Cronista impiedoso e provocativo de todas as facetas do Desespero humano, o cineasta dinamarquês Thomas Vinterberg retorna em “Druk – Another Round” (2020) misturando Kierkegaard com alcoolismo – e sem uma gota de moralismo.
O talento Vinterberguiano para a criação de enredos desesperadores, incômodos para o gosto médio do cidadão comum acostumado às pipocas Hollywoodianas e às Coca-Colas culturais, vem nos provocando para fora das zonas de conforto desde sua estréia em “Festa de Família” (1998), um dos manifestos fílmicos do movimento Dogma 95 que criou na companhia do conterrâneo Lars Von Trier. Vencedor do Prêmio do Júri em Cannes, o filme era um chocante exposé de abusos sexuais e silenciamentos brutais no seio de uma Família Tradicional Norueguesa que escondeu nos seus armários aristocráticos as verdades sobre o abuso sexual praticado pelo patriarca.
Desde então, Vinterberg pode ter deixado um pouco de lado o minimalismo e as restrições técnicas Dogmáticas, tendo se aventurado em produções mais grandiosas – como a angustiante imersão no submarino russo Kursk de seu filme antecedente, já analisado aqui em A Casa de Vidro como uma ilustração do conceito existencialista (Jasperiano) de situação-limite. Mas o seu senso de provocação polêmica segue intacto – e segue sendo um paradoxal prazer doloroso ser “alfinetado” por seus enredos.
Em uma obra vibrante em que reata a parceria com o ator Mads Mikkelsen, que estrelou uma das obras-primas da filmografia do diretor, “A Caça” (2012), Vinterberg aborda novamente o ambiente escolar e suas tretas. Se em “A Caça” tínhamos a kafkiana trama que envolve um professor acusado de pedofilia contra uma de suas alunas, em “Druk” estamos diante de estratégias pedagógicas heterodoxas que envolvem manter o nível de álcool no sangue sempre a 0,5%.
Quatro professores de um colégio dinamarquês resolvem partir em um experimento de embriaguez etílica no trabalho docente inspirados pelas teorias de Finn Skårderud, psiquiatra norueguês que afirma sermos todos deficitários de álcool em nossos organismos para operarmos realmente bem. A qualidade de vida e a excelência laboral demandariam um incremento elítico no sangue que ajudasse a avivar um organismo letárgico. A tese da caretice como uma doença congênita.
Sem moralismo, mas repleto de uma ironia um tanto cáustica, Vinterberg se põe a investigar através de seu enredo a que consequências levará a bebedeira dos 4 professores que parecem querer dar razão à famosa frase de Humphrey Bogart: “A humanidade está três doses de uísque atrasada. Se todo mundo tomasse esses três uísques, não teríamos tantos problemas.”
Por um lado, o filme ironiza a atitude pseudo-científica dos beberrões: eles se propõe a escrever um artigo científico cabeça para sondar os efeitos psicomotores, além dos potenciais benefícios intersubjetivos e laborais, de se tomar uns porres na hora do trabalho. O recurso às teses de Finn Skårderud soa como uma racionalização intelectualóide para o impulso subjacente de encher a cara, tornando menos tediosa a modorra do trabalho cotidiano, travestido aqui de interesse pelo avanço dos estudos acerca da psicologia das inebriações etílicas.
Para além desta ironia, porém, o filme ousa avançar teses que polemizam contra os abstêmios e que põem de cabelos em pé os apóstolos do caretismo. Ao pintar o retrato do professor de História, interpretado magistralmente por Mads Mikelsen, o filme realmente sustenta a tese que o álcool melhorou muito suas aulas: antes entediantes e insuportáveis, suas aulas tornam-se muito mais vivas e interessantes. Alunos antes semi-mortos e apáticos tornam-se participativos e animados enquanto o professor bêbado puxa papo sobre a embriaguez e revela o quanto figuras históricas da política e das artes – de Winston Churchill a Ernest Hemingway – são incompreensíveis sem que atentemos para suas relações com as bebidas alcóolicas.
O auge do furor dos alunos é atingido quando o professor lhes instiga a refletir sobre a presença do álcool na História humana, inclusive na biografia de grandes artistas e chefes-de-Estado, e os instiga a responder se querem acabar sendo o tipo de bêbado que dá um tiro na cabeça ou o tipo de bêbado que ganha uma guerra mundial.
É uma cena magistral que encapsula o que Vinterberg tem de melhor e de pior. Do ponto de vista da provocação artística, é uma cena brilhante, que evoca o suicídio de Hemingway e a liderança breaca de Churchill, formulando um dilema ético facilmente compreensível por uma jovem geração acostumada a festas e competições que envolvem beber até vomitar. Mas, do ponto de vista histórico, ou melhor, da justiça que possamos fazer ao passado, é uma cena bastante problemática, sobretudo por embarcar na lorota liberal que consiste em apagar todas as proezas soviéticas no combate ao nazi-fascismo (Churchill alçado a herói da 2ª Guerra? Sério mesmo, Sr. Professor?) e também por apagar toda a obra e toda a vida de Hemingway através do foco em seu ato final de estourar os miolos.
O filme é repleto de ambiguidades e paradoxos que não nos permitem juízos apressados: certamente há um bom nível de apologia da embriaguez etílica, com a demonstração dos ganhos em extroversão e capacidades para a dança e a interação social festiva nas atitudes dos embriagados. Mas também há um bom nível de denúncia dos males trazidos pela intemperança, de narizes quebrados em choques súbitos contra a parede a brigas domésticas causadas por um macho de 50 anos que está tão trêbado que mija na cama feito uma criança de 5.
Só que este não seria um filme de Vinterberg caso ele decaísse no moralismo – na verdade, a vibe do filme está nas antípodas daquela atitude características das mulheres puritanas dos EUA que criaram movimentos favoráveis à Lei Seca e que criaram uma espécie de Greve do Sexo, à la Lisístrata de Aristófanes, dizendo que “lábios que tocarem licor nunca tocarão os meus”.
O filme de Vinterberg ousa fazer certos elogios desbragados de embriaguez etílica, que permitiria inclusive, como se depreende de certas cenas, tornar pianistas muito mais brilhantes do que seriam caso estivessem tocando sóbrios e transformar professores de história chatonildos e desinteressantes em verdadeiros ídolos de uma juventude que enxuga garrafas com uma avidez que sugere que o sentido da vida está escondido no fundo de cada garrafa.
No fundo, o cineasta autor de “Submarino” é o cronista do Desespero, um artista do porte de Kirkegaard e Strindberg, contando histórias um tanto sombrias a respeito dos horrores da condição humana, inclusive seu tédio. Cronista de tudo que fazemos para aniquilá-lo, a este Desespero pegajoso e pervasivo que marca a geração pós-Deus, mesmo que no processo aniquilemos também nosso fígado, nosso equilíbrio psíquico e nossas relações amorosas numa espiral de excessos em que se confundem o auto-deleite hedonista com a auto-destruição niilista.
Será que Vinterberg está, como disse Criolo em um rap, emprestando “glamour” pro alcoolismo? Está indiretamente fazendo o jogo das mega-empresas que lucram com a venda de uísques e cervejas, indiferentes aos acidentes de trânsito e à violência doméstica incrementada que estão diretamente relacionadas com seus produtos? Não é tão simples. Vinterberg tem o dom do trágico e soube neste filme pintar as desgraças que advêm do alcoolismo, da compulsão em beber sempre mais e mais. O seu retrato, apesar das apologias, também tem caráter de denúncia sobre o potencial destrutivo de encher a cara de absinto como se não houvesse amanhã.
Mas não se trata de um filme panfletário, nem se sente em lugar nenhum dele o fedor daquela “moralina” que tanto desagradava a Nietzsche. Mas o filme tampouco é um manifesto hedonista, ingênuo na sua celebração da embriaguez etílica. É um filme que afirma várias possibilidades libertárias abertas às consciências que escapam da sobriedade, mas que também afirma a necessidade de uma certa temperança, de uma certa percepção sábia da dosagem ótima, que já entre os gregos era conhecida: o que faz um phármakon ser um remédio ou um veneno é a dose.
Uma das falhas deste filme – que no geral funciona tão bem, do ponto de vista narrativo e dramático – é a ausência completa de qualquer tematização a respeito de outras substâncias psicoativas, assim como a ausência completa de debate sobre a construção social do que é lícito e do que é ilícito: o álcool reina supremo em “Druk” – ninguém fuma maconha, cheira pó, toma cogumelos mágicos ou usa heroína.
Esta obsessão com o álcool, no filme, é vendida como uma espécie de “obsessão nacional”, uma espécie de traço de caráter do dinamarquês, o que elude a questão jurídica que aí subjaz: o álcool foi construído historicamente, inclusive pelo Direito, como a droga lícita por excelência, a despeito das montanhas de evidências que provam que os malefícios sociais causados pelo seu consumo superam em muito aqueles causados pela cannabis sativa, por exemplo: milhões de pessoas morrem todos os anos por causa do álcool que bebem, ou melhor, dos carros que batem alcoolizados ou das pessoas que matam em furores etílicos; e os bem-informados sabem que ninguém na história da humanidade jamais morreu ou matou por ter fumado maconha.
O filme de Vinterberg passa batido por tais debates concernentes ao proibicionismo e às diferenças entre os efeitos psico-sociais de diferentes substâncias – nem levando o espectador a refletir que o experimento pedagógico dos 4 professores teria sido radicalmente outro caso o tivessem realizado com o THC ou o LSD…
Apesar destes problemas, o filme finda belamente, dissolvendo toda a racionalidade num jorro de impetuosidade vital bêbada em uma belíssima cena de dança em que Mads Mikkelsen, sem precisar de palavras, performa a liberação (efêmera mas intensa) propiciada pelo álcool. Mas que ninguém se engane: não se trata de hedonismo em estado puro, ou seja, de puro gozo vital propiciado por uma substância psicoativa que nos limpa de todas as angústia, mas sim de uma Dança do Desespero Bêbado, sendo que o álcool serve para obnubilar a consciência do colega morto, do olho roxo e da vida difícil. Uma obnubilação passageira e que conduzirá, é claro, a um amanhã tiranizado pela ressaca (física e moral) e por um terno secando no varal após sofrer com uma tempestade de vômito, lágrima e cerveja.
No fim das contas, Druk é um belíssimo filme que nos provoca a pensar sobre a psicologia humana, sobre como lidamos com a sobriedade e a embriaguez: as mutações do professor de História, de um sóbrio, deprimido e tedioso homem carcomido pela midlife crisis para um dançarino frenético que se movimenta com o dispêndio de energia de alguém que não está guardando nada para amanhã revela a amplidão do comportamento humano e o quanto este pode ser radicalmente transformado por aquilo que colocamos em nosso organismo e que interage com nosso cérebro, e doravante com todo o nosso sistema psico-motor.
Sem reducionismos, devemos enxergar este filmaço de Vinterberg como oportunidade para refletirmos a fundo, na companhia de mestres da história do pensamento como William James, sobre o quanto a Sobriedade, transformada em dogma, é limitante e castradora, ainda que a Embriaguez não deva ser transformada em deus, a ser idolatrada sem limites, podendo ser a carrasca da saúde orgânica e do equílibrio psíquico e intersubjetivo. De fato, o conceito de phármakon segue tendo muito a nos dizer, assim como o brilhante enquadramento que W. James dá ao tema e que, para finalizar, convêm citar em honra ao mestre:
“Sobriety diminishes, discriminates and says no; drunkenness expands, unites, and says yes. It is in fact the great exciter of the Yes function in man. It brings its votary from the chill periphery of things to the radiant core. It makes him for the moment one with truth. Not through mere perversity do men run after it. To the poor and the unlettered it stands in the place of symphony concerts and of literature; and it is part of the deeper mystery and tragedy of life that whiffs and gleams of something that we immediately recognize as excellent should be vouchsafed to so many of us only in the fleeting earlier phases of what in its totality is so degrading a poisoning. The drunken consciousness is one bit of the mystic consciousness, and our total opinion of it must find its place in our opinion of that larger whole.” William James
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 24/12/2020
Publicado em: 24/12/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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