser um entusiasta da causa proletária, um ativista que luta lado a lado com os oprimidos com os quais se identifica, Kafka “estava sempre só na multidão, em vez de ser parte dela.” (PAWEL: p. 154)
A solidão de Kafka não o impediu de pintar, em suas obras, um impressionante retrato social onde as arbitrariedades insanas do Castelo e do Tribunal não cessam de humilhar e rebaixar aqueles que, de tão pisoteados, não tem mais a força de insurreição que seria de se esperar de quem vive sob condições desumanas. O trágico em Kafka é o quanto as pessoas acabam, por serem demasiado judiadas, virando encarnações da submissão fatalista. Parece-me que Kafka nunca pôde admirar esta característica, nem nos outros nem em si mesmo, e talvez sua auto-depreciação tão profunda, sua tendência ao auto-flagelamento, venha também da sensação de ter sido, também ele, um dos submissos.
Kafka, em sua obra, pode até ser um “sonhador insubmisso”, como diz Michael Löwy no brilhante livro que lhe dedica, mas em sua vida foi com muita frequência aquele que se submete: primeiro, ao pai, tornando-se seu empregado, permanecendo junto a ele no comércio até muito tarde na vida, apesar do veneno do relacionamento; depois, às exigências de seu cargo, que desempenhava com muita perícia e competência, mas sem gosto – já que devotava seu amor quase inteiro à literatura. Este amante dos livros, que em Praga tinha como locais favoritos as livrarias velhas e encardidas, amava Goethe, Hesse, Flaubert, Kleist e Dickens infinitamente mais do que seu trabalho.
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II. A TORTURA COMO PEDAGOGIA
Em seu artigo “Da Tortura nas Sociedades Primitivas”, o filósofo e antropólogo francês Pierre Clastres (1934 – 1977) enfatiza a conexão entre a escrita da lei e a tortura dos corpos: “Que a lei encontre uma forma de se inscrever em espaços inesperados é o que pode nos ensinar esta ou aquela obra literária. O funcionário de A Colônia Penal, de Franz Kafka, explica minuciosamente ao visitante o funcionamento de uma máquina de escrever a lei” (CLASTRES: A sociedade contra o Estado, pg. 191, Cosac e Naify), que consiste em “gravar o parágrafo transgredido sobre a pele do culpado. Vai-se, por exemplo, escrever no corpo do condenado: ‘Respeite o seu superior’ …”.
Nesta obra, Kafka concebe “o corpo como superfície de escrita, como superfície apta para receber o texto legível da lei” (CLASTRES: p. 191). Através da imposição destas sinistras tatuagens ao corpo do condenado, o poder deixaria uma marca indelével e perpétua sobre aqueles sobre quem se exerce. Cabe lembrar que alguns artistas do cinema contemporâneo já retrataram procedimentos semelhantes em suas obras: é o caso de O Livro de Cabeceira, de Peter Greenaway, e Amnésia (Memento), de Christopher Nolan, filmes que tematizam o corpo como receptáculo de linguagem.
Neste último filme, o protagonista, após sofrer um trauma cerebral, acometido por uma condição neurológica que lhe impede o registro de memórias recentes, encontra nas tatuagens que faz em seu próprio corpo um poderoso auxílio mnemotécnico. O próprio sofrimento imposto à pele por esta escrita na carne viva aí aparece como aliado da deusa batizada pelos gregos de Mnemosyne, a Mãe das Musas. Também cabe lembrar que Nietzsche refletiu na Genealogia da Moral sobre as crueldades inerentes ao processo mnemotécnico necessário para a conversão do homem em “um animal capaz de prometer”.
Grande parte do esforço de Clastres dirige-se a mostrar que tais procedimentos de modo algum se restringem à arte ou à ficção. Será lícito supor que Kafka compôs A Colônia Penal não somente a partir de um pesadelo subjetivo, descrevendo alguma maquinaria infernal imaginária-paranóica, mas partindo de conhecimentos históricos que possuía sobre os cruéis meandros do Direito?
Como exemplo do corpo como superfície passível de veicular linguagem, basta relembrar os testemunhos de prisioneiros soviéticos nas colônias penais da Moldávia, coligidas no livro de Anatoli Martchenko, Mon Témoignage (Paris: Seuil, Col. Combats, 1971). Aí o autor descreve a maneira como os deportados se auto-infligiam máximas, tatuadas em seus rostos: “Escravos de Kruchtchev”, “Escravos do P.C.U.S.” ou “Comunistas = Carrascos”.
A pele como superfície onde inscrever uma mensagem tampouco é uma invenção dos prisioneiros das gulags:
“É muito extenso o número de sociedades primitivas que mostram a importância por elas atribuída ao ingresso dos jovens na idade adulta através da instituição dos chamados ritos de passagem. (…) Quase sempre o rito iniciático considera a utilização do corpo dos iniciados. É, sem qualquer intermediário, o corpo que a sociedade designa como único espaço propício a conter o sinal de um tempo, o traço de uma passagem, a determinação de um destino.” (CLASTRES: p. 193)
O pintor George Catlin, em Les Indiens de la Prairie (Club des Librairies de France, 1959), descreve e ilustra com desenhos sua experiência de testemunhar por 4 dias à cerimônia anual dos índios Mandan – e, como relata Clastres, “não pode deixar de manifestar seu espanto e horror diante do espetáculo do rito, pois o fato é que, através do cerimonial, a sociedade se apodera do corpo e (…) quase de modo constante – e é isso que aterroriza Catlin – o ritual submete o corpo à tortura” (CLASTRES: p. 194).
Todos os jovens índios Mandam, depois de quatro dias de jejum absoluto, depois de três noites insones, têm o corpo furado e “estiletes enterrados nas chagas”; o enforcamento, a amputação, as carnes rasgadas, são outras técnicas empregadas neste rito em que “parecem inesgotáveis os recursos da crueldade” (CLASTRES: idem).
