por Gisele Toassa para A Casa de Vidro
O guardião (El custodio). Diretor: Rodrigo Moreno (Argentina, França, 2006)
Quase uma história que deixaria a desejar em intensidade dramática. O marasmo da vida de Ruben (Julio Chávez), não há trabalhador que não conheça. Esse afeto nos conduz ao longo dos 100 minutos do cotidiano do guarda-costas de Artêmio (Osmar Núñez), ministro do planejamento da grande nação argentina, afeto mais que evidente na invariável expressão de desiludido cansaço com que Ruben vigia seu objeto principal, o ministro, sem deixar de ver outros corpos, mais aprazíveis, a gravitarem no entorno daquele.
Os olhos de Ruben, homem de poucas palavras, tecem o fio desse longa – daquilo que ele vê, e do que dá a ver sem que quase ninguém perceba. Ruben nunca tomou banho de mar, e, à exceção do seu fracassado almoço de cumpleaños, nada faz além de trabalhar. Para além dissosabemos que atrás dos olhos negros habita um sufocado talento de retratista, sua preciosa migalha de vida subjetiva. Ruben limita-se a guardá-lo para si, avaro com seus afetos, descrente da possibilidade de introduzi-lo aos olhares do mundo. Impede a própria sobrinha de manusear seus desenhos, mas, submisso, obedece ao comando do patrão de desenhar-lhe o amigo francês.
É nessa cena que começamos a intuir a revolta embargada nesse trabalhador esquecido, dessubjetivado do primeiro ao último olhar de seu dia. A propósito, a vida de Ruben evolui com sutileza digna do realismo anímico de Stanislávski, pois é pelo espelho de seus olhos que adivinhamos, em outra situação do filme, a indignação laboral em acatar a ordem ilegal de Artêmio.
A situação é a seguinte: apesar de, pelos regulamentos, os guarda-costas não poderem transportar ninguém além da família do ministro, Artêmio e seu colega são forçados a transportar o jovem crush da filha do patrão. Tudo podem os grandes, até esfregar-se no banco de trás do carro oficial, para inútil provocação desejante do guarda-costas. Nesse filme, não é demais lembrar da vida cinza incutida nas obras tchekovianas, que o Teatro de Arte de Moscou levou aos palcos; vida pobre que fenece sem nunca ter brotado, e, ao invés de seguir seu curso natural do nascimento à morte, desmaia apenas, sem paixão ou aviso, sem nem mesmo sofrer tonteiras ou convulsões. Ruben mora sozinho e envergonha-se de sua família, encapsulada na loucura que a irmã acaba estendendo à sobrinha. Queixar-se é inútil, e ele não tem recursos para mudar-se (ou mudá-las), conformando-se a esta vã impotência, por mais armada que ela revele ser… Acorre-me à lembrança um dos mais fortes contos tchekovianos, Olhos mortos de sono (Spát khotesia), em que a babá Varkha, extenuada, nina um bebê durante uma luta feroz para manter os olhos abertos.
O título, quiçá, tenha tintas irônicas, pois se escora na ambígua fronteira entre vigiar e proteger – Ruben é guardião de quê, de quem? O que buscamos preservar, o quê, por nossa livre vontade, pela decisão de nosso arbítrio, escolheríamos preservar das ameaças desse mundo? Proteger Artêmio, resguardar Artêmio, sacrificar dias inteiros à missão de seguir nos calcanhares desse político tão ordinário, tão típico de sua classe e posição quanto o é o próprio Ruben, em sua vida de trabalhador com tão escassos prazeres?
A propósito, este homem que vive de observar não consegue enxergar seu próprio prazer. É apenas no escuro que ele entrega seu descuidado corpo de meia idade à prostituta, na situação mais anticlimática e antierótica de todo o filme: a mulher recebe o cliente em casa, mandando-o para o quarto em meio às recomendações para que a mãezinha demenciada tomasse seus remédios (dir-se-ia que a velhinha nada compreende, mas, em seus passinhos frágeis, ela fecha a porta atrás dos parceiros que tinham buscado a escura proteção do quarto, acentuando o desconforto do espectador). Ali, a filha dela fala a Ruben como se mimasse uma criança. A profissional do sexo é a única, em todo o filme, a notar o cansaço resultante das horas extras que o aniquilam como um ser fora do trabalho – mais um sinal, diria talvez E. P. Thompson, da experiência social comum que precede a consciência de classe…
Se, como disse Vigotski, todos temos energias desperdiçadas, Ruben é uma bateria prestes a se converter em bomba, afetivamente esmagado pelo gesto profissional de parar, manter o rádio entre as mãos e, sobretudo, olhar… Olhar que se excita, quase sem conseguir alívio, e deseja tanta liberdade com relação ao seu trabalho quanto Morán, personagem de outro filme de Moreno (“Os delinquentes”), um bancário que desfalca seu empregador apenas para ter direito a nada mais, nada menos, que o mesmo medíocre padrão de vida vivido até ali – embora sem a Gaiola sob Medida do seu trabalho, para aproveitar uma metáfora que criei alhures.
Num desses corredores nos quais Ruben exerce seu ofício nos meandros da política, sempre sem ser convidado a participar da vida pública de seu país; nas horas de frases entrecortadas e diálogos parcamente compreendidos, em que o guardião encontra um antigo conhecido – e este relembra o futuro promissor que já não lhe sorri – recordamo-nos, novamente, de que para os oprimidos o presente é castigo e o futuro não existe. Vale a pena ver, em O guardião, os caminhos e ambivalências afetivas deste gesto profissional de olhar na interpretação sublimemente angustiada de Julio Chávez.
Download do filme em torrent no fórum Making Off
COMPARTILHE NAS REDES SOCIAIS:
Publicado em: 30/01/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia