por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Dante virou meme e viralizou na web: “no inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise” é satiricamente traduzida – atenção, estudiosos da memética! – como “a parte mais fudida do inferno tá lotada de isentões”.
A frase atribuída ao autor d’A Divina Comédia carrega toda uma carga de superstição medieval: a noção obscurantista de um campo-de-torturas, criado por um Papai-do-Céu furibundo, onde assarão, após a morte, os pecadores que violaram a santa lei cristã. Apesar do obscurantismo terrorista da ideia, ao menos ela tem esta peçonha provocativa salutar: provoca-nos a pensar sobre a neutralidade como vício e não como virtude. Numa época crítica seria digno de punição infernal aquele ser humano que escolhesse o caminho da pretensa neutralidade.
Um abismo de distância temporal e cultural os separa, mas também Desmond Tutu e Paulo Freire expressam pensamentos semelhantes. O primeiro é frequentemente citado por sua afirmação de que ficar neutro em situações de injustiça significa escolher o lado do injusto opressor.
O educador pernambucano também frisou a impossibilidade dos educadores (mas não apenas dele, mas de todos os cidadãos!) de serem autênticos agentes transformadores de sua realidade sem que assumam um compromisso, ou seja, que se engajem em uma causa (ou um conjunto ou galáxia de causas). “O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade, de cujas águas os homens verdadeiramente comprometidos ficam molhados, ensopados”, escreveu em Educação e Mudança (saiba mais).
A afirmação de que não existe imparcialidade está conectada, no pensamento do criador da Pedagogia do Oprimido, a uma radical revolução na questão principal que deve orientar nosso inevitável compromisso. Não se trata de perguntar se você é neutro/imparcial ou não, mas sim: tua base ideológica é inclusiva ou excludente? Como é evidente, a ideologia dos caras pálidas, dos ricaços sabujos do imperialismo, dos rentistas e latifundiários, dos mantenedores do Patriarcado e da Tirania da Classe Capitalista, é brutalmente excludente.
Em outros termos, diante de uma luta política, a Pedagogia do Oprimido coloca como questão crucial: considerando que uma base ideológica sempre há, o que é preciso questionar é se você se filia às forças que buscam a inclusão, em prol da diversidade e da polifonia, ou se está fechado com as forças da exclusão das massas do palco da História, para que neste reine uma minoria opressora, aniquiladora da multiplicidade humana. Eis aí a “escolha difícil”?…
Quem teria argumentos a levantar contra a tese de que o lulopetismo é uma ideologia, com práticas a ela conexas, que tem por horizonte a inclusão, o enfrentamento da injustiça social e das opressões multiformes que afligem a “classe trabalhadora”, muito mais e de maneira muito mais abrangente do que esta outra ideologia claramente excludente que é o bolsonarismo, que visa excluir violentamente através de doses gigantescas de racismo, misoginia, homofobia e elitismo?
De que “escolha difícil”, ora pois, alguns poderes do status quo querem nos convencer que estamos enfrentando? Como ousam – imaginem aqui uma postura similar à de Greta Thunberg no discurso how dare you? – tentar nos seduzir para a fraude, a farsa, o absurdo da “escolha difícil”? Como ousam propor a lorota de que estamos diante de uma luta entre dois extremismos que precisam ambos ser rechaçados? Como ousam, diante da ascensão de um fascismo truculento, ao qual se opõe o estadista democrata exemplar que a trajetória de Lula demonstra, ainda propor uma esquálida, raquítica e eleitoralmente falida “Terceira Via”?
Como ousam propor que estamos diante de dois extremismos, quando se trata de um antagonismo entre o neofascismo militarista do bolsonarismo (com as mãos todas sujas de sangue) e a defesa de uma democracia inclusiva e abrangente proposta pelo lulopetismo? É difícil mesmo escolher entre a necropolítica produtora de uma pilha imensa de cadáveres (cemitérios cheios, geladeiras vazias), como aqueles produzidos pelo bolsonarismo durante a crise pandêmica, e a biofilia cuidadora-das-vidas-em-sua-multiplicidade que o projeto lulista encarna?
Neste segundo semestre de 2022, não param de proliferar preocupações, nos meios onde a ideia de democracia ainda é valorizada, onde est ainda anima corações e mentes, onde ainda insufla ânimo às práticas cotidianas, com o fato de que a democracia real está no Brasil cada vez mais estuprada, em estado de escombros, respirando por aparelhos em uma UTI sucateada.
Em meio à pior pandemia viral do século corrente, um desgoverno negacionista produz a morte e o adoecimento em massa de seu povo. Sua criminalidade permanece impune. O líder do genocídio, por uma obscena conjunção de fatores, compra sua impunidade ao invés de ser tornado inelegível como seus inúmeros crimes de responsabilidade o fazem merecer. O povo brasileiro é oferecido em holocausto ao deus-mercado, entidade fictícia que louvam de joelhos os donos da boiada, os pastores dos rebanhos e os neofascistas do populismo zapistânico.
Pelo menos 400.000 óbitos evitáveis decorrem da delinquência bolsonarista na pandemia em que o obscurantismo conduziu os rebanhos ao matadouro com propagandas de cloroquina, ataque às máscaras e medidas de distanciamento, propinodutos no negócio das vacinas (que também chegaram atrasadas). E agora nos falam em “escolha difícil”, quando Bolsonaro está todo manchado com o sangue que derramou, com as vidas que ceifou?
Eles se dizem cidadãos-de-bem que nunca vão deixar nossa bandeira ser vermelha, nem o Brasil virar Cuba. Mas cada vez mais seguram numa das mãos a Bíblia esfacelada pelas más interpretações cristofascistas, passada pelo prisma doido da Teologia da Prosperidade, e na noutra mão trazem uma escopeta. Louvam um JesUstra e em ambas mãos trazem os dedos, as palmas, as unhas, tudo encharcado de sangue humano injustamente derramado. Por eles.
Pela irresponsabilidade criminosa ou pela delinquência quase-secreta dos orçamentos propinários, a bandidagem bolsonarista é cada vez mais ostensiva e proliferam fenômenos revoltantes como o Bolsolão do SUS (desvio de verbas da saúde em prol da “compra” do Centrão a fim de evitar impeachment) enquanto morremos em massa no Brasil desgovernado. E o país, submetido a ser “alvo” de um despejo sem fim de esgotos saídos da cloaca bostossáurita, não sabe ainda como parar a máquina mortífera do bolsonarismo, nem como responsabilizar e pôr freios no líder genocida da seita.
Em contexto tão catastrófico, escolher Lula constitui-se numa “escolha difícil”? Ou simplesmente na mais evidente, clara e translúcida escolha mais sábia diante de tudo o que a História pregressa nos ensina?
No entanto, uma severa crise de engajamento parece manter boa parte de nossa juventude em estado zumbificado. Ou seja, a faixa etária que tem perenemente a missão histórica de ser uma força concreta de renovação e transformação encontra-se em vasta medida prostrada diante das telas. São os zumbis do TikTok, os viciados em YouTube, os que nunca foram a um protesto político mas passam 5 horas por dia diante de games. Nestes, a fantasia do herói individual, solitário em sua odisséia meritória, é elevada até a elefantíase. Para Wallace-Wells, muitas das alucinações escapistas produzidas pelos videogames se devem ao fato de que “prometem ao menos um simulacro de participação ativa” e “isso pode ser cada vez mais gratificante no futuro, presumindo que continuemos a caminhar, como zumbis, por essa estrada para a ruína.” (A Terra Inabitável, pg. 180)
Nada indica que a crise de engajamento sócio-político seja menos grave em faixas etárias mais idosas, onde parece ter se entranhado o mais engessado conformismo, conservadorismo e apatia. Muitos dos mais velhos querem propor-se como arautos da neutralidade, da ponderação, da justa medida, com a lorotinha de que não se pode optar entre dois “extremos” igualmente horríveis. Quando na verdade estamos diante do extremismo bolsonarista em contraste com a nova versão do “lulismo paz-e-amor”, aliancista e conciliador, e que de extremista não tem nada.
Há um extremismo de direita que contrasta com a moderação conciliatória de um lulopetismo que, ao aliançar-se com Alckmin, tenta mostrar sua disposição para uma frente ampla em prol da concórdia e da construção mínima de consensos. Há um extremismo da República das Milícias chefiada por Jair, com sua truculência exterminatória e seus discursos de ódio e de apologia ao crime, que constrói o petismo como alvo a ser alvejado pelas bombas de bosta, pelas balas do silenciamento, pelos coices da intolerância, pelos gritos de “calem-se!”.
Quem escolhe a neutralidade em tal situação está escolhendo a cumplicidade com o opressor, com o intolerante, com o calador: quem cala consente. Quem sucumbe ao medo dá a vitória aos que, pela tirania, pelo terror, querem reinar sobre cidadãos aterrorizados.
O mais preocupante: se mais um golpe vier, e se a ditadura tentar impor-se agora com a força dos tanques, dos soldados e milícias armados até os dentes, quantos de nós se engajará de fato em resistência? Quantos sairemos do conforto de nossos sofás, onde consumismos escapismo na Netflix e no Zapistão, para colocar nossos corpos na mira das armas do opressor? Quem irá além do ativismo de sofá? Quem se engajará para impedir o militarismo autoritário estuprador-de-democracia de triunfar sobre o cadáveres de mais alguns massacrados no que já é uma banalizada massacração cotidiana?
O que estamos vivenciando nos últimos 10 anos (de 2013 a 2022, aproximadamente) talvez possa ser elucidado a partir dos frutos ou efeitos daquela crise monumental de meados de 2013. Houve uma “captura” ou cooptação das Jornadas de Junho de 2013 pela “pauta” midiática imposta pelo P.I.G. (o Partido da Imprensa Golpista). Houve uma neutralização daquela potência insurrecional nascida dos protestos vinculados aos transportes públicos e à mobilidade urbana, que ameaçava tornar-se ingovernável. Esta cooptação neutralizadora foi realizada por um establishment que viu ali uma oportunidade para o recrudescimento de uma proposta de “lei e ordem” ditatorial.
Se Junho de 2013 representou historicamente um ponto de virada para a ascensão da direita foi sobretudo pela torção-de-sentido que se impôs às pautas dominantes nas ruas no começo daquele mês. A mídia corporativa dispôs-se a inventar a corrupção como centro daqueles protestos e proceder à vilanização do Partido dos Trabalhadores, como se este fosse o principal agente disseminador da corrupção. Somado a isto houve a construção fictícia da presidenta Dilma como o alvo daqueles multitudinários protestos, o que ocasionou uma queda de popularidade abissal que não está desvinculada desta ação midiática anti-Dilmista, desleal e injusta, servindo como ensaio geral para o golpe que viria em 2016.
Após sua re-eleição apertada para cima do mal perdedor Aécio Neves (quão pior perdedor será Jair Bolsonaro, eis a pergunta que não quer calar!), veio o impeachment sem crime de responsabilidade desferido contra Dilma sob o pretexto espúrio das pedaladas fiscais. Seguido, ao fim do desgoverno do traíra Temer, pela prisão ilegítima, em ano eleitoral, de Luiz Inácio Lula da Silva, assim impedido de disputar a presidência em 2018. Culminando com a invasão bolsonarista do Estado, hoje ocupado por partícipes e beneficiários do Golpe, e que produzem, feito uma nuvem apocalíptica de gafanhotos invadindo uma plantação para devorá-la, um estado gravíssimo de erosão não apenas da democracia, mas do território que se chama Brasil no que há nele de riqueza não-monetária, riqueza de fauna e flora, riqueza de sociobiodiversidade.
Há uma escalada brutal da violência política – Marielle, Moa, Bruno Pereira, Arruda etc. – perpetrada pela extrema-direita bolsonarista fazendo soar os alarmes: golpe à vista! Em tal cenário, na eleição de 2022, certos setores da sociedade insistem na papagaiada enjoativa de que estaríamos, diante da alternativa Bolsonaro vs Lula, diante de uma “escolha difícil”? Vocês estão falando sério, Srs. editores de Estadões e Globostas?
Sobretudo a mídia tradicional hegemônica – oligopolizada até o escândalo, como bem exposto por entidades como Repórteres Sem Fronteiras no bombástico relatório Brasil: País Dos 30 Berlusconis – tenta nos vender esta noção estapafúrdia. No documentário Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha, exibido e debatido no ponto de cultura A Casa de Vidro em 23/7, estes vínculos entre a ascensão da direita bolsofascista e a mídia oligopolizada no país é posta a nu.
