Eleito pela revista inglesa NME um dos 15 melhores álbuns da New Wave, na companhia ilustres das obras de Blondie, Television, Devo, Talking Heads etc., My Aim Is True (1977) uniu as urgências do rock dos primórdios à energia nascente do punk. Foi a fagulha que fez explodir no cenário musical aquele sempre improvável “clássico instantâneo” logo no debut com o qual Elvis Costello iniciou sua meteórica e longeva carreira.
por EDUARDO CARLI DE MORAES
“Esse aí é um nerd ou é um punk?” Uma dúvida dessas deve ter surgido na mente de muita gente que viu nascer o fenômeno Elvis Costello em plena ebulição do mov. punk em ’77. Nascido em Londres em 1954, o músico aparecia na capa como um rapazinho com jeitão de desenho animado, vestido com um terno vermelho berrante, com as perninhas abertas de um jeito desengonçado, vestindo óculos à la Woody Allen, segurando uma guitarra que parece de brinquedo.
Este álbum poderia ter se chamado The Geeks Can Rock! Nas prateleiras das lojas de disco, porém, esse estranho espécime acabou por ir parar na recém-inaugurada seção de um estilo musical juvenil então em seu início, e jaz ali bem ao lado dos Ramones e dos Sex Pistols em meio aos discos punk. What the hell?!?
Hoje, quando o imaginário coletivo já aprendeu a associar a palavra “punk” com podreira, barulheira, baderna, imoralidade e imundície, essa cena parece uma piada. Como é que este hopeless romantic de tão refinada musicalidade, o Elvis Costello que um dia dividirá palco e gravará álbum com Burt Bacharach (Painted From Memory), conseguiu ser classificado entre os punks, categoria que hoje pode parecer tão inadequada para uma criatura tão sutil e high-class quanto ele? Isso só pode se dever mesmo a um curioso e hilário equívoco histórico.
Mas peralá! Certamente Elvis Costello não é o tipo de diabinho anti-cristão e apologista da anarquia como Johnny Rotten. Nem é o porta-voz queer da sensibilidade suburbana como Joey Ramone. Também não aprecia picos de heroína como o junkie e guitar-hero punk Johnny Thunders. Mas algo nele cheira a punk. Não o punk tradicional pintado pelo senso comum: algo como um adolescente suburbano radical, rebelado contra a família e o poder, que desejaria que o mundo inteiro se explodisse junto com sua chatice num pandemônio niilista. Não o punk ostensivo que carrega na cabeça penteados excêntricos e quebra ossos em rodas de pogo. Mas um punk no sentido primitivo, na acepção original.
Mas o que significava, no começo de tudo, ser um punk? Se confiarmos em Mate-me Por Favor, ser um punk um dia tinha a ver sobretudo com a ruidosa celebração prática de valores como a autenticidade, a espontaneidade e a criatividade. Lá atrás, no começo dos anos 70, nos EUA que via nascer Velvet Underground, New York Dolls, o MC5, os Stooges, Patti Smith etc. – quando começou-se a pensar em uma espécie de movimento informal de modificação musical e comportamental, o punk significava basicamente isso: a liberdade para os estranhos e dissonantes serem quem eram. Contra os posers. Contra os exibicionistas. Contra o mundo adulto de trabalho assalariado mau-pago e missa consolatória aos domingos. Contra a chatice imensa da “vida séria” e seus simulacros.
O punk colocava fogo nas máscaras, abandonava a esperança de futuros cantantes, mandava parar o teatro burguês e botava pra rolar uma máquina de eletricidade bruta e subversão. Não mais a submissão aos pais, à escolinha, à preparação tranquila para pastar em escritórios fechados ou sofás à frente da TV: o punk era o fuck off da juventude para a chatice do mundo adulto, do straight world e do showbizz carola, mercenário e alienante. Um levante contra o terror que era ser “um homem sério”, um cidadão de bem comprometido com o futuro e com os interesses da comunidade mas que na prática era praticante de racismo, espancador de esposas e tirano com os filhos.
O punk era o rock and roll reinventado por gente que cansara das poses de herói dos rock-stars, e das punhetices dos progressivos, e que desejava se mostrar publicamente como era: sem retoques e sem maquiagem.E foi assim que Elvis Costello apareceu: como esse anti-herói desmascarado que resgata a espontaneidade dos primórdios do rock e que cospe uma música tão desengonçada, tão livre, tão indiferente ao que possam pensar os eruditos e os maestros de conservatórios, tão pouco envergonhada quanto a suas imperfeições, que não há jeito: é música de atitude punk. Pelo menos em espírito, pelo menos em ethos.
“De todos os debuts clássicos do punk, esse permanece aquele que é provavelmente o mais idiossincrático: por não ser catártico em som, somente em espírito”, escreveu Stephen Thomas Erlewine. My Aim Is True, primeiro disco de Costello, caiu no mundo em 1977, ano chave para a popularização punk, apresentando ao mundo um dos compositores mais espertos a surgir na música pop no último quarto do século 20. Costello era capaz de viajar em um amplo espectro musical, tinha um ótimo senso melódico e uma voz anasalada mas afinada. Além disso, escrevia letras de sagacidade poucas vezes antes vista. Tanto que não seria absurdo chamá-lo de Woody Allen do rock.
Único disco de Costello com o Clover como banda de apoio (daí pra frente se iniciaria uma longa e prolífica carreira junto aos Attractions), My Aim Is True é o mais rockeiro dos álbuns do homem, o que exala mais urgência, mais visceralidade. Os Attractions eram uma banda de apoio mais rítmica, que adicionava ao som mais texturas, que trazia teclados e fazia com que baixo e bateria ficassem mais discretos no background. Com os Attractions, Elvis Costello iria gradativamente se movendo para um campo mais de pop sofisticado e ambicioso e iria parir outros álbuns clássicos do quilate de This Year’s Girl, Armed Forces e Imperial Bedroom.
A maioria das músicas de My Aim Is True são dotadas de uma concisão que também era celebrada pelos punks. Ele encapsula em 2 minutos o que outros demorariam 5 minutos ou mais para desenvolver. Mas sua sonoridade não explode como a dos Sex Pistols, estando calcada no pop-soul clássico dos anos 50 e 60, reinventados sob uma perspectiva onde ser conciso, direto e emocionalmente poderoso tinha primazia sobre o preciosismo técnicos.
“Sneaky Feelings”, “Red Shoes”, “No Dancing”, “Radio Sweetheart” são músicas punk-pop chicletudas, bubblegums, bem na tradição de melodias cativantes e refrão simples e colante. Grande parte do disco, porém, não soava exatamente como algo que se enquadrava em algum categoria musical preexistente, e foi em grande parte por causa de My Aim Is True que foi preciso se inventar um novo termo para se referir a essa reinvenção punk do pop clássico: a NEW WAVE.
O punk, aliás, era musicalmente um movimento retroativo, que ia buscar lá nas raízes perdidas do rock dos anos 50 e 60 a visceralidade e a espontaneidade que atribuía-se ao Led Zeppelin, ao Deep Purple e aos “progressivos” de terem destruído – abaixo as maçantes viagens sonoras e o exibicionismo instrumental! “Mystery Dance”, por exemplo, é uma música que poderia muito bem ter sido lançada por Little Richards ou Chuck Berry. É como o ponto de encontro entre os dois Elvises: Presley e Costello. Já a bela “Alison” aponta para o futuro de Costello, onde se encontrariam abundantes amostras de uma baladaria sofisticada e sensível.
Vocês todos sabem: os nerds também amam. O problema é que, normalmente, o amor para eles nunca se concretiza, oscilando entre o reino do platonismo bobão e do desastre ridículo no mundo objetivo. Eis porque My Aim Is True não é exatamente um álbum sobre o Amor e suas delícias, mas sim sobre esse maldito-sentimento-que-nos-estraçalha que é o amor e todas as suas catástrofes. O tema de Costello, mais precisamente, é o amor que fracassa, que rasga os corações, que faz sofrer e que talvez não seja mais que um sonho, sempre pronto a ser dilacerado pela dureza da realidade.
Várias músicas são compostas com duas das matérias-primas mais utilizadas na história da humanidade na composição de canções populares: a dor de corno e o ciúme (“Alison”, “I’m Not Angry”, “Red Shoes”). Os sentimentos em que ele se afoga normalmente são de rejeição, de ser passado pra trás, de não ser bom o bastante. “Por que você tem que dizer que sempre há alguém que pode fazer melhor que eu?”, pergunta ele em “Miracle Man”.
O que impede que ele caia no lodaçal que prenunciaria o emocore é que no reino de My Aim Is True uma auto-ironia reina suprema. Elvis Costello não se leva a sério: as próprias desilusões amorosas são motivo de piada e ele tem a manha de zoar consigo mesmo. E que sutileza utiliza ele para tratar do assunto, que sublimes eufemismos, que deliciosos jogos de palavras faz para pintar o quadro das desgraças amorosas!
Quando um brutalhão punk, posando de rebeldão, iria fazer uma música onde “batia uma punheta com a foto da namorada”, nosso Elvis diz estar “admirando ritmicamente” uma fotografia. Quando um melodramático cantor de baladas iria declarar amor às qualidades interiores e ao “coração” da amada, Elvis é sincero o bastante para dizer: “Poderia dizer que gosto da sua sensibilidade, mas você sabe que é o jeitinho como você anda”.
Alguns posariam de PhDs em assuntos sentimentais, garanhões profundos conhecedores da natureza feminina, mas Costello sabe que não é nada disso: admite que é imperfeito, muitas vezes boboca, às vezes demasiado sentimental, outras vezes ranzinza. Num mundo lotado de compositores gabarolas, é ótimo achar um cara que não está querendo se vender como um gênio. No reino das canções de amor que fedem a sentimentalismo barato e melodrama, Costello chega para dizer algumas verdades pouco lisonjeiras sobre as relações amorosas.
A ambiguidade de seus sentimentos em relação ao amor é simbolizado perfeitamente pelo “My aim is true”, refrão de “Alison” e título do álbum. A expressão significa, em tradução literal, algo como “Minha mira é certeira”. Mas pode simbolizar (sigo a interpretação de Matt Le May) duas coisas: ou o desejo de reconquistar a garota amada, ou uma mira certeira para destruir a garota odiada. Sendo que a garota amada e a odiada podem ser a mesma pessoa: o mesmo objeto é ora alvo de ódio, ora de amor, segundo a perpétua inconstância dos sentimentos humanos. Costello não mente sobre isso, sem medo de soar “incoerente” e ambíguo.
Também está longe de ser o babaca paparicador que só elogia as garotas. Mais do que um bajulador, ele é um rabugento, que se revolta contra certas futilidades femininas, como a consumista compulsiva de “Miracle Man”, que compra artigos dos mais supérfluos (“ten-inch bamboo cigarette holder and black patent leather gloves”) . Já em “Welcome To The Working Week”, critica o otimismo da garota burguesa que acha que “tudo na cidade está bem” mas que nunca saiu de casa pra checar se estava mesmo:
I hear you sayin’, “Hey, the city’s all right”
when you only read about it in books.
Spend all your money gettin’ so convinced
that you never even bother to look.
(Eu ouço você dizer, ‘Hey, a cidade tá na boa’ / Quando você só leu sobre isso nos livros./ Gastou toda sua grana pra conseguir se convencer / Que você nunca se importa em ir dar uma olhada…)
A guerra dos sexos fica mais virulenta ainda na deliciosa B-side “Wave A White Flag”, uma das músicas mais engraçadas de todos os tempos e uma boa amostra do porquê Elvis Costello é um dos caras mais legais da história da música pop. “Espanque-me na cozinha, e te espancarei no hall / Não há nada que eu goste mais do que um vale-tudo / Pegar seu belo pescoço e ver para que lado ele se entorta / Mas quando tudo estiver acabado ainda seremos amigos”. No refrão da música, vem o delicioso “Hope you don’t murder me” (“Espero que você não me assassine”), fechando uma obra-prima do humor negro sobre o amor.
A vontade é citar mais uma dezena de versos deliciosos que Elvis espalha pelo disco, mas ler essas palavras no papel não é tão divertido quanto ouvi-las cantadas. Há todo um universo de referências dentro das letras de Costello, todo um paraíso a ser desvendado, toda uma série de piadas deliciosas e joguinhos de palavras.
Há letras-historinhas, como “Waiting For The End Of The World”, que relata um acidente que faz com que um trem fique preso em túnel escuro, onde as garotas começam a ser bolinadas e todos esperam pelo fim do mundo; há letras mais políticas, como “Less Than Zero”, sobre um fascista inglês; há singelos retratos do terror da vida familiar em “Stranger In The House”, onde Costello diz se sentir um estranho em sua própria casa, que “se parece mais com um hotel a cada dia”; há raivosas promessas de vingança em “Pay It Back”, onde Costello parece se revoltar por ter sido iludido com as falácias da eternidade do amor e da segurança da vida, cantando: “Eu te amo mais que qualquer coisa no mundo / Mas não acho que isso vá durar / Alguém me disse que tudo era garantido / Alguém em algum lugar deve ter mentido pra mim…”. E assim por diante.
My Aim Is True, esse delicioso mosaico pop, desfile de sublimes nerdices, é um dos discos capazes de fazer com que alguns se apaixonem eternamente pela música pop. É um álbum de fundamental importância histórica: o disco que inaugura a new wave, o cartão de visitas que dá um pontapé inicial numa carreira que já se estende por mais de 25 anos (e contando), uma inspiração fundamental para todo o indie-rock “sensível e sincero”, para grande parte do punk-pop das duas décadas seguintes e um paradigma fundamental para uma série de compositores desencanados e bem-humorados.
Como escreveu Matt Le May, “com My Aim Is True Costello explodiu para dentro da cena punk/new-wave como um mutante híbrido de Buddy Holly e Johnny Rotten”. Tinha “inteligência transparente, sensibilidade e senso melódico que o tornaram muito mais interessante do que muitos de que seus contemporâneos”. Ficar discutindo se Costello é ou não um punk talvez seja até desimportante. Preocupar-se em enquadrá-lo dentro de um certo estereótipo (nerd, punk, geek, new-waver) parece então tolice: Costello é só Costello. Contra todos os rótulos, cintila um fato simples: estamos claramente frente a frente com um dos discos mais divertidos e libertários daquela época de tantas renovações culturais e comportamentais.
Eduardo Carli de Moraes
Publicado em: 15/08/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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