O próprio Clastres, com vasta experiência junto aos índios Guayaki e Mbayá-Guaykuru do Paraguai, aponta que estes ritos estão longe de serem exceção: entre os Mbayá, os jovens passam por uma prova que consiste em “ter o pênis e outras partes do corpo perfurados com um afiado osso de jaguar” (p. 195). Tampouco as mulheres escapam disso: Martin Dobrizhoffer narra que os Abipones “tatuam cruelmente o rosto das jovens quando se verifica a sua primeira menstruação” (in: Historia de los Abipones, 3 vols., 1967). “De uma tribo a outra, de uma a outra região, diferem as técnicas, os meios, os objetivos explicitamente afirmados da crueldade; mas a meta é sempre a mesma: provocar o sofrimento. (…) A dor acaba sempre se tornando insuportável: sem proferir palavra, o torturado desmaia.” (CLASTRES: p. 195)
Eis um outro elemento que choca o antropólogo ou etnólogo que testemunha estas cerimônias: o fato dos jovens não proferirem uma palavra sequer durante as torturas a que são submetidos.
“A impassibilidade, eu poderia até mesmo dizer a serenidade com que esses jovens suportavam o martírio, era ainda mais extraordinária do que o próprio suplício… Meu coração padeceu com tais espetáculos, e costumes tão abomináveis encheram-me de desgosto: estou, porém, pronto – e de todo coração – a desculpar os índios, a perdoar-lhes as superstições que os levam a atos de tal selvageria, em virtude da coragem que demonstram, do seu notável poder de resistência, do seu excepcional estoicismo…” (GEORGE CATLIN).
Em sua tentativa de compreender a função do sofrimento, Clastres aponta que “a iniciação é, inegavelmente, uma comprovação da coragem pessoal, e esta se exprime no silêncio oposto ao sofrimento.” (p. 196) Não se trata, aliás, de um sofrimento extremo mas passageiro, pois os sulcos e as cicatrizes permanecerão:
“Um homem iniciado é um homem marcado. O objetivo da iniciação, em seu momento de tortura, é marcar o corpo: no ritual iniciático, a sociedade imprime a sua marca no corpo dos jovens. Ora, uma cicatriz, um sulco, uma marca são indeléveis. Inscritos na profundidade da pele, atestarão para sempre que, se por um lado a dor pode não ser mais do que uma recordação desagradável, ela foi sentida num contexto de medo e terror. A marca é um obstáculo ao esquecimento. (…) Avaliar a resistência pessoal, significar um pertencimento social: tais são as duas funções evidentes da iniciação como inscrição de marcas sobre o corpo.” (p. 197)
Um exemplo da utilidade da marca indelével imposta pela tortura, que indica o pertencimento social a um determinado grupo, foi presenciado por Clastres em 1963: quando os Guayaki queriam se certificar da “nacionalidade” de uma jovem paraguaia, arrancavam-lhe as roupas em busca das tatuagens tribais.
O silêncio resignado que se exige dos jovens durante o ritual, o admirável “estoicismo” de que fala Catlin, indica que
“o ritual de iniciação é uma pedagogia que vai do grupo ao indivíduo, da tribo aos jovens. Pedagogia da afirmação, e não diálogo: é por isso que os iniciados devem permanecer silenciosos quando torturados. Quem cala consente. Em que consentem os jovens? Consentem em aceitar-se no papel que passaram a ter: o de membros integrais da comunidade. (…) Eis, portanto, o segredo que, na iniciação do grupo, é revelado aos jovens: ‘Sois um dos nossos. Cada um de vós é semelhante a nós, cada um de vós é semelhante aos outros. Nenhum de vós é inferior, nem superior’. Em outros termos, a sociedade dita sua lei aos seus membros, inscreve o texto da lei sobre a superfície dos corpos. (…) A lei que aprendem a conhecer na dor é a lei da sociedade primitiva, que diz a cada um: Tu não és menos importante nem mais importante do que ninguém. A lei, inscrita sobre os corpos, afirma a recusa da sociedade primitiva em correr o risco da divisão, o risco de um poder separado dela mesma, de um poder que lhe escaparia. A lei primitiva, cruelmente ensinada, é uma proibição à desigualdade.” (CLASTRES: p. 198-99).
É por esta razão que Deleuze e Guatari, no Anti-Édipo, dirão que as sociedades primitivas, desprovidas de escrita, são sociedades da marcação. Clastres dirá que são, além disso, sociedades contra o Estado, preocupadas em manter a coesão tribal e não permitir a emergência do poder estatal, compreendido como aquele que, dentre outras ações, escreve uma lei “separada, distante, despótica”.
Como compreender, neste contexto, as desventuras de K. n’O Processo de Kafka, este pesadelo judiciário que se desenrola em meio a uma sociedade com Estado e onde a justiça parece se exercer a partir de uma engrenagem burocrática que o indivíduo não compreende por completo? Que diferenças e semelhanças há, na comparação entre os ritos iniciatórios arcaicos e o enredo kafkiano, no que diz respeito aos procedimentos jurídicos e mnemotécnicos e à instrumentalização da crueldade?
Tanto em A Colônia Penal quanto em O Processo, o “crime” cometido pelo condenado ou pelo processado permanece envolto em sombras e mistério – o que Kafka deseja mostrar ao leitor é o aparelho de tortura socialmente instituído. Assim como o leitor de O Processo em nenhum momento recebe explicação sobre o que teria feito de recriminável Josef K., sendo que o foco repousa por inteiro na descrição do mecanismo esmagador do processo, também o leitor de A Colônia Penal não tem elucidações sobre aquele que sofrerá a pena: Kafka narra a cena de modo que o procedimento jurídico esteja no primeiro plano, ao invés de emitir juízos sobre a culpa ou inocência daquele que está sendo submetido à punição. O oficial explica ao explorador como funciona o procedimento operacional padrão da máquina de torturas:
“Esta é a cama, totalmente coberta com uma camada de algodão; o senhor ainda vai saber qual é o objetivo dela. O condenado é posto de bruços sobre o algodão, naturalmente nu; aqui estão, para as mãos, aqui para os pés e aqui para o pescoço, as correias para segurá-lo firme. Aqui na cabeceira da cama, onde, como eu disse, o homem apóia a cabeça, existe este pequeno tampão de feltro, que pode ser regulado com a maior facilidade, a ponto de entrar bem na boca da pessoa. Seu objetivo é impedir que ela grite ou morda a língua. Evidentemente, o homem é obrigado a admitir o feltro na boca, pois caso contrário as correias do pescoço quebram sua nuca…” (p. 33)
Atado, imobilizado, silenciado, impossibilitado de manifestar qualquer sinal de desagrado ou fúria, o condenado recebe sobre as costas a sentença que o rastelo escreve arrancando seu sangue. Esta máquina de torturas impõe uma cicatriz perpétua, uma tatuagem não solicitada pelo sujeito que a recebe – e que as autoridades que a impõe desejam indelével. Seja o cacique de uma tribo indígena ou um comandante de um império, como Clastres e Kafka mostram, cada um a seu modo, a autoridade utiliza-se da imposição do sofrimento como um meio violento de “educação”.
Que tipo de educação é esta? A Colônia Penal é uma alegoria poderosa de uma educação que seria melhor chamada de violentação autoritária ou imposição da submissão: “No corpo deste condenado”, prossegue o oficial em sua explicação do mecanismo torturador, “será gravado: Honra o teu superior!” (p. 36) O “superior”, no caso, é aquele que tem em seu poder os meios de impor aos outros, sejam jovens em rituais de iniciação ou condenados sendo punidos, um sofrimento que lhes deve ensinar a submissão – ou melhor, no linguajar de quem impõe a pena, a “obediência ao superior”.
Reduzido a uma condição de impotência, tendo seu corpo submetido à incisões, perfurações e cortes – que não somente provocam dores intensas mas que também deixarão marcas permanentes, a vítima deste processo parece não ter voz. Mas não tem voz pois esta foi silenciada. Sua revolta não se manifesta pois a opressão ao redor não permite que ela desabroche. A submissão não é inata ou de berço, mas algo ensinado ao sujeito por mecanismos autoritários de educação e punição que usam o terror para inculcar obediência e outros comportamentos de retraída aquiescência ao poder.
III. O DESPOTISMO E A RESISTÊNCIA
A prisão de Josef K., narrada por Kafka em O Processo, é uma cena onde ocorre claro abuso pela porte do aparato policial, que invade o apartamento e cerceia os movimentos de K. Nenhum daqueles policiais e subordinados do sistema jurídico-penal sabe dizer a K. qual o crime que este cometeu – não foram autorizados a revelar nada – e no fundo confessam não saber de muita coisa. A ordem de prisão vem de cima e eles apenas a obedecem. Afinal de contas, ganham seu pão num trabalho que exige deles um perene comportamento subordinado, em que você honra o seu superior na hierarquia ao invés de se revoltar ou se levantar contra ele.
Para usar a expressão de Michael Löwy , Kafka, este “sonhador insubmisso”, soube criar em Josef K. alguém que tem muito desta insubmissão de seu criador correndo em suas veias de personagem kafkiano. Logo após ser preso, Josef K., com plena certeza de sua inocência, confronta os homens que o vieram acossar e exige respostas: qual a acusação que está sendo feita? Qual é a autoridade que vos manda? Quem foi que lá em cima na hierarquia ordenou que eu, K., fosse preso?
A autoridade suprema está invisível como aqueles chefões do Castelo que não se deixam encontrar em nenhuma parte pelo agrimensor K. durante as peripécias do romance inacabado O Castelo. Uma névoa de mistério circunda a autoridade que, através de seus subordinados, apossa-se do corpo e da mente de K. e impõe-lhe restrições de movimento, ameaças de despojamento, surras psíquicas e literais.
Não é por acaso que uma das últimas cenas d’ O Processo se passa em uma catedral e que nesta o padre, a princípio, exija de K. que se rebaixe e se prostre diante dele para ouvir a voz que chega das alturas.
“K. parou nos primeiros bancos, mas o padre estendeu as mãos e mostrou com o indicador um lugar mais próximo do púlpito. K. o seguiu até esse lugar, precisando inclinar a cabeça fortemente para trás a fim de ver o padre…” Walter Benjamin enfatiza que, para Kafka, o elemento gestual era muito importante – como, por exemplo, este eloquente dedo indicador que ordena ao acusado que se ponha no local exato que lhe foi ditado: “o gesto é o elemento decisivo, o centro da ação… Kafka é sempre assim: ele priva os gestos humanos dos seus esteios tradicionais e os transforma em temas de reflexões intermináveis.” (BENJAMIN: p. 147)
Autor com “capacidade invulgar de criar parábolas”, como diz Benjamin (p. 149), Kafka escreveu em O Processo uma das mais eloquentes de sua galeria: o padre, do alto do púlpito, fiel defensor dos códigos escritos inalteráveis e sagrados, relata a K. uma história de um camponês e de um porteiro diante de uma certa Porta da Lei. O homem do campo – simples e ingênuo… – está diante da porta da Lei e esta é guardada por um porteiro que não lhe dá permissão de entrar e lhe pede que espere. É o Esperando Godot de Kafka – e um dos pontos de sua obra que mais se assemelha ao teatro de Beckett.
O camponês, que não se sente capaz de insubmissão ou revolta, que não tenta entrar contra a permissão do porteiro, passa a vida ali, com acesso proibido, até definhar e morrer. A porta é-lhe enfim fechada definitivamente sem nunca ter sido transposta. Esta parábola, que lembra um pouco o Absurdo da atitude dos personagens de Esperando Godot, está longe de ser uma descrição da atitude do próprio Josef K. diante da Lei: ao contrário da passividade submissa do homem que apodrece na espera, sem que nunca lhe seja dada permissão para adentrar nos domínios guarnecidos pelos guardiães da lei, “Josef K. não pode impedir-se de acreditar que o homem foi enganado pelo guardião.” (Löwy: p.135)
Este acesso barrado seria um símbolo de autoritarismo, uma fortaleza que defende os privilégios daqueles que estão acima na hierarquia. Aquele que não ousa questionar a ordem (a ordem que lhe ordena que apodreça na espera!), aquele que se cala e aceita, aquele que se submete e fica de bunda sentada na sua desgraça imposta-de-cima, este é o emblema do sujeito alienado, alijado da justiça.
De modo que Löwy sustenta que “não se pode compreender esse escrito sem situá-lo no contexto mais amplo” das “convicções ético-sociais de Kafka”, em particular “o anti-autoritarismo de inspiração libertária, (…) uma recusa diante de todo poder que pretende representar a divindade e impor em seu nome dogmas, doutrinas, interdições.” (pg. 139)
O homem-do-campo da parábola, por excesso de timidez e tibieza, por falta de confiança em si, por uma obediência demasiado estrita e prolongada do status quo, acaba perdendo sua vida na espera, diante do umbral de uma porta que o guardião não permite que ele cruze. Incapaz de insubmissão e revolta, “o homem do campo malogrou porque não quis tomar o caminho rumo à Lei atravessando essa porta sem autorização”, segundo a interpretação do amigo de Kafka, Felix Weltsch, que Löwy reproduz (pg. 145).
O destino inglório deste personagem da parábola, que apodrece na espera, alijado de seus direitos em um mundo social onde os privilégios se protegem em suas fortalezas, está nas antípodas da atitude frequentemente irreverente e insubmissa de Josef K. – é só lembrar que este acusa de corrupção generalizada os funcionários do tribunal, critica a atitude dos guardas por surrupiarem o café-da-manhã e as roupas dos condenados e chega ao extremo de desdenhar dos livros mofados da Lei em sua primeira audiência.
Quase no fim de seu percurso, aliás, irá despedir seu advogado e desejará apresentar ele mesmo sua defesa através de um relato completo de toda a sua vida pregressa, achando que uma narração dos seus 30 anos de vida irrepreensível pudessem ser suficientes para inocentá-lo. A passividade submissa do homem da parábola, como diz Marthe Robert, é característica de quem “não ousa colocar sua lei pessoal acima dos tabus coletivos, cuja tirania o guardião personifica.” (MARTHE ROBERT, Seul Comme Kafka, Paris: Calmann-Lévy, 1979, p. 162). Ele se assemelha a quase todos os condenados que K. encontra no decurso do romance e que se submetem a seus processos e são tratados como cães pelos advogados.
“K. representa a antítese do homem do campo que espera em vão, por toda a vida, paciente e submisso, que alguém se digne a admiti-lo no interior das portas da Lei… Encontram-se no Castelo personagens que se parecem muitíssimo com o anti-herói da lenda: é o caso do indivíduo descrito por Olga, que tenta fazer-se admitir no serviço do Castelo: ‘Depois de muitos anos, talvez já envelhecido, ele ouve que foi recusado, que tudo está perdido e que viveu por nada.’” (LÖWY: p. 181)
Longe de fazer um elogio da resignação e do fatalismo, Kafka seria, na perspectiva de Löwy, alguém que faz apelo à insubmissão e que é animado por um ímpeto de insubordinação, sendo que sua obra representa uma reiterada crítica do autoritarismo e dos mecanismos burocráticos despersonalizantes e cruéis.
“Kafka jamais escondeu sua admiração pelos personagens que têm a coragem de seguir seu próprio caminho, ultrapassando as interdições convencionais”, lembra Löwy (p. 149), que pesquisou vastamente as leituras prediletas de Kafka, entre as quais se encontrava Memórias de uma socialista, de Lily Braun. Este livro, que Kafka gostava de presentear a seus amigos e que deu à sua noiva Felice em abril de 1915, traz uma mulher aguerrida contra os preconceitos de seu tempo e que, inspirada por Shelley e Nietzsche, condena “a submissão, a humilhação, o abandono ao destino” (LILY BRAUN, Memoiren einer Sozialistin (1909). Berlim: Verlag J. H. W. Dietz, 1985, p. 82-83.)
Também em O Castelo o agrimensor K. representa, ao chegar à aldeia na condição de estrangeiro, uma figura bem mais insubmissa do que a média dos habitantes: “em nenhum momento ele tem a atitude amedrontada e submissa dos aldeões… o que ele quer das autoridades do Castelo é a exigência universal de todos os excluídos e párias das sociedades modernas: ‘Não demando favores ao Castelo, mas o meu direito’” (Löwy: p. 177).
Rejeitando as interpretações teológicas de Max Brod, que enxerga no Castelo um signo da Graça divina inacessível, Löwy afirma que “nada no romance indica que a ‘maldade’ dos funcionários do Castelo tivesse algo a ver com uma instância divina’…” Segundo Löwy, o castelo é “a sede de um poder terrestre e humano” e representa “a autoridade, o Estado, diante do povo, representado pela aldeia. Um poder distante e arbitrário, que governa a aldeia por intermédio de um aparato de burocratas cujo comportamento é grosseiro, inexplicável e rigorosamente desprovido de sentido. O próprio edifício – sede do cume do aparelho administrativo – é inacessível e impenetrável… Kafka põe em questão os fundamentos despóticos do Estado moderno.” (pg. 162-163).
Se uma atmosfera sinistra e pessimista parece pairar como uma nuvem nublada sobre os escritos de Kafka, talvez isto se deva à percepção de que tanto a submissão quanto a revolta conduzem à catástrofe. Em O Castelo, por exemplo, há a figura de Amália, “personagem de exceção que se destaca fortemente da massa submissa dos aldeões” e que Löwy considera “sem dúvida uma das mais impressionantes figuras femininas da obra de Kafka” (p. 185-186). No capítulo 17, “ao receber do arrogante e grosseiro funcionário Sortini uma mensagem extremamente vulgar e mesmo revoltante – em suma, obscena – intimando-a a procura-lo na Hospedaria dos Senhores, ela não hesita em rasga-la, atirando os pedaços no rosto do mensageiro enviado pelo homem do Castelo… Isso basta para atrair sobre ela e toda a sua família a maldição daqueles do alto, condenando-os a uma exclusão definitiva e irrevogável.” (Löwy: p. 184).
Os conformistas e os submissos apodrecem na espera, alijados de seus direitos numa sociedade altamente hierarquizada. Os mais altos protegem seus privilégios encerrando-se em fortalezas inacessíveis aos reles mortais. Os raros que ousam se insurgir contra o sistema – como Amália em O Castelo ou o próprio Josef. K. em O Processo – acabam conhecendo outra face dos mecanismos jurídicos cruéis: a exclusão e o extermínio.
Se há em Kafka uma constante identificação com os oprimidos, com as vítimas do sistema, há também uma intensa “recusa da servidão voluntária”. Esta servidão voluntária indigna que tantas vezes acaba constituindo o ser-no-mundo daqueles que se resignam ao seus fardos, como os Camelos de que fala Zaratustra. É claramente discernível, em muitos pontos da obra de Kafka, um elogio da insubmissão, e que talvez não seja despropositado comparar ao elogio que faz Zaratustra do leão, símbolo da coragem de rugir contra os fardos e correntes que outros desejam nos fazer carregar como bestas-de-carga.
Em Kafka, porém, a vitória do leão não é garantida e a consequência da revolta é muitas vezes a exclusão – ser lançado à condição de pária ou outsider – ou mesmo a morte – como Josef K. descobre ao terminar seu percurso em O Processo. K. morre envergonhado até a medula dos ossos por viver num mundo onde a submissão canina é exigida de todos e onde os insubmissos serão sacrificados como se fossem cães.
Profético em relação àquilo que de mais sinistro ocorreria no século XX, Kafka é o poeta que pinta quadros tenebrosos de um mundo onde matam-se homens como cachorros e no qual tanto a revolta quanto o fatalismo parecem conducentes à tragédia. Algo que pode ser simbolizado pelo levante do Gueto de Varsóvia, em 1943, quando em pleno Holocausto os judeus tentaram um levante contra o III Reich, evento histórico tão bem descrito por Todorov em Em Face do Extremo e que representa um dos mais sinistros pesadelos que ocorreram de fato na História do último século.
IV. BOURDIEU: ESTIGMATIZAÇÃO E RECONHECIMENTO
O pensamento de Pierre Bourdieu pode nos auxiliar a compreender mais a fundo os temas que estivemos explorando neste artigo, em especial se partirmos desta afirmação simples mas prenhe de consequências: “aprendemos pelo corpo” (BOURDIEU: Meditações Pascalianas, p. 172). Avesso ao dualismo simplista entre corpo e alma, espírito e matéria, o pensamento sociológico de Bourdieu procura refletir sobre os habitus que se tornam profundamente ancorados nos corpos e que cujo processo de formação envolvem necessariamente condicionamentos sociais.
“As injunções sociais mais sérias se dirigem ao corpo e não ao intelecto… O essencial da aprendizagem da masculinidade e da feminilidade tende a increver a diferença entre os sexos nos corpos (sobretudo por meio do vestuário), sob a forma de maneiras de andar, de falar, de se comportar, de dirigir o olhar, de sentar-se etc. E os ritos de instituição constituem apenas o limite de todas as ações explícitas pelas quais os grupos trabalham para inculcar os limites sociais e as classificações sociais (por exemplo, a divisão masculino/feminino), a naturalizá-las sob a forma de divisões nos corpos, as hexis corporais, das quais se sabe serem tão duráveis como as inscrições indeléveis da tatuagem…” (BOURDIEU: Meditações Pascalianas, 172-173)
A sociedade tatua seus membros condicionando-os a adotarem habitus e disposições em um processo que, segundo Bourdieu, carrega sempre uma certa dose de violência simbólica. O que não exclui a violência concreta, literal, que Clastres analiza em sua investigação sobre os cruentos ritos de passagem de muitos dos povos que estuda, e que Kafka enforma em uma parábola literária memorável, A Colônia Penal. O processo “pedagógico”, entendido como conformação do indivíduo ao meio social, não se dá apenas através da transmissão intelectual de conhecimentos e valores; ensinar se dá também através do castigo corporal destinado a produzir uma memória, ou seja, uma mnemotécnica que através da imposição da dor ao sujeito procura, por exemplo, gerar nele a repulsa por um certo comportamento que a sociedade deseja ver proibido e proscrito.
“Tanto na ação pedagógica cotidiana (“fica direito”, “segure a faca com a mão direita”) como nos ritos de instituição, essa ação psicossomática se exerce muitas vezes por meio da emoção e do sofrimento, psicológico ou até físico, mormente aquele que se inflige pela inscrição de signos distintivos, mutilações, escarificações ou tatuagens, na própria superfície dos corpos. O trecho de A Colônia Penal em que Kafka relata como se inscreve no corpo do transgressor todas as letras da lei por ele transgredida ‘radicaliza e literaliza com uma grotesca brutalidade’, como sugere E. L. Santner, a cruel mnemotécnica a que os grupos com frequência recorrem para naturalizar o arbitrário e, outra intuição kafkiana (ou pascaliana), lhe conferir assim a necessidade absurda e insondável que se dissimula, sem nada além, por detrás das mais sagradas instituições.” (BOURDIEU: p. 173)
Contra a noção de valores inatos, Bourdieu assume uma reflexão muito mais próxima ao empirismo, considerando como aprendidos, inculcados, introjetados, os sacrossantos valores e ideais que certas instituições sociais desejam fazer crer que são eternos e absolutos. Agindo de modo similar ao procedimento nietzschiano na Genealogia da Moral, Bourdieu procurará compreender como vêm-a-ser os habitus a partir de uma meditação sobre instituições sociais que, através do condicionamentos dos agentes, criam certas disposições através do manejo de castigos e recompensas, ameaças e elogios – a começar pela infância, “moldada” pela Família, pelo Estado, pela Igreja, pela Mídia.
“O trabalho de socialização das pulsões apóia-se numa transação permanente na qual a criança admite renúncias e sacrifícios em troca de provas de reconhecimento, de consideração ou de admiração (‘como é ajuizado!’), por vezes explicitamente solicitados (‘Papai, olha para mim!’). Essa troca é altamente carregada de afetividade, na medida em que mobiliza por inteiro a pessoa de ambos os parceiros, sobretudo a criança, é claro, mas também os pais. A criança incorpora o social sob a forma de afetos, mas socialmente coloridos, qualificados…” (BOURDIEU: 202)
Não se trata, para Bourdieu, de condenar de modo simplista quaisquer habitus que foram inscritos nos corpos por meio da violência (psicológica ou física) através de uma “pregação” de caráter humanista e sentimental de uma pedagogia suave e desprovida de crueldade. O sociólogo está mais ocupado em descrever o que é (a sociedade de fato) do que em predicar a utopia do que deveria ser – para Bourdieu, interessa mais compreender o processo através do qual os habitus se formam e se transformam, além da variedade destes habitus em relação a diferentes contextos sociais. “O habitus, produto de uma aquisição histórica, é o que permite a apropriação do legado histórico. Assim como a letra deixa de ser letra morta pelo ato de leitura que supõe uma aptidão adquirida para ler e decifrar, a história objetiva (nos instrumentos, monumentos, obras, técnicas etc.) somente consegue converter-se em história atuada e atuante quando é assumida por agentes que, por conta de seus investimentos anteriores, se mostram inclinados a se interessar por ela e dotados das aptidões necessárias para reativá-la.” (pg. 184)
A subversão, a iconoclastia, a contestação, têm o potencial para reabrir o espaço dos possíveis, argumenta Bourdieu:
“…os discursos e ações subversivos, a exemplo das provocações e de todas as formas de ruptura iconoclasta, têm por função e, em todo caso, como efeito, atestar na prática ser possível transgredir os limites impostos – em particular os mais inflexíveis, aqueles inscritos nos cérebros. A transgressão simbólica de uma fronteira social tem por si só um efeito libertador porque ela faz advir praticamente o impensável. Mas ela própria somente se torna possível, e simbolicamente eficiente, em lugar de ser simplesmente rejeitada como um escândalo que, como se diz, recai sobre seu autor, quando são preenchidas certas condições objetivas. Para que um discurso ou uma ação (iconoclastia, terrorismo etc.) com pretensão a questionar as estruturas objetivas tenha alguma chance de ser reconhecido como legítimo (senão como razoável) e de exercer um efeito de exemplaridade, é preciso que as estruturas assim contestadas estejam elas mesmas num estado de incerteza e crise de molde a favorecer a incerteza a seu respeito e a tomada de consciência crítica de seu arbítrio e de sua fragilidade.” (BOURDIEU: Meditações Pascalianas, p. 289)
A leitura de Pierre Bourdieu de O Processo enfatiza que “o mundo social evocado por esse romance seria tão-somente o limite de inúmeros estados ordinários do mundo social ordinário ou de situações particulares no interior desse mundo, como aquela de certos grupos estigmatizados – os Judeus do lugar e da época de Kafka, os Negros dos guetos americanos ou os imigrantes mais destituídos em diversos países – ou de certos nichos sociais, entregues ao arbítrio absoluto de um chefe, grande ou pequeno, encontradiços, com muito maior frequência do que se poderia acreditar, no coração de empresas privadas ou mesmo públicas.” (p. 280)
Enfatiza-se aqui o estigma, que Kafka decerto conheceu na pele ao viver em um gueto judeu de Praga e que retrata em sua obra com conhecimento de causa, com experiência visceralmente adquirida em suas vivências. Os personagens kafkianos estão com frequência colocados numa posição de oprimidos, e isto às vezes é descrito pela pena de Kafka com imagens de impacto, como a do macaco de Relatório a uma Academia, preso em uma jaula minúscula, que não permite que ele fique de pé nem que se deite a contento. Esta situação de extremo incômodo físico, que vincula-se necessariamente também a uma posição psicológica beirando a insuportabilidade, serve como motivo para a ação no mundo kafkiano. Josef K., ao ver-se enredado pelo processo, age como uma mosca que tenta se desenredar da teia da tarântula.
O “jogo” sinistro que Josef K. começa a jogar assim que acorda, naquela manhã que inicia o romance, em que descobre que está sendo movido contra ele um processo, é descrito por Bourdieu como algo que acarreta uma experiência do tempo marcada pela extrema imprevisibilidade. “Esse jogo se caracteriza por um grau muito elevado de imprevisibilidade: não se pode confiar em nada. (…) Pode-se esperar tudo; o pior nunca está fora de cogitação. Não é por acaso que a instituição ordinariamente incumbida de limitar o arbítrio, o tribunal, também seja, neste caso, o lugar por excelência do arbítrio, que se afirma como tal, sem sequer se dar ao trabalho de dissimular. Por exemplo, o tribunal censura pelo atraso quando ele mesmo está sempre atrasado, fazendo pouco do princípio segundo o qual a regra também se aplica àquele que a edita…” (p. 281)
A existência de Josef K. parece despencar no maelstrom de um sistema de poder um tanto caótico, desorganizado, burocrático mas ineficaz, pesadelo tragi-cômico ironizado por Terry Gilliam em sua distopia cinematográfica Brazil. No caso de K., o desenlace é mais trágico do que cômico – e Kafka, que tinha predileção por metáforas animais, compara a sua morte à de um cão. Neste mundo social de “desordem instituída”, como escreve Bourdieu, “cada um encontra-se aí enredado sem defesa (como K. ou como os subproletários) nas formas mais brutais de manipulação dos temores e das expectativas.” (p. 282)
Com a experiência sociológica e antropológica que adquiriu nos anos em que viveu na Argélia dos anos 1960, Pierre Bourdieu estabelece um paralelo entre o Josef K. kafkiano e aqueles que chama de “subproletários”. “Existe uma categoria no mundo social, a dos subproletários”, escreve Bourdieu nas Meditações Pascalianas, que tem a “experiência mais ou menos durável da mais total impotência: tal como foi observado pelos psicólogos, o aniquilamento das oportunidades associado às situações de crise acarreta o aniquilamento das defesas psicológicas e, nesse caso, envolve uma espécie de desorganização generalizada e durável da conduta e do pensamento por força do desmoronamento de qualquer perspectiva coerente de futuro. (…) Após ouvir os subproletários, desempregados argelinos dos anos 1960 ou adolescentes sem futuro dos grandes conjuntos urbanos dos anos 1990, pode-se descobrir a mesma impotência, aniquiladora de potencialidades…” (p. 271)
O desemprego e a impotência, que Bourdieu enxerga como presentes na condição subproletária, acarreta uma experiência do mundo e do tempo que é sentida pelo sujeito como sem-sentido. “Com seu trabalho, os desempregados perderam os milhares de coisas nas quais se realiza e se manifesta concretamente uma função socialmente conhecida e reconhecida, ou seja, exigências e urgências – encontros ‘importantes’, trabalhos para enviar, cheques a remeter, orçamentos a preparar -, e todo o futuro já contido no presente imediato, sob forma de prazos, datas e horários a respeitar – horário do ônibus, cadências a cumprir, trabalhos para concluir… Privados desse universo objetivo de incitações e indicações que orientam e estimulam a ação e, por conseguinte, toda a vida social, eles só conseguem viver o tempo livre que lhes é deixado como tempo morto, tempo para nada, esvaziado de qualquer sentido.” (271)
“Excluídos do jogo, esses homens destituídos da ilusão vital de ter uma função ou uma missão, de ter que ser ou fazer alguma coisa, podem, para escapar ao não-tempo de uma vida onde não acontece nada e da qual não se pode esperar nada, e para se sentir existir, recorrer a atividades as quais, como as apostas no jóquei, a loteria esportiva, o jogo do bicho, e os demais jogos de azar em todos os bairros miseráveis e favelas do mundo, permitem desguiar do tempo anulado de uma vida sem justificativa… Para tentar se livrar do sentimento, tão bem expresso pelos subproletários argelinos, de ser o joguete de constrições externas (“sou como uma casca boiando n’água”), e tentar romper com a submissão fatalista às forças do mundo, também podem, sobretudo os mais jovens, buscar em atos de violência que valem em si mesmos até mais – ou tanto quanto – do que os ganhos que proporcionam, ou em jogos de morte com a moto ou o carro, um meio desesperado de existir diante do outros, para os outros, de ter acesso a uma forma reconhecida de existência social, ou simplesmente, de fazer com que aconteça algo em lugar de nada.” (272)
Tanto que, evocando O Jogador de Dostoiévski, Bourdieu destaca que um dos maiores atrativos e charmes da roleta – e outros jogos-de-azar onde aposta-se dinheiro – é a possibilidade de uma ascensão social súbita, “milagrosa”, que dispensa o trabalho, pegando um atalho direto para a riqueza e a acumulação. Bourdieu decerto não está sendo simplista a ponto de afirmar que o tedium vitae e o nonsense são as únicas possibilidades existenciais para aqueles – como os subproletários – que não estão inseridos no mercado de trabalho. O modo-de-vida dos subproletários “se contrapõe igualmente à skholè, tempo empregado livremente com finalidades livremente escolhidas e gratuitas que, como nos casos do intelectual e do artista, podem ser aquelas de um trabalho, mas libertado, em seu ritmo, seu momento e sua duração, de qualquer constrição externa e, em particular, daquela que se impõe por intermédio da sanção monetária direta. Quando da invenção da vida de artista como vida boêmia, dando continuidade à vida de pintor ou de estudante, elabora-se essa temporalidade de contornos fluidos, ignorando os horários e a urgência (a não ser aquela que cada um impõe a si mesmo), relação com o tempo encarnada na disposição poética como pura disponibilidade diante do mundo, fundada, na verdade, na distância em relação ao mundo e a todas as preocupações medíocres da existência comum das pessoas comuns…” (274)
A “identificação instintiva com os oprimidos” que, na opinião do biógrafo de Kafka, Ernst Pawel, é uma das marca do modo-de-estar-no-mundo do autor de A Metamorfose, não deve ser compreendida como uma efetiva pertença de classe. Franz Kafka não pertencia de fato a esta classe denominada por Bourdieu “subproletariado” – Doutor em Direito, com um emprego estável no Instituto, e além do mais artista cujo tempo vital incluía não somente o domínio do labor mas também o da skholè, Kafka, no entanto, criou uma obra marcada pela reflexão sobre estratos sociais estigmatizados, perseguidos, oprimidos. Sua posição como judeu vivendo em um gueto de Praga em tempos de anti-semitismo, além de sua posição como filho que sentia-se diminuído e oprimido por um pai bruto e autoritário, condicionaram sua sensibilidade de modo a capacitá-lo a descrever, em sua obra, o labirinto vital daqueles que não encontram reconhecimento social.
“Convém retornar a Josef K. A incerteza em que ele se encontra a respeito do futuro não passa de uma outra forma de incerteza a propósito do que ele é, de seu ser social, de sua ‘identidade’, como se diria hoje; destituído do poder de dar sentido, no duplo sentido, à sua vida, de nomear a significação e a direção de sua existência, ele está condenado a viver num tempo orientado pelos outros, alienado. Eis, exatamente, em que consiste o destino de todos os dominados, obrigados a esperar tudo dos outros, detentores do poder sobre o jogo e sobre a esperança objetiva e subjetiva de ganhos que pode proporcionar, logo mestres em jogar com a angústia que nasce inevitavelmente da tensão entre a intensidade da espera e a improbabilidade da satisfação.” (BOURDIEU: p. 290)
Em outras palavras: K., engolfado pelo Processo, não pode mais dispor de seu próprio tempo, que é dominado pelo tribunal, pelas audiências a que tem que comparecer, pelas informações sobre seu caso que precisa conquistar, pela defesa que é mister empreender. Esta experiência de tempo kafkiana, em que o futuro é incerto e a possibilidade do pior está sempre aberta, é compreendida por Bourdieu como decorrente de uma certa posição social onde a justificação de uma existência particular perde sua sustentação. A existência singular de Josef K. “se mostra questionada em seu ser social mediante a calúnia inicial, espécie de pecado original sem origem, como o estigma racista” (BOURDIEU: p. 290).
Novamente, como é comum quando exploramos a obra kafkiana, retornamos à questão do estigma, uma espécie de tatuagem negativa imposta por certos grupos sociais, muitas vezes movidos por racismo, xenofobia, anti-semitismo etc., e imposto a certos grupos sociais que são estigmatizados, marginalizados, limitados em sua liberdade, ou mesmo exterminados de modo brutal. O III Reich, quando impõe que os judeus portem a estrela de Davi no peito, de certo modo estigmatiza de modo semelhante ao que faz um fazendeiro que marca seu gado com ferro fervente.
A obra de Kafka contêm prenúncios dos horrores que ocorreriam na Europa dos anos 1930 e 1940, e cujas raízes já se encontravam no espaço social em que Kafka viveu – cabe lembrar que todas as suas irmãs morreram em campos de concentração e que o próprio Kafka, se não tivesse morrido tão cedo (aos 40 anos de idade, vítima da tuberculose), muito provavelmente também teria sido perseguido pelos nazistas. Talvez se possa, portanto, compreender em uma perspectiva mais ampla o problema da calúnia que Josef K. sente que lhe foi cometida: mais do que mera maledicência dirigida contra uma pessoa em particular, esta calúnia talvez seja o índice de uma prática social mais disseminada e consiste em estigmatizar todo um grupo social que se deseja, assim, marginalizar ou até aniquilar.
O pensamento de Bourdieu reconhece nos indivíduos um anseio por justificação, uma vontade de “sentir-se justificado por existir tal como existe”, e é justamente isto que é negado a K. pelo estigma calunioso que lhe é imposto. O “universo afetivo” de K. pode ser compreendido como uma representação da posição existencial do oprimido, do dominado, do estigmatizado, que sente que os poderes dominantes da sociedade se voltam contra ele, como naqueles pesadelos onde as paredes da cela vão estreitando até esmagar o sujeito. Conforme acompanhamos a narrativa d’ O Processo, sentimos que, para Josef K., the walls are always closing in.
“Ninguém pode proclamar verdadeiramente, nem diante dos outros, e muito menos diante de si mesmo, que ‘dispensa qualquer justificação’. Ora, se Deus está morto, a quem pedir tal justificação? Resta apenas o julgamento dos outros, princípio decisivo de incerteza e insegurança, mas também, e sem que haja contradição, de certeza, segurança, consagração. Ninguém – salvo Proust, embora num registro menos trágico – soube evocar como Kafka o confronto de pontos de vista inconciliáveis, de juízos particulares com pretensões à universalidade, o enfrentamento permanente entre a suspeita e o desmentido, a maledicência e o louvor, a calúnia e a reabilitação, terrível jogo de sociedade em que se elabora o veredicto do mundo social, esse produto inexorável do juízo inominável dos outros. (…) Josef K., inocente caluniado, obstina-se em buscar o ponto de vista dos pontos de vista, o tribunal supremo, a última instância. (…) E a questão do veredicto, juízo solenemente proferido por uma autoridade capaz de dizer de cada um o que se é na verdade, retorna ao fim do romance, por meio das interrogações finais de Josef. K.: ‘Onde estava o juiz que ele jamais vira? Onde era o tribunal supremo ao qual ele nunca tivera acesso?’” (BOURDIEU: 291)
Em O Processo, Deus, se existe, cala-se e esconde-se. Nenhum veredito cai do céu. O veredito é produto inteiramente social, e Josef K. sabe que seu destino depende deste veredito nascido de uma caótica, burocratizada e persecutória maquinaria social. Bourdieu, inspirado nas meditações de Pascal, julga, sobre a finitude da existência humana: “ainda que seja a única coisa certa na vida, fazemos tudo para esquecê-la, atirando-nos ao divertimento ou buscando refúgio na sociedade”. E é justamente “o mundo social que oferece aos humanos aquilo de que eles são inteiramente destituídos: uma justificativa para existir.” (pg. 292) Em outros termos: a finita existência humana só adquire justificação e sentido a partir de um reconhecimento social que delegue ao sujeito a crença em seu próprio valor como alguém que serve para algo, como alguém que desempenha alguma função social reconhecida e aplaudida pelos outros. Os subproletários, os judeus perseguidos, os negros do guetos americanos, assim como os personagens kafkianos, são todos exemplos, para Bourdieu, de existências que vivem na falta deste reconhecimento social indispensável para que o sujeito sinta que sua vida tem sentido.
“Pode-se estabelecer um vínculo necessário entre três fatos antropológicos indiscutíveis e indissociáveis: o homem é e sabe que é mortal, a idéia de que vai morrer lhe é insuportável ou impossível e, condenado à morte, fim (no sentido de termo) que não pode ser tomado como fim (no sentido de meta), o homem é um ser sem razão de ser, tomado pela necessidade de justificação, de legitimação, de reconhecimento. Ora, como sugere Pascal, nessa busca de justificativas para existir, o que ele chama ‘o mundo’, ou ‘a sociedade’, é a única instância capaz de fazer concorrência ao recurso a Deus.” (BOURDIEU, 293)
Uma das originalidades do pensamento sociológico de Bourdieu é destacar que as desigualdades sociais, em termos de distribuição de capital e propriedade, acarretam também uma desigualdade nas justificações para existir:
“Dentre todas as distribuições, uma das mais desiguais e, em todo caso, a mais cruel, é decerto a repartição do capital simbólico, ou seja, da importância social e das razões de viver. Sabe-se, por exemplo, que até mesmo os cuidados e tratos prestados pelas instituições e agentes hospitalares aos moribundos são proporcionais à sua importância social, ainda que de maneira mais inconsciente do que consciente. Na hierarquia das dignidades e indignidades, que nunca se superpõe inteiramente à hierarquia das riquezas e dos poderes, o nobre, em sua variante tradicional, ou em sua forma moderna – o que denomino nobreza de Estado -, contrapõe-se ao pária estigmatizado o qual, a exemplo do Judeu da época de Kafka, ou, hoje, o Negro dos guetos, o Árabe ou o Turco dos subúrbios operários das cidades européis, carrega a maldição de um capital simbólico negativo. (…) Não existe pior esbulho, pior privação, talvez, do que a dos derrotados na luta simbólica pelo reconhecimento, pelo acesso a um ser social socialmente reconhecido, ou seja, numa palavra, à humanidade.” (BOURDIEU, p. 295)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: A Propósito do décimo aniversário de sua morte.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas.
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência & A sociedade contra o Estado.
CRUMB, Robert. Kafka.
KAFKA. O Processo & A Colônia Penal.
LÖWY, Michael. Kafka: Sonhador Insubmisso.
PAWEL, Ersnt. O Pesadelo da Razão.
TODOROV, Tzvetan. Em Face do Extremo.
Publicado em: 03/06/14
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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Comentou em 05/01/15