Segundo esta mídia delirante, que propaga a falsa noção de dois extremismos, estaríamos diante de uma alternativa similar àquela que no período ditatorial era representada pela teoria dos “dois demônios”. A teoria dos dois demônios era instrumento ideológico que ditadura militar empregava para justificar suas atrocidades: a noção de que a repressão política, as prisões de militantes, as torturas, o terrorismo de estado nos porões do Dops, os “desaparecimentos” (ocultação de cadáveres), estariam justificados como atos demoníacos das forças armadas que seriam meios necessários para o fim de combater o outro demônio, os “vermelhos” que estavam tentando transformar o Brasil numa nova Cuba. Uma concepção que a historiografia contemporânea já contestou com vigor através das obras de Henri Acselrad, Edson Teles, Safatle, Carol Bauer, dentre outros.
LEIA O ARTIGO MAIS RECENTE DE EDSON TELES: https://www.facebook.com/photo/?fbid=422090199941939&set=a.347691984048428
Parece que agora tenta-se requentar a marmita podre da teoria dos dois demônios. Porém, nesta equação falsificadora, está envolvida uma atitude ridícula, execrável e mentirosa que é a demonização do petismo. Ninguém está aqui propondo que o petismo esteja acima de críticas, que não deva ser submetida a estas quando são críticas construtivas e justas, mas certamente não é o caso da construção paranóide e sádica do PT como demônio por nossas direitas assanhadamente golpistas.
A construção fictícia, alucinatória, injusta, desleal, historicamente falsificante, do PT como um demônio, como um inimigo a ser abatido, como a síntese de todos os capetas corruptos, foi um ovo parido pela serpente fascista com auxílio do lavajatismo e do milicianato bolsonarista. Nosso oligopólio midiático foi disso não apenas a caixa de ressonância, mas cúmplice ativo na captura da consciência das massas. A síntese mais obscena disso é o discurso de Jair Bolsonaro fazendo a apologia do homicídio político ao dizer, no palanque lá no Acre, que era para “fuzilar a petralhada” e prometendo deportações de petistas para a Venezuela.
Escolha difícil?!? Estamos diante do extremismo fascista que aponta suas armas para uma esquerda moderadíssima, que quer jogar dentro dos limites do progressismo dentro da ordem, e que hoje é alvo da troglodita bazuca bostossáurica. O ridículo desta posição “isentona”, baseada na tese dos dois extremismos, tem sido exposto com sagacidade por alguns de nossos melhores artistas visuais e comediantes como Laerte, e também por alguns de nossos melhores pensadores e escritores como Eliane Brum e Vlad Safatle:
COMPARTILHAR: https://www.facebook.com/photo/?fbid=412236407593985&set=pb.100064228863947.-2207520000..
“É incomparável Lula e Bolsonaro. Bolsonaro é um genocida, golpista, defensor da ditadura, da tortura e é um perverso. O Lula, a quem sempre fiz críticas contundentes, é um democrata. É outro nível. Não é uma escolha muito difícil. É uma escolha muito fácil. Digo com tranquilidade de quem foi uma das principais críticas do Lula”, concluiu Eliane Brum no UOL. (Veja mais em https://noticias.uol.com.br/…/eliane-brum-bruno-estava…) No mesmo sentido, escreveu Gilberto Calil: “São dois extremos. Um é o fascismo. O outro é a extrema pusilanimidade da imprensa que vende uma falsa simetria.”
Como se pode ficar em cima do muro quando de um lado deste muro estão as tropas cujas botas estão esmagando as caras daqueles que estão do outro lado do muro, espoliados neste novo apartheid onde bilionários, grileiros e gangsters lucram enquanto roncam 33 milhões de estômagos famintos? Paulo Freire tinha as palavras mais adequadas para falar do que “lavam as mãos” como Pilatos diante da execução de Cristo diante da óbvia opressão:
“‘Lavar as mãos’ em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele. Como posso ser neutro diante da situação, não importa qual ela seja, em que o corpo das mulheres e dos homens vira puro objeto de espoliação e de descaso? (…) Há um sinal dos tempos, entre outros, que me assusta: a insistência com que, em nome da democracia, da liberdade e da eficácia, se vem asfixiando a própria liberdade e, por extensão, a criatividade e o gosto da aventura do espírito. É claro que já não se trata de asfixia truculentamente realizada pelo rei despótico sobre seus súditos, pelo senhor feudal sobre seus vassalos, pelo colonizador sobre os colonizados, pelo dono da fábrica sobre seus operários, pelo Estado autoritário sobre os cidadãos, mas pelo poder invisível da domesticação alienante que alcança a eficiência extraordinária no que venho chamando ‘burocratização da mente’.
Um estado refinado de estranheza, de ‘autodemissão’ da mente, do corpo consciente, de conformismo do indivíduo, de acomodação diante de situações consideradas fatalistamente como imutáveis. É a posição de quem encara os fatos como algo consumado, como algo que se deu porque tinha que se dar da forma que se deu, é a posição, por isso mesmo, de quem entende e vive a história como determinismo e não como possibilidade. É a posição de quem se assume como fragilidade total diante do todo-poderosismo dos fatos que não apenas se deram porque tinham que se dar, mas que não podem ser ‘reorientados’ ou alternados. Não há, nesta maneira mecanicista de compreender a história, lugar para a decisão humana, não há lugar para a escolha, mas para a acomodação comportada ao que está aí ou ao que virá. Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que os mecanicismos que o minimizam.”
PAULO FREIRE Em “Pedagogia da Autonomia”. Ed. Paz e Terra. Pg. 112
Em outras épocas, as alternativas históricas foram colocadas em termos binários como socialismo ou barbárie! (célebre nas bocas e bandeiras de figuras como Rosa Luxemburgo e Cornelius Castoriadis). Hoje em dia, diante do colapso dos ecossistemas ocasionado pela poluição tóxica causadora do superaquecimento planetário, a alternativa é colocada em termos de comunismo ou extinção! (como ocorre na obra de Franco ‘Bifo’ Berardi, Asfixia e Extremo, da Ed. Ubu). No Brasil de 2022, seria falso pintar o retrato de uma oposição entre dois extremismos: por tudo o que ficou aqui argumentado, a oposição entre bolsonarismo e lulismo representa a alternativa fascismo ou democracia! Quem fala em “escolha difícil”, neste caso, é por estar sendo perigosamente tentado à aderência, ao conformismo ou à cumplicidade com os bolsofascistas e sua máquina mortífera de esmagar dignidades e aniquilar vidas.
LEIA TAMBÉM – ARTIGO RECENTE DE VLADIMIR SAFATLE
Vladimir Safatle: “Infelizmente, há de se reconhecer que algo como o assassinato de Marcelo Arruda por um homem armado que entrou em sua festa de aniversário gritando “aqui é Bolsonaro” já era esperado. Esse caráter de algo já anunciado aumenta ainda mais o assombro e a amargura pelo ocorrido. Pois tal ausência de surpresa mostra de forma clara onde estamos, ou ainda o tipo de projeto de engenharia social ao qual estamos submetidos.
Já na eleição passada, o Brasil havia se deparado com pessoas mortas por apoiadores de Jair Bolsonaro, como o caso de Mestre Môa. Na ocasião, há de se lembrar qual foi a reação do senhor que ocupa atualmente a presidência da República. Nenhuma declaração pública de consternação e luto, apenas a afirmação de: “Mas quem levou uma facada fui eu”. Agora, o padrão é o mesmo: ausência completa de consideração a respeito da morte, apenas a reclamação de que o caso estaria sendo tratado de forma distinta da maneira com que fora tratado seu próprio incidente que redundou na famosa facada.
Esse padrão do governo não é estranho. Infelizmente, sua racionalidade é bastante evidente. Trata-se de naturalizar a lógica da guerra como forma de relação entre grupos sociais. Em uma guerra, não haveria razão alguma para demonstrar consternação pela morte de inimigos. Na verdade, em uma guerra é fundamental que tais mortes ocorram, pois elas podem produzir uma espiral de violência cuja verdadeira função é empurrar o país inteiro para uma tensão armada, consolidando as posições antagônicas. Daí a necessidade de minimizar tais assassinatos como “incidentes” não muito distintos de uma “briga de trânsito”, como insinuou o líder do governo na Câmara.
Essa generalização da guerra seria a situação ideal para o governo do sr. Jair Bolsonaro. Pois isso lhe permitiria afirmar que o país se encontra em uma situação de caos, abrindo espaço assim para um jogo duplo, a saber, tanto procurar criar as condições para uma saída golpista (ou algo parecido) quanto crescer no medo, recuperando setores conservadores que saíram de sua órbita, mas que podem sempre voltar se a lógica da guerra imperar. Ou seja, tudo isso nos lembra que o terrível assassinato de Marcelo Arruda em sua própria festa de aniversário provavelmente não será o último.
Alguns podem se perguntar como chegamos até aqui. E é sempre bom lembrar nesse contexto que o Brasil conheceu 13 anos de governo de esquerda sem nenhum caso de violência eleitoral que tenha terminado em assassinato perpetrado por apoiadores ou apoiadoras do antigo governo. Não há possibilidade alguma de falar em alguma forma de acirramento mútuo. Se mesmo diante da violência simbólica normal dos embates políticos nunca houve casos reversos é porque não há linha direta entre violência simbólica e violência real. Muitas vezes, a violência simbólica é, na verdade, um anteparo contra a violência real, pois ela desloca a violência para uma outra cena, com dinâmicas próprias.
Há de se insistir nesse ponto não para apagar a responsabilidade desse governo em atos dessa natureza. Ao contrário, trata-se de mostrar onde exatamente está tal responsabilidade. Pois se estamos em uma situação como essa agora, devemos procurar uma de suas causas principais na generalização da lógica de milícias que marca o fascismo popular de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo provoca uma reordenação social cujo eixo central é a “quebra de monopólio” no uso estatal da violência. É essa reordenação a verdadeira responsável por assassinatos brutais como esse.
Já se notou que a base fundamental desse governo não é apenas as forças armadas, mas principalmente as forças policiais. A lógica de extermínio, desaparecimento e assassinato que compõe a espinha dorsal da polícia brasileira ganhou um elemento suplementar quando tais ações passaram a serem feitas sem necessidade de sombras, sem precisar se deslocar dos holofotes, como aconteceu nesse governo.
Algo de fundamental ocorre quando a mesma coisa é feita, mas sem a necessidade de mascaramento, com a certeza absoluta da impunidade e com aplausos do Palácio do Planalto. Nesse caso, o fundo miliciano da polícia brasileira aparece de forma completamente desrecalcada, podendo produzir uma dinâmica irresistível de contágio social. Ou seja, outros grupos sociais, ou mesmo indivíduos isolados, se vem cada vez mais autorizados a agirem como se estivessem em uma situação de guerra.
De fato, como em movimentos fascistas históricos, a base armada desse projeto político não vem exatamente das forças militares tradicionais, mas da organização da sociedade a partir da lógica de milícias. A milícia se torna então o modelo fundamental de organização social. Isso significa que o exercício da violência aparece como atributo fundamental do exercício da cidadania, por mais estranho que isso possa inicialmente aparecer. Ser cidadão, ser cidadã é, nessa lógica, poder usar a violência para se “autodefender”, sendo que sempre é bom lembrar (e isso a experiência colonial nos mostra claramente) que nem todos tem o pretenso “direito de autodefesa”. Alguns tem apenas a condição de corpos a serem alvejados.
Assim, não erra quem afirma que o objetivo maior desse governo é fazer de todo brasileiro e brasileira um miliciano potencial. Ou seja, fazer de todos os que se identificam com esse “Brasil”, com suas cores nacionais, sua história de apagamentos e genocídios, com seu agronegócio depredador, um miliciano reconciliado consigo mesmo.
Alguém indiferente a morte de “inimigos”, solidário a corrupção vinda dos seus, identificado a figuras brutalizadas de poder e força, ao mesmo tempo que se vê como o defensor armado do ocidente e seus valores. Esse não é apenas um projeto de poder, mas efetivamente um projeto de sociedade. Contra isso, precisaremos de algo do tamanho da força de outra imagem de sociedade.”
https://aterraeredonda.com.br/a-guerra-como-continuacao…/
COMPARTILHAR: https://www.facebook.com/blogacasadevidro/posts/pfbid0si7nydDdRqpHaMDkFzsQszXubGZGFpXVU9dedKWDKiMbBQcGJ1xtGeUrHp8E5hrsl
LEIA TAMBÉM: ARTIGO DE ILONA SZABÓ
Até a conclusão do processo eleitoral deste ano, temos a difícil missão de evitar o desvio definitivo da rota democrática. Ao observar a trágica sucessão de fatos das últimas semanas, que culminou no assassinato do guarda municipal Marcelo Arruda durante sua festa de aniversário, no sábado passado em Foz do Iguaçu, fica evidente que os prognósticos mais sombrios estão se confirmando: intolerância, hostilidade e violência corroem nossa capacidade de aceitar as diferenças que caracterizam uma sociedade livre, diversa e plural.
Marcelo Arruda escolheu o PT como tema de sua festa de 50 anos. Sua escolha provocou o ódio em seu algoz que, segundo relatos, invadiu o local gritando o nome de Jair Bolsonaro e “mito”. Poucos dias antes, um explosivo caseiro foi atirado durante comício do ex-presidente e pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva na Cinelândia, Centro do Rio. No mesmo dia, o carro do juiz que determinou a prisão do ex-ministro Milton Ribeiro foi atacado com barro, ovos e fezes de animais.
O clima de intolerância é agravado por um governo que incita o ódio, divide a população, converte adversários políticos em inimigos, e adota o caos e a instabilidade como método de gestão. Com seu conceito niilista de liberdade, prega o vale-tudo. Ao nomear os opositores, os quais trata como inimigos, não só faz com que virem alvo, mas também incita aliados e seguidores a agredi-los, na retórica e na prática. Que fique claro: o governo é corresponsável pela violência que prega.
Simultaneamente aos sucessivos ataques que faz à legitimidade do processo eleitoral, o governo trabalha para armar sua base. A liberação sem controle das armas e munições, e a insegurança jurídica em torno do porte velado dos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) são perigosos combustíveis para a violência política.
Ambas medidas são uma bomba relógio que põe em risco um dos eixos mais importantes da legislação em vigor desde 2003: a proibição do porte de arma de fogo, salvo casos excepcionais. Além da insegurança da regulação federal que permite o porte de trânsito dessas categorias, legislações estaduais desafiam a competência da Polícia Federal para facilitar a permissão para que os mais de 600 mil CACs registrados no país possam transitar armados.
O incentivo ao armamento da população se traduz também no aumento do número de lojas de armas e clubes de tiro no país. De acordo com o Instituto Igarapé, são 90 novas lojas de armas e clubes de tiro por mês. Entre junho de 2020 e março de 2022, passamos de 1.092 para 2.070 o número de clubes de tiro, e entre dezembro de 2019 e maio deste ano, o número de lojas de armas saltou de 1.657 para 2.848.
O mais grave é que esse crescimento não é acompanhado do aumento proporcional da fiscalização. Em 2020, segundo dados fornecidos pelo próprio Exército, só 2,3% dos arsenais das lojas de armas, clubes de tiro e dos CACs foram fiscalizados. O desequilíbrio entre, por um lado, a facilitação do acesso a armas e munições, e, por outro, o enfraquecimento das capacidades institucionais de fiscalização e o baixo controle dos arsenais, facilita sobremaneira os desvios para facções criminosas.
Um dos grandes desafios dos próximos meses é deslegitimar a violência. Uma sociedade resiliente à violência política respeita posicionamentos políticos diferentes, sem demonizá-los. Como afirmou o relator especial da ONU sobre a liberdade de reunião e de associação, Clément Nyaletsossi Voule: “Quando a participação política de qualquer pessoa coloca sua vida em risco é porque estão matando a democracia”.
Não podemos aceitar o vale-tudo na política ou nos espaços de convivência social. É hora de defender a combalida democracia — e a essa tarefa estão convocadas todas as lideranças cívicas, políticas e cidadãos que nela acreditam.
https://www.facebook.com/photo?fbid=413584877459138&set=a.347691984048428
LEIA TAMBÉM: CLÓVIS GRUNER – MARCELO COELHO
Publicado em: 14/07/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia