Se isto é um homem
Primo Levi (1919 – 1987)
Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entrave,
Que os vossos filhos vos virem a cara.
(tradução de Simonetta Cabrita Neto)
Via Modo de Usar
Contêm spoilers
Em um cáustico comentário sobre a atual tirania do capitalismo de “livre mercado”, Eduardo Galeano sugeriu que hoje o sistema eleitoral, todo sequestrado pelo poder econômico e pelo financiamento privado de campanhas, permite-nos apenas “escolher com que molho seremos devorados”.
De modo similar, a personagem vivenciada por Meryl Streep em “A Escolha de Sofia” – performance que rendeu-lhe o Oscar de Melhor Atriz – passa por um trauma radical ao chegar ao campo de concentração de Auschwitz: o soldado nazista, em seu sadismo estratosférico, impõe-lhe uma escolha das mais terríveis que se pode imaginar, uma opção sobre que tipo de execrável ferida ela prefere ter-lhe infligida: qual dos filhos ela prefere perder? Uma escolha entre o terrível e o horrível; uma opção entre duas perdas igualmente mutilantes. Diante de alternativas tão tenebrosas, o afeto que domina o espectador é o de indignação: ninguém deveria ser obrigado a escolhas que parecem uma caricatura sádica do livre-arbítrio.
A lembrança deste episódio, sofrido em tempos bélicos de barbárie extrema, é tão dolorosa e insuportável que só ao fim do filme Sophie enfim revela seu segredo, tendo antes que tragar uma boa dose de uísque e alertar seu amigo Stingo que nunca havia confessado aquilo antes. Que a revelação venha somente ao final da película parece-me mais do que uma tática cinematográfica para manter o suspense. Soa mais como uma técnica narrativa que mimetiza a dificuldade psíquica da protagonista, embarcada no fluxo temporal, em “digerir” e comunicar certas experiências que sangram na lembrança.
“O espírito é um estômago”, dizia Nietzsche, tese brilhantemente explorada na obra de Maria Cristina Franco Ferraz. No caso de Sophie, o filme ilustra que há vivências pretéritas tão sofridas e difíceis de digerir que às vezes permanecem por longo tempo no âmbito do incomunicável e do inefável – e não por ser excesso de sublime, mas por sua carga excessiva de horror. Certas memórias, parece dizer a atitude de Sophie, seria melhor calar ou afundar no olvido total. Porém, não existe borracha mágica que aniquile as cicatrizes interiores. O trauma insiste em habitar os recessos psíquicos e os subterrâneos mentais. Nem todo inesquecível provêm dos dias felizes: a atrocidade também captura a memória, tornando-nos reféns dos machucados de outrora.
Neste sentido, “A Escolha de Sofia” – adaptação de um livro de William Styron – dialoga com uma obra-prima filmada por Sidney Lumet, em 1965, “The Pawnbroker – O Homem do Prego”: em ambos os filmes, sobreviventes do Holocausto, que estiveram em campos-de-concentração e lá sofreram perdas brutais de entes amados, tentam sobreviver após fugir da Europa e buscar refúgio nos EUA.
Ambos os filmes são brilhantes no raio-X que fornecem da experiência existencial dos protagonistas em seu duelo com situações extremas; ambos habitam um presente que não se reduz ao aqui-e-agora, mas está saturado de um passado que, por mais recalcado que seja, não cessa de impor-se. O retorno do reprimido é mais forte que a repressão que procura torná-lo irretornável. Ambos os filmes evocam uma das teses enunciadas pelo narrador de Magnolia, de Paul Thomas Anderson: “We may be through with the past, but the past is never through with us.”
A vida de europeus que escaparam da maquinaria genocida do nazi-fascismo europeu, conseguindo chegar vivos à América do Norte, é também um dos eixos temáticos que orienta a obra de alguns dos mais brilhantes artistas da literatura judaica no século XX: caso de um Isaac Bashevis Singer ou um Bernard Malamud.
Em um livro acabrunhante mas extremamente revelador, “Em Face do Extremo”, T. Todorov forneceu uma das melhores análises das vivências das vítimas das “máquinas da morte” instaladas pela Europa afora nos tempos da “Solução Final” e da “banalidade do mal” (Hannah Arendt). “A Escolha de Sofia” fornece um impressionante retrato da condição no exílio da católica polonesa Sophie, que só escapou da câmara-de-gás por um triz – o que não é exatamente uma felicidade, mas conduz àquela peculiar condição psicológica, analisada por Todorov ou Primo Levi: uma certa vergonha por ter sobrevivido, um horror diante da desumanização geral que se vivenciou e testemunhou.
Sophie, vivendo no Brooklyn com seu companheiro Nathan (Kevin Kline), parece ter tentado afundar no esquecimento o passado distante e suas perdas inolvidáveis. Porém, não são as rodas-gigantes de Coney Island que apagarão a marca na memória desta ex-mãe que, em Auschwitz, foi posta em uma situação existencial inacreditavelmente dolorosa: escolher qual de seus filhos salvar do extermínio. O sadismo-nazi talvez jamais tenha encontrado, na história do cinema, um emblema como este.
A vida pacata num casarão pink no Brooklyn parece simbolizar um desejo de kitsch, tipicamente americano, que pretende esconder num baú os fantasmas de um passado tenebroso. Mas não é fácil varrer cicatrizes para baixo de tapetes cor-de-rosa. O relacionamento entre Sophie e Nathan, com certos elementos sado-masô, está todo assombrado pela Shoah – e ele é às vezes muito cruel em suas alfinetadas contra Sophie, que em sua loirice e branquice tão “arianas”, é acusada de ter sobrevivido ao genocídio perpetrado pelos nazis por sua aparência e anatomia, que se adequavam aos paradigmas racistas do ideal eugênico nazista.
A chegada do novo inquilino, o escritor sulista Stingo, será o elemento detonador de uma viagem-fílmica pelos trilhos da memória. Nesta viagem, Alan J. Pakula (Todos Os Homens Do Presidente, Klute, O Dossiê Pelicano) irá dirigir seus atores com a maestria de um dramaturgo experiente que dirige uma peça de Strindberg ou Ibsen. As relações entre Sophie e Nathan, oscilantes entre a ternura carnal mais intensa e as agressões mais cruéis, são um retrato dum nó emocional que faz o espectador estarrecer perante os mistérios do coração humano. A entrada do “terceiro elemento”, Stingo, só complicará ainda mais o quadro. O triângulo é uma figura geométrica adorada pelos autores de tragédia…
Sophie, a princípio, parece uma pessoa bastante extrovertida e aberta em sua relações com Stingo – que só bem mais tarde descobrirá a avalanche de mentiras que ela lhe contou. Assistindo ao filme, ocorreu-me um verso da canção do Wilco em que Tweedy diz: “All my lies are always wishes.” Sophie não quis revelar ao seu novo amigo que seu pai, professor de Direito na Polônia, havia escrito panfletos defendendo que a solução para o “problema judeu” na Europa era o extermínio. A filha quis pintar um retrato nobre do pai falecido, idealizando-o diante de Stingo: a lie that springs from a wish…
A escolha de Alan J. Pakula foi por concentrar os flashbacks, que nos levam de volta à realidade da 2ª Guerra Mundial, na segunda metade do filme: revela-se então que Sophie, por ser loirinha e de pele alva, com um rostinho bem “alemão”, foi tratada com privilégios no campo-de-concentração pois supostamente se adequava aos parâmetros raciais do “ariano”. Como serviçal doméstica de Rudolf Hoess, vê-se na situação ética dificílima de, movida por seu élan vital de preservação da vida, ter que fingir ser pró-nazi, obediente e submissa aos ditames do chefe, ao mesmo tempo que ainda sangram na lembrança as atrocidades cometidas pelos nazistas e na urgência de salvar seu filho, preso no campo-de-concentração infantil que está infestado por uma epidemia.
Em uma cena carregadíssima de drama, páthos e tensão, Sophie vê-se diante de outra escolha ética dificílima entre duas alternativas igualmente horríveis: deve ela deixar-se explorar sexualmente por Hoess, barganhando assim sua libertação, numa espécie de pacto sombrio onde a mulher deixa-se estuprar tendo em vista uma vantagem posterior? Ou deve recusar-se, esperneando e debatendo-se, a ser violada por um canalha genocida? No caso, o dilema é dissolvido – ela é “salva pelo gongo” que bate à porta… – mas não sem antes termos a sensação desnorteante de que A Escolha de Sofia é uma obra-de-arte tão notável por ser uma espécie de campo-minado, repleto de dilemas éticos e conflitos intersubjetivos, sempre prestes a explodir na tela. E os estilhaços ferem bem mais que nossos olhos. Ferem mais fundo.
Aclamadíssimos filmes posteriores também forneceriam retratos históricos e personagens memoráveis tendo como pano-de-fundo os horrores da Shoah – caso de “A Lista de Schindler” de Spielberg ou “O Pianista” de Roman Polanski. Uma obra como “A Escolha de Sofia” merece fazer companhia a estes filmes: está entre as melhores criações cinematográficas sobre aqueles “tempos sombrios” (expressão que pego emprestada do livro de Arendt, no qual é relatada, por exemplo, a via crúcis que conduziu ao suicídio de Walter Benjamin).
O filme revela, através da personagem de Sophie tão comoventemente encarnada por Meryl Streep, uma complexa e multifacetada subjetividade singularíssima, mutilada pela exorbitância de mal no mundo. Não se trata de uma santa que o filme pretenda canonizar, desenhando auréolas sobre sua cabeça: ela é simplesmente uma mulher, em circunstâncias terríveis, que faz o que pode para driblar os horrores com que se confronta. Em Auschwitz, sua postura não é de solidariedade, de “comunhão de destino” com os judeus – ela inclusive clamará aos nazistas para ser salva, com o argumento de que é católica, que está ali por engano, que não merece aquilo (como se os outros merecessem…).
Que Sophie, após ter passado pelo que passou, seja descrita como alguém que não tenha perdido totalmente a delicadeza, a ternura e a capacidade de alegrar-se é uma espécie de milagre-terrestre, pequeno lume de esperança num filme bastante desesperante. Um filme que faz refletir sobre o “conatus” spinozista, essa perseverança tenaz da força vital, que em situações extremas – como também ilustrado pelo The Revenant de Iñarritu – abandona todos os escrúpulos morais.
Além disso, parece-me que o filme é veículo da intuição de que, na vulnerabilidade radical dos mortais em meio aos temporais da história, o amor e o apoio mútuo são tão raros e difíceis quanto preciosos e necessários. No entanto, a ideia de que um amor presente possa apagar e curar todas as perdas e cicatrizes do passado, porém, talvez não passe de uma idealização ilusória: o amor não é divino nem mágico, mas frágil e oscilante como os mortais.
Na cena onde Sophie e Stingo concretizam seu enlace carnal, o desejo dela de obliterar a lembrança de um passado doloroso demais é explicitamente exposto, numa cena de denso erotismo, que revela a efêmera capacidade do amor físico intenso de tornar esquecidas – por um tempo! – todas as cicatrizes: “Sophie’s lust was both a plunge into carnal oblivion and a flight from memory and grief”, descreve Stingo. “More than that, it was a frantic attempt to beat back death.”
Quanto ao benefício ou aprendizado que podemos colher ao nos deixarmos emocionar e sofrer com um filme desses (que contêm uma cena-chave que mais parece uma estaca-no-coração!), creio que pode ser resumido na fórmula lapidar de George Santayana (1863-1952): “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo.” Ao que eu acrescentaria: aqueles que não conseguem se compadecer das vítimas de outrora estão condenados a serem os cúmplices, indiferentes e desatentos, dos algozes de agora.
(Carli, 31/01/13)
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Parte 2
Publicado em: 31/01/16
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Entre os dois filmes, gosto mais do Lista. O Pianista, penso, é muito lento.
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mariel
Comentou em 31/01/16