Projeto de Doutorado em Filosofia aprovado na Universidade Federal de Goiás (2021), para ser realizado sob a orientação da profa. Carla Milani Damião. Proponente: Eduardo Carli de Moraes.
Diante das emergências e crises contemporâneas, sobretudo as novas pandemias viróticas e as mudanças climáticas antropogênicas, a especulação sobre o porvir coletivo torna-se um foco de investigação dos mais pertinentes e inadiáveis para a
filosofia. Vivemos numa época em que acumulam-se evidências de uma degradação sócio-ambiental sem precedentes nos últimos milênios: a Humanidade, como força conjunta que hoje engloba mais de 7,8 bilhões de indivíduos, vem impondo transformações de vasta escala ao planeta e sua biosfera. Esta nova conjuntura está repleta de desafiadores dilemas: no limiar da Quarta Revolução Industrial (cf. Schwab [1]), diante do advento da era geológica do Antropoceno (cf. Crutzen [2]), estamos em meio à sexta extinção em massa da biodiversidade planetária (cf. Kolbert [3]).
A poluição atmosférica e hídrica ceifa cerca de 9 milhões de vidas humanas por ano [4]. A subnutrição e a insegurança alimentar grave atingem cerca de 800 milhões de pessoas no mundo – o relatório da Oxfam estima que, em 2020, tivemos 12.000 óbitos diários causados pela fome, situação agravada pela disseminação de novas zoonoses como a Covid-19 [5].
Além disso, com o agravamento do Efeito Estufa e suas consequências sócio-políticas colossais, como o incremento das migrações e das “guerras climáticas” analisadas por Harald Welzer [6], colocam a necessidade de uma filosofia renovada, atenta aos debates contemporâneos acerca de temas como engenharia genética, criogenia, inteligência artificial, transhumanismo, Big Tech e Big Data etc. O próprio aparato cognitivo e sensório do ser humano vem passando por radicais transformações através do incremento das interações com máquinas e robôs cuja capacidade de processamento de dados, memorização e “resposta inteligente” vem avançando de maneira acachapante – a ponto de certos pensadores, como o futurista e inventor Raymond Kurzweil, anunciarem que estamos adentrando na Era das Máquinas Espirituais [7].
Diante desta problemática, desejamos que nossa pesquisa possa contribuir para a emergência de uma filosofia que saiba aprender com os mais visionários dos artistas que têm se devotado à especulação sobre o futuro. Assim, a filosofia poderá estar atenta e forte diante de suas responsabilidades não apenas diante dos seres humanos contemporâneos como também para com as futuras gerações de seres sencientes – como argumentam autores como Hans Jonas e Günther Anders, defensores da curiosa tese: “é preciso ter a coragem de ter medo” [8].
Vários debates pertinentes perpassam algumas das obras mais importantes da literatura do século XX que podem ser classificadas como ficção científica e que abordam a problemática da utopia e da distopia: 1984 de George Orwell, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e Nós de Zamiátin são os melhores exemplos [9]. Ainda que menos conhecidas a não ser pelos aficcionados do gênero, muitas outras reflexões de relevância são realizados nas obras de autores como H.G. Wells, Philip K. Dick, Arthur C. Clarke, Stanislaw Lem, Isaac Asimov, Octavia Butler, Ursula Le Guin, Kurt Vonnegut, Ray Bradbury, Margaret Atwood, William Gibson, Robert Heinlein, dentre outros.
Desde seus primórdios, em uma obra fundadora de gênero como o romance Frankenstein ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, as maiores obras sci-fi problematizam as ações humanas sobre o planeta, alertando para possíveis efeitos indesejados – ou mesmo catastróficos – de experimentos técnico-científicos como aquele realizado pelo Dr. Viktor Frankenstein ao infundir vida a uma criatura costurada a partir de pedaços de cadáveres.
A produção artística de ficção científica vem realizando especulações sobre o futuro desde o século 19 e podemos afirmar que a onda sci-fi não dá sinais de enfraquecimento no século 21. Pelo contrário: a produção audiovisual do sci-fi contemporâneo vem marcando época ao expressar nosso zeitgeit em obras de notável relevância estética, ética e política: Melancolia, Elysium, Aniara, Ad
Astra, Distrito 9, Black Mirror, O Conto da Aia, Ex-Machina, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Blade Runner 2049, The Road, Children of Men, The Congress, Her, Empathy Inc etc. são apenas alguns exemplos de filmes e séries recentes que o filósofo de nossos dias não se pode dar ao luxo de ignorar caso deseja ser o fiel buscador da sabedoria e agir como “parceiro do futuro” (como canta Tom Zé na canção “2001”, gravada com Os Mutantes10).
A problemática global atual, que exige uma “solucionática” também global, obriga o filósofo a dialogar e refletir com artistas que vem especulando sobre as tendências que nosso presente aponta. Nesta pesquisa, buscamos vias que permitam a interlocução entre a filosofia da arte e a produção audiovisual de ficção científica. Afinal de contas, para que a filosofia possa seguir existindo, dando sequência à sua travessia iniciada há mais de 26 séculos, a pré-condição básica é que exista um mundo habitável pelos humanos, os únicos animais que filosofam. É justamente esta existência futura de uma terra propícia à existência de humanos (e de filósofos entre eles) que hoje aparece-nos tão problemática e incerta a ponto de ser “mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, na provocativa expressão de Mark Fisher [11].
Diante da proliferação de obras-de-arte distópicas, dois dos nossos pensadores mais importantes, o antropólogo Viveiros de Castro e a filósofa Débora Danowski, perguntam: “Há Mundo Por Vir?”: “As distopias proliferam; e um certo pânico perplexo (pejorativamente incriminado como ‘catastrofismo’), quando não um entusiasmo algo macabro (recentemente popularizado sob o nome de ‘aceleracionismo’), parecem pairar sobre o espírito do tempo. O famoso no future do movimento punk se vê subitamente revitalizado…” – (DANOWSKI;
VIVEIROS: 2014) [12].
Na mesma direção, outros pensadores desenvolvem suas reflexões transdisciplinares: Isabelle Stengers afirma que vivemos “no tempo das catástrofes” e estamos diante da tarefa de “resistir à barbárie por vir”. Escrevendo após o Furacão Katrina, ela diz que “a catástrofe de New Orleans” não é um episódio isolado, mas sim sintoma de um problema sistêmico: “o que se anuncia não é senão a possibilidade de uma New Orleans em escala planetária” (STENGERS, 2015, p. 13)13. Esta filósofa da ciência, que esteve no Brasil para o crucial seminário Os Mil Nomes de Gaia: Do Antropoceno à Idade da Terra [14], problematiza com maestria a conjuntura que tantos filmes scifi expressam. Por sua vez, Latour identifica desafios e contradições que dificultam a criação de novas “políticas da Natureza” e ativismos eficazes contra o ecocídio (Latour, 2020), enquanto Michel Serres defende a pactuação de um contrato natural em prol da biosfera (Serres, 1995).
O cinema sci-fi, neste contexto, esforça-se para estar em sintonia com a época – tanto que proliferam obras sobre o ecotrauma, conceito que serve de fio condutor para uma coletânea de estudos publicada pela Routledge [15]. Este importante livro revela que o sci-fi fílmico vem realizando vários retratos e especulações acerca das catástrofes sócio-ambientais. Estamos diante de um boom de estudos culturais escritos por pesquisadores engajados na reflexão atual acerca do que Rancière chama de “paradoxos da arte política” (Rancière, 2012).
Se retrocedermos no passado, descobriremos que o cinema interessou a vários filósofos através da história desta nova arte nascida no fim do século 19, com os irmãos Lumière, tendo merecido análises notáveis realizadas por figuras como Deleuze, W. Benjamin, E. Morin, A. Bazin, S. Zizek, E. Traverso, J. Cabrera – dentre outros. Porém, ainda falta um esforço mais sistemático de análise e interpretação do cinema sci-fi em específico, através dos instrumentos conceituais que a filosofia da arte e a estética vieram desenvolvendo. Neste sentido, já estamos acompanhados por notáveis esforços de compreensão das “imagens técnicas” que vem sendo realizadas hoje em dia por figuras como Georges Didi-Huberman, Laymert Garcia, Maria Cristina Franco Ferraz, pelo blog Cinegnose [16], dentre outros e para nos limitarmos aos brasileiros.
Outros pensadores, globo afora, tomam a ficção científica como objeto de reflexões filosóficas: é o caso do filósofo holandês Josef Früchtl, em sua obra The Impertinent Self, em que desenvolve muitos paralelos entre o sci-fi e a obra de Nietzsche [17]. Este autor pondera:
“As a genre, science fiction urges toward the new and the unknown. […] It crosses
the borderline of familiar knowledge. The will to knowledge, the desire to shift
cognitive boundaries, is far more important in the science-fiction genre than in
either of its two fiercest competitors [horror and fantasy]. (…) Film now
gradually seems to have become the Promised Land [for science fiction]. It
apparently places the quest for a New World within its most suitable framework,
the reason being that film is itself able to present (new) worlds better than any
other asthetic medium, due to the illusion of realism that it alone can provide.”
(FRÜCHTL, 2009, p. 191)
A “Terra Prometida” da ficção científica que é o Cinema já possui uma respeitável galeria de obras dignas da atenção e reflexão dos filósofos: são obras de cineastas como Stanley Kubrick (2001; Laranja Mecânica; Dr. Fantástico;), George Lucas (THX 1138, Star Wars), Robert Zemeckis (Trilogia De Volta Para o Futuro, Contato), James Cameron (Avatar), David Cronenberg (A Mosca, Videodrome, eXistenZ), Ridley Scott (Blade Runner, Alien), Fritz Lang (Metropolis), Andrei Tarkovsky (Stalker, Solaris), Nicolas Roeg (The Man Who Fell to Earth), Steven Spielberg (E.T., A Guerra dos Mundos, A.I.), Roger Corman (O Homem com os Olhos de Raio-X), Paul Verhoeven (Robocop, Starship Troopers, Total Recall) etc. Ainda resta muito a fazer sobre a produção sci-fi caudalosa dos contemporâneos.
Trata-se de avaliar as experiências estéticas propiciadas pelas obras, de refletir sobre os processos produtivos das imagens técnicas condensadas nos filmes, além de realizar reflexões éticas, políticas e socioambientais através de uma interlocução com os filmes. Nosso foco é sobretudo questionar a fundo, com o auxílio de grandes pensadores contemporâneos, acerca dos conceitos de utopia e distopia tal como se manifestam nas realizações de grandes cineastas que marcaram o sci-fi. De que maneira os filósofos poderiam nos ajudar na cognição da problemática do “utopismo”/ “distopismo”?
Ainda que o foco de nossa pesquisa seja a interlocução entre a filosofia da arte e o cinema sci-fi, não julgamos possível, pela natureza do tema, que a problemática seja abordada na exclusão de reflexões de teor ético-político. Reflexões acerca dos problemas sócio-ambientais mais graves que vivenciamos atravessam o cinema atual, tanto o de ficção quanto o documentário: o melhor exemplo talvez sejam filmes como O Hospedeiro, Okja e O Expresso do Amanhã, do sul-coreano Bong Joon-Ho, recentemente laureado com importantes prêmios por seu filme mais recente, Parasita [18].
Os três filmes supracitados mostram ativistas ecológicos radicais em confronto com a captura corporativa do commons19 e tematizam o drama daqueles que se levantam contra colossais poderes para bloquear o avanço do ecocídio em escala planetária (Naomi Klein, sobre isto, forjou o conceito de Blokadia, referindo-se a movimentos sociais que lutam por um futuro menos distópico, como o Extinction Rebellion ou o Fridays For Future impulsionado por Greta Thunberg [20]).
Em uma conjuntura onde proliferam catástrofes sócio-ambientais de vasta escala (os nomes de Chernobyl, Bophal e Brumadinho bastam para evocá-las brevemente), os filósofos realmente engajados com os problemas que afligem a biosfera na contemporaneidade não podem ficar alheios aos pensamentos, reflexões, alertas e “visões” veiculadas pelos artistas que com mais vigor tentaram plasmar, em suas obras, representações do nosso porvir. Desejamos averiguar a dualidade utopia / distopia é adequada conceitualmente para a compreensão de tais obras e se as noções de pessimismo e otimismo – representadas, na história da filosofia, por figuras em pólos opostos como Schopenhauer e Cioran (entre os pessimistas) vs Leibniz (que figura como ícone dos otimistas, tendo merecido uma sátira de Voltaire em Cândido) – nos auxiliam na decifração de nossa problemática. Seria o utopismo uma decorrência do otimismo e o distopismo um filho do pessimismo, ou o problema é mais complexo?
Dentro desta polaridade, também emergirá uma discussão entre dois campos antagônicos – os tecnofílicos em confronto com os tecnofóbicos. A tecnologia, que inevitavelmente acaba sendo objeto de juízos estéticos, éticos e políticos que partem dos sujeitos humanos que as produziram e acabam sendo “produzidos” por ela, gera atitudes de filia e de fobia que se expressam claramente nas obras sci-fi mas também em correntes de pensamento. Por exemplo: Maiakóvski e os futuristas russos eram claramente tecnofílicos, enquanto que os anarcoprimitivistas atuais, como John Zerzan, são explicitamente tecnofóbicos, chegando às vezes a se alinhar, na práxis, a ações sabotadoras de máquinas cuja gênese remonta aos Ludistas ingleses [21].
O problema central que se coloca em nosso foco de pesquisa, portanto, é a proliferação de obras-de-arte audiovisuais dentro do campo da ficção científica – que, grosso modo, poderiam ser classificadas entre utopias e distopias (ainda que seja possível pensar em híbridos ou em obras inclassificáveis nesta dicotomia). Desejamos mobilizar, no campo da filosofia da arte, uma ampla atividade de análise, exegese, especulação e diálogo crítico com estas produções da poiésis humana.
Gostaria de exemplificar brevemente a problemática evocando alguns exemplos que apontam para esta polaridade utopia – distopia: uma obra como “O Homem Bicentenário” (1999, diretor: Chris Columbus) baseada em Isaac Asimov, claramente aposta numa utopia de harmonização homem-máquina que chegaria ao ponto de uma pacífica integração entre os humanos (enfim libertados do trabalho braçal e maquínico realizados durante séculos) e os andróides que os servem. O utopismo róseo de Asimov nesta obra representa andróides que progressivamente aprimoram sua inteligência artificial e emocional, a ponto de o robô interpretado por Robin Williams tornar-se cada vez mais humanizado, enquanto os humanos vão se transmutando em algo híbrido (a expressão costumeira usada para definir isto é transhumanismo, vertente que na atualidade pensa sobre a emergência de novos organismos somáticos-digitais) [22]. Um mundo melhor emergiria desta sinergia homem-máquina.
Em contraste, obras como Blade Runner (de R. Scott) e Matrix (das irmãs Wachowski) são muito mais distópicas, revelando o descompasso entre os andróides, robôs e computadores e seus criadores humanos. No filme de Ridley Scott, adaptado do romance de Philip K. Dick (“Andróides Sonham Com Ovelhas Elétricas?”), a distopia está na condenação ao trabalho escravo que pesa sobre os andróides e a dolorosa sensação de mortalidade que os possui por serem criados com “datas de validade”. Já em Matrix, a humanidade inteira foi subjugada pelas máquinas, que utilizam humanos como pilhas e os mantêm presos numa Caverna cibernética de ilusão perene, cabendo ao herói, Neo, a tentativa de libertar a raça humana escravizada diante de suas criações que saíram de
controle. [23]
No decorrer de nosso trabalho, outros exemplos serão analisados – La Belle Verte (de Colline Serreau), por exemplo, é um híbrido de utopia e distopia; enquanto que obras de teor dito “apocalíptico” são explicitamente distópicas: Melancolia de Lars Von Trier, The Road de John Hillcoat e a série Mad Max estão entre os melhores exemplos.
* Colaborar para a intensificação da interlocução entre o campo da filosofia da arte e as produções cinematográficas de ficção científica, de modo a mobilizar uma prática filosófica aberta e atenta às produções artísticas contemporâneas, sobretudo aquelas que se dedicam à representação e à especulação sobre o porvir. Parte substancial de nosso foco de análise e discussão serão obras cinematográficas produzidas no século 21 e que lidam com os temas da utopia e da distopia. São elas as principais obras sob análise:
SÉRIES: Black Mirror, Westworld (da obra de Michael Crichton), The Handmaid’s Tale (inspirada em romances de Margareth Atwood); Biohackers; Raised By Wolves; Futurama; Prophets of Science Fiction; Lovecraft County; 3%; Love, Death and Robots; Mr. Robot; Watchmen; Snowpiercer – O Expresso do Amanhã etc.
FILMES: Snowpiercer – Expresso do Amanhã, The Host e Okja (de Bong Joon-Ho), ,
Distrito 9, Elysium e Chappie (de Neil Blomkamp), Children of Men e Gravity (de Alfonso Cuarón), Interestelar (de C. Nolan), Blade Runner 2049 (de D. Villeneuve), O Congresso Futurista (de Ari Forman, baseado da obra de Stanislaw Lem), Ex-Machina e Aniquilação (Alex Garland), Ad Astra (J. Gray), Johnny Mnemonic (de R. Longo, 1995, da obra de William Gibson), New Rose Hotel (de Abel Ferrara, também da obra de Gibson), Jogos Vorazes (Hunger Games, da obra de Suzanne Collins), trilogia Divergente (da obra de Veronica Roth); V de Vingança (de J. McTeigue,
da obra de Alan Moore); The Aerial (La Antena) (de Esteban Sapir – Argentina, 2007); Her (de Spike Jonze); Transcendence (de Wally Pfister) etc.
* Estabelecer espaços amplos de diálogo entre a filosofia da arte e o campo da ética e da política, já que os valores e os fins, sejam eles a beleza, o bem-viver ou a comunidade justa, são temas afins que colocam ao filósofo a necessidade de pensar sobre as ferramentas e os meios necessários à concretização ou realização destes valores e fins. O objetivo não é abordar filmes sci-fi com uma
postura típica dos que acreditam na arte pela arte, mas sim abordar a arte como uma produção social complexa, envolvida em lutas ideológicas e antagonismos de classe, que expressa a capacidade projetiva e poiética humano em um determinado estágio de sua travessia históricocultural. Em nossa concepção, a estética não se separa da ética nem da política, de modo que nosso intento é fortalecer as pontes de conexão e confluência que possam unir a filosofia da arte à ética e à política num significativo esforço de extrair alguns ensinamentos essenciais sobre a prodigiosa e vasta produção do sci-fi contemporâneo.
* Utopia e distopia são ferramentas conceituais importantes para a empreitada de uma reflexão comum que envolva os filósofos e os artistas sci-fi. São conceitos compartilhados, que mobilizam o pensamento em várias áreas das ciências humanas e das artes – sendo que na filosofia também tem forte presença. Os conceitos de utopia e distopia marcam importantes obras de teor filosófico que
atravessam a História: sobretudo Platão é lembrado como um “utopista” avant la lettre por obras como A República (Politeia), exploração de Sócrates e seus interlocutores acerca da cidade ideal (cuja constituição Platão delineia em As Leis), ou o Crítias (onde está contida a mítica representação platônica de Atlântida). A palavra utopia emerge de fato no humanismo renascentista
com a publicação, em 1516, d’A Utopia de Thomas More, obra que denega os limites traçados entre a filosofia e a literatura. Mas podemos citar ainda importantes obras “utópicas” como Nova Atlântida de Francis Bacon e Cidade do Sol de Campanella.
Já no contexto da filosofia européia no séc. XIX, emerge um grande debate entre os chamados socialistas utópicos (Fourier, Owen, Saint Simon etc.) e o socialismo dito científico fundado por Marx e Engels. A obra de William Morris, News From Nowhere (Notícias de Lugar Nenhum), recentemente publicada no Brasil pela Expressão Popular e Perseu Abramo (2019), é um dos melhores exemplares de romance utópico socialista que vai beber na fonte dos movimentos revolucionários nascidos a partir do materialismo histórico-dialético.
No Brasil do século XX, tivemos ainda as contribuições valorosas de um artista-filósofo como Oswald de Andrade (sobretudo na obra A Utopia Antropofágica), influência determinante não apenas para o Modernismo dos anos 1920, mas também para a Tropicália e o Teatro Oficina.
Nossa hipótese central é a de que a produção cinematográfica de sci-fi pode ser abordada, analisada, discutida e ter seus múltiplos sentidos esclarecidos e debatidos pelo filósofo munido de sua própria fortuna crítica que envolve a travessia histórica da utopia e de sua gêmea má, a distopia.
* Na mesma galáxia conceitual, há outra hipótese de teor ético-político que se manifesta em várias das obras sci-fi que nos propomos a analisar: o conceito de húbris – a desmedida, o excesso vicioso, a falta de temperança, o colapso da prudência e do bom senso, dentre outras traduções possíveis. Sobretudo no que diz respeito às distopias, a húbris parece de fundamental importância na leitura de
obras que muitas vezes servem como cautionary tales (contos que ensinam prudência) sobre os perigos e riscos implicados na desmesura humana. Múltiplas relações podem ser estabelecidas entre grandes artistas sci-fi e pensadores da húbris como Hans Jonas, Günther Anders, Michel Serres, Viveiros e Danowski, dentre outros.
* Os conceitos de Gaia e de Prometeu – evocando figuras da mitologia grega – também se destacam no debate atual. A noção contemporânea de Gaia remete às obras James Lovelock [24] e tomou centralidade em vários debates contemporâneos focados na questão ecológica / socioambiental, a exemplo da “intrusão de Gaia na História” de que fala Stengers. Já o mito de Prometeu, que Mary Shelley reativa na criação de seu Franskenstein (provavelmente a primeira obra-prima do sci-fi em sua história), é central na obra de Hans Jonas, que frequentemente evoca, em O Princípio Responsabilidade, a figura de Prometeu Desacorrentado. Outra de nossas hipóteses, a verificar, presume que as noções de Prometeu livre de correntes e de irrupção de Gaia atuam como conceitos muito próximos daquilo que determina a narrativa e a poiésis fílmica de grandes filmes sci-fi. Trata-se da hipótese suplementar – mas coligada – de que os mitos gregos não são fósseis de mero valor histórico, mas símbolos vivos que ganham fluidez e plasticidade em novos contextos: Goethe, Mary Shelley e Rubens, para citarmos apenas três exemplos de artistas que se expressam em três linguagens díspares (a poesia, o romance, a pintura) souberam “renovar” o mito de Prometeu, projetando nele suas próprias preocupações com o devir humano (figuras como Dr. Fausto e Dr. Franskentein nascem desta conjuntura).
Gaia, a deusa grega que é hoje presença constante no debate de ecologistas, antropólogos, sociólogos, além de ativistas em prol da justiça ambiental, designa uma espécie de conceito científico forjado no diálogo com a tradição mítica. Uma de nossas hipóteses de trabalho é a de que parte da produção sci-fi audiovisual pode ser pensada a partir das relações humanos-Gaia. Sobre tal hipótese, frisamos que caminhos foram abertos em profusão por Alyne Costa, premiada pela
CAPES em 2020 como melhor tese de doutorado na área de filosofia25, sem nos esquecermos de Viveiros e Danowski:
“Se Gaia também é um mundo vivo e plural, (…) não se trata, porém, de um mundo
harmonioso e equilibrado, e muito menos dependente, para sua persistência, da
exclusão da humanidade, como se esta fosse um invasor extraterrestre chegado
para estragar um idílio pastoril. (…) Gaia é antes de mais nada feita de história, ela
é história materializada, uma sequência contingente e tumultuária de eventos… Na
concepção de Bruno Latour, é menos a história humana que vem se fundir
inesperadamente com a geohistória, mas sim a Terra-Gaia que se torna
historicizada, narrativizada como história humana – compartilhando com esta,
aliás, e a ressalva é essencial, a ausência de qualquer intervenção de uma
Providência. Resta saber quem é o demos de Gaia, o povo que se sente reunido e
convocado por esta entidade, e quem é seu inimigo.” (CASTRO; DANOWSKI
(2014, p. 120.)
A situação das pesquisas que envolvem a filosofia da arte diante da produção sci-fi é de muita efervescência, a começar pelos estudos nietzschianos. Segundo Früchtl (2009), um dos temas principais da ficção científica seria a criação do “artificial human” (p. 190) – andróide, cyborgue, robô ou mutante. Ou seja, a produção de uma criatura com algumas das mais importantes aptidões humanas, mas possuindo algumas potencialidades extras. Percebe-se que a sci-fi tem, como um de seus atributos, uma meditação sobre o futuro dentro da qual a questão da transformação do humano é central. Aí se encontra um bom ponto de partida para inserir Nietzsche na discussão, já que este filósofo sempre insistiu na necessidade de reinserir o homem no fluxo temporal heraclitiano: longe de estar condenado à fixidez, o Homem é uma criatura necessariamente móvel e metamorfoseante.
“Tudo flui”, inclusive o humano, no entanto “o pecado hereditário dos filósofos”, como sustenta Nietzsche, é a “falta de senso histórico”: a mania de lidar com o homem como se este possuísse uma essência eterna e imutável, que o tivesse acompanhado desde sair pronto das mãos do Criador [26].
Em Nietzsche, não há nada de imutável no Homem, na Terra ou no Cosmos: tudo flui em direção a um futuro desconhecido onde sabemos que nos defrontaremos com o novo, o estranho, o inaudito. A figura heróica forjada pela criatividade nietzschiana, protótipo de herói para uma era sem deuses,consiste num chamado para que não nos resignemos à estagnação ao que somos hoje: que o homem considere-se não como um ponto-de-chegada, mas como uma ponte; não como
produto finalizado, mas como um perpétuo vir-a-ser; não como imutável, mas como mutante.
De acordo com Früchtl (op cit), Nietzsche mobilizaria conceitos e metáforas que agem de maneira similar aos conceitos da ficção científica especulativa e “visionária”: este filósofo visa empreender uma tarefa hercúlea, a de criar “Heróis em uma era sem Deus” [27]. “For him, as for most of his contemporaries, loss of faith and a worshipping of heroes go hand in hand”, escreve Früchtl
(op cit, p. 183). Um filme como Matrix, como Früchtl aponta, não é autenticamente nietzschiano – a obra das irmãs Wachowski é ainda prisioneira de um dualismo metafísico, herdeiro do platonismo, em que há uma cisão entre duas “dimensões”: um mundo aparente, tido por ilusório e insubstancial, criado pelas máquinas que escravizam o gênero humano, e um mundo real, uma espécie de “exterior” da Caverna Digital chamada Matrix. Deste modo, a visão-de-mundo nietzschiana não se encontra bem ilustrada pela obra, que melhor serviria como encenação fílmica, em um cenário hi-tech, na Era da cibercultura, do velho Mito da Caverna de Platão. Tanto Matrix quanto o Mito platônico fundam-se no que Früchtl chama de “uma forma binária de metafísica que encontrou um equivalente cultural poderoso na religião cristã” (op cit, pg. 213).
Já a filosofia nietzschiana, em radical ruptura com a tradição metafísica platônica-cristã, sustenta a necessidade de superar esta ruptura dualista, maniqueísta e binária em todos os domínios: na metafísica (não somos mais prisioneiros acorrentados a um Mundo de miragens, sonhando com uma dimensão de plena liberdade e eternidade), na epistemologia (não mais a oposição coisa-em-si e fenômento de Kant), na ética (ir “além do Bem e do Mal”). Como aponta Früchtl, Nietzsche via com muita suspeita a mania de pensar em termos de opostos pois considerava que “opposites characterize metaphysical thinking” (op cit, p. 178).
Uma ilustração mais eloquente para a filosofia nietzschiana pode ser encontrada em Blade Runner, de Ridley Scott, em especial na cena em que criatura e criador se encontram para um duelo fatal: não se trata do encontro de um humano com uma divindade; trata-se do primeiro encontro do Replicante (interpretado por Rutger Hauer) com o cientista Tyrell que o concebeu e concretizou.
Não é um encontro amigável, nem com desfecho feliz: o replicante pune seu Criador por ter criado uma criatura com um defeito de fabricação tão elementar – a mortalidade, ou o prazo de validade limitado. O replicante exige mais vida, incapaz de se resignar ao apagamento de sua consciência. Esta cena em que a criatura (andróide) se insurge contra seu criador (humano) merece a designação
de trágica e têm toda uma ressonância nietzschiana: o próprio Nietzsche, em uma revolta similar contra a ideia judaico-cristã de Criador, também intenta um atentado similar. Este filósofo não deseja mais o Homem submetido à subserviência diante de uma ideia criada pelo próprio Homem, manipulada por sacerdotes ascéticos e pastores de rebanhos; o futuro da humanidade, a superação deste triste estágio da jornada humana, tão marcada por desalento e niilismo, fanatismo e ilusão, exige de fato a emergência de novos mitos (ainda que se inspirem no dionisismo clássico) e de uma renovada concepção sobre o Tempo (o Eterno Retorno).
Muitas tentativas já foram realizadas no sentido de unir a reflexão filosófica e a produção artística sci-fi contemporânea: outro exemplo é 2001 – Uma Odisséia no Espaço, que pode ser iluminado através da mitologia Nietzschiana veiculada pelo Zaratustra, como afirma Michel Ciment a partir de suas Conversas com Kubrick: “tanto o poema sinfônico Assim Falou Zaratustra de Richard Strauss quanto o filme de Kubrick, outro poema sinfônico, são uma ilustração da visão nietzschiana. 2001 propõe a mesma progressão que há em Nietzsche, a passagem do macaco ao homem e depois do homem ao super-homem (“O que é o macaco para o homem? Uma derrisão ou uma dolorosa vergonha. E o que é deve ser o homem para o super-homem: uma derrisão ou uma dolorosa vergonha.”) O feto que aparece no fim e forma como que um segundo globo diante da Terra, esse novo ser às portas de uma nova aurora, é a expressão de um eterno retorno.” (CIMENT:
2003, p. 94)
Esta nietzschiana mutação da natureza humana é um tema recorrente em outras obras que poderiam ser classificadas como ficção científica, ou ao menos se utilizam de elementos desta. Lembremos, por exemplo, que em Laranja Mecânica, romance de Anthony Burgess adaptado para o cinema por Kubrick, o protagonista Alex é selecionado para ser “curado” pelo programa Ludovico. Este pretende eliminar o reflexo criminoso através de algo semelhante ao que Huxley
chamava de “condicionamento neopavloviano”: tornar-se cobaia de um experimento do governo voltado a transformá-lo de um criminoso cheio de vícios em um cidadão-de-bem. Eis aí um exemplo indicativo de que as produções artísticas classificadas de praxe com o rótulo de sci-fi encerram também muito material digno de estudo e compreensão pelos filósofos políticos: um exemplo são os autores que questionam a constituição de Estados ditos totalitários
(Orwell, Huxley, Zamiátin) através da imaginação de sociedades futuras onde uma certa utopia tenta instalar-se de maneira autoritária.
O filósofo romeno Emil Cioran, em História e Utopia, estabelece uma crítica do “utopismo” que tem vários pontos de contato com muitas das denúncias
vinculadas por mestres do sci-fi:
“Lembremos que utopia significa em parte alguma. E de onde seriam essas cidades que o mal não toca, onde se glorifica o trabalho e onde ninguém teme a morte? Nelas nos vemos obrigados a uma felicidade feita de idílios geométricos, de êxtases regulamentados, de mil maravilhas repugnantes: assim se apresenta
necessariamente o espetáculo de um mundo perfeito, de um mundo fabricado. (…)
O que mais impressiona nos escritos utópicos é a ausência de perspicácia, de
instinto psicológico. Os personagens são autômatos, ficções ou símbolos: nenhum é verdadeiro, nenhum ultrapassa sua condição de fantoche… No ‘estado associado’
de Fourier, as crianças são tão puras que até ignoram a tentação de roubar, de
‘pegar uma maçã numa árvore’. Mas uma criança que não rouba não é uma criança. Que sentido tem formar uma sociedade de marionetes? Recomendo a descrição do Falanstério como o mais eficaz dos vomitivos. (CIORAN: História e Utopia, 2011, p. 92 – 95)
O notório pessimista Cioran, seguindo nas pegadas de Schopenhauer e de Diógenes de Sínope, enxerga na literatura utópica uma galeria de miopias e tolices, fantasias irrealizáveis onde o mal foi vencido e todos os seres humanos vivem em feliz concórdia: “aí as trevas estão proibidas, só a luz é admitida. (…) Hostil à anomalia, ao disforme, ao irregular, tende para o fortalecimento do homogêneo, do modelo, da repetição e da ortodoxia. Mas a vida é ruptura, heresia, abolição das
normas da matéria.” (CIORAN, op cit)
Por muitos séculos a mitologia e a metafísica não foram ramos isolados de modo estanque da filosofia. Filósofos com frequência criaram mitos (a Caverna, o Anel de Giges, a Atlântida submersa no interior da obra platônica, o Além-do-Homem [übermensch] nietzschiano sendo alguns dos exemplos mais célebres). Filósofos forjam hipóteses sobre o passado há muito transcorrido ou acerca do futuro mais distante. Também especulam audaciosamente sobre assuntos sobre os quais a ciência prefere se calar. Muitos conceitos filosóficos, não sendo passíveis de
comprovação científica ou empírica, produtos de aptidões da mente humana que vão bem além da mera racionalidade (como a fabulação, a especulação, a formulação de hipóteses metafísicas), seriam, de direito, classificáveis como similares a procedimentos da ficção científica. Além disso, é preciso frisar que os próprios autores de romances sci-fi muitas vezes realizam obras teóricas,
especulativas, de não-ficção, destinadas a pensar os problemas com os quais lidam em suas narrativas.
Um excelente exemplo é o polonês Stanislaw Lem, autor do romance sci-fi Solaris (já adaptado ao cinema por Tarkovsky e, décadas depois, por Soderbergh). Lem é também um filósofo que merece atenção, sobretudo por sua teoria da evolução em que evita cindir o biológico e o técnico. Em Nova Cosmogonia, Lem trabalha com um paralelismo entre a evolução biológica e a tecnológica: “A primeira diferença entre nossas duas evoluções é genética e refere-se à questão das
forças causadoras. A ‘causadora’ da bioevolