“E se Deus fosse uma mulher?
Indaga Juan sem pestanejar
Ora, ora se Deus fosse mulher
É possível que agnósticos e ateus
Não disséssemos não com a cabeça
E disséssemos sim com as entranhas
Talvez nos aproximássemos de sua divina nudez
Para beijar seus pés não de bronze,
Seu púbis não de pedra,
Seus peitos não de mármore,
Seus lábios não de gesso.
Se Deus fosse mulher a abraçaríamos
Para arrancá-la de sua distância
E não haveria que jurar
Até que a morte nos separe
Já que seria imortal por antonomásia
E em vez de transmitir-nos Aids ou pânico
Nos contaminaria de sua imortalidade
Se Deus fosse mulher não se instalaria
Solitária no reino dos céus
Mas nos aguardaria no saguão do inferno
Com seus braços não cerrados,
Sua rosa não de plástico,
E seu amor não de anjo
Ai meu Deus, meu Deus
Se até sempre e desde sempre
Fosses uma mulher
Que belo escândalo seria,
Que afortunada, esplêndida, impossível,
Prodigiosa blasfêmia!”
Mario Benedetti
“A Mulher do Fim do Mundo”, de 2015, começava com Elza Soares interpretando a capela versos de Oswald de Andrade alusivos ao tráfico negreiro. Era o ponto de partida de uma viagem pelo Brasil sombrio.
O início de “Deus É Mulher” também tem Elza a capela, mas já cortando o presente: “Mil nações moldaram minha cara/ Minha voz, uso para dizer o que se cala/ O meu país é o meu lugar de fala”.
Canta-se um Brasil que ficou ainda mais sombrio nos últimos três anos. Em vez de abatimento, porém, há vigor. Como as precárias concertações sociais e políticas ruíram, mais do que nunca é preciso dizer o que não deve ser calado.
O reconhecimento público da força do CD de 2015 certamente encorajou Elza e seus parceiros paulistas a dobrarem as apostas.
O núcleo de compositores, músicos e produtores formado por Guilherme Kastrup, Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral, entre outros, ampliou-se e intensificou o caráter político (e nada partidário).
Quanto à sonoridade, há acréscimos, como as percussões das mulheres do Ilú Obá de Min, mas os pilares não mudaram: melodias conduzidas por sintetizadores e guitarras, muitas vezes distorcidas; mistura de sons sujos (sampler, MPC) e limpos (flauta, quarteto de cordas); criação de uma massa que não está a serviço da voz de Elza, mas que se cola a ela, formando um todo rascante, corrosivo.
No que se refere às letras, o verso “O meu país é o meu lugar de fala”, de “O Que se Cala” (Douglas Germano), é uma declaração de princípios. Dá a uma expressão das lutas identitárias (“lugar de fala”) um sentido nacional, esvaziando o tom fratricida que há nela.
Ao longo do CD, miram-se alvos concretos sem deixar de lado a qualidade musical.
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Contra a intolerância religiosa e a doutrina Escola sem Partido, vem “Exu nas Escolas” (Kiko Dinucci e Edgar), em que se ensina que “Exu no recreio não é xou da Xuxa” e se propõe “tomar de volta a alcunha roubada”, ressaltando-se o lado positivo da entidade.
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A liberdade religiosa é tema de “Credo” (Douglas Germano): “Minha fé quem faz sou eu/ Não preciso que ninguém me guie”. E a sexual, de “Um Olho Aberto” (Mariá Portugal): “Cada um inventa a natureza que melhor lhe caia”.
O par formado por “Língua Solta” (Alice Coutinho e Romulo Fróes) e “Hienas na TV” (Kiko Dinucci e Clima) descarta os falsos consensos. Na segunda, direcionada aos políticos e outros donos dos poderes, Elza canta: “Digo sim pra quem diz não/ E pra quem quiser ouvir/ Eu digo não”.
A primeira, espécie de súmula conceitual do CD, deixa claro: “Nós não temos o mesmo sonho e opinião/ Nosso eco se mistura na canção/ Quero voz e quero o mesmo ar/ Quero mesmo incomodar”.
As mulheres estão no poder em quatro faixas. No par “Banho” (Tulipa Ruiz)/ “Eu Quero Comer Você” (Alice Coutinho e Romulo Fróes), elas são donas de seus corpos, desejos e prazeres.
Em “Dentro de Cada Um” (Pedro Loureiro e Luciano Mello), extraem força das absurdas violências de todos os dias, mas não veem o gênero masculino como um inimigo a ser derrotado. “A mulher vai sair/ E vai sair/ De dentro de quem for/ A mulher é você”.
Almeja-se a vitória absoluta na faixa final, “Deus Há de Ser” (Pedro Luis). É dela o verso-título do CD e outro afim: “Deus é mãe” —o que, convenhamos, faz todo o sentido.
Elza está cantando como nunca porque o repertório é perfeito para a sua voz, para o que viu em mais de 80 anos, para o que viveu, para o que quer dizer e sabe dizer.
Seus discos com a turma paulista são fundamentais não só para a música brasileira mas para a vida do país.
DEUS É MULHER
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Ouça:
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Publicado em: 20/05/18
De autoria: casadevidro247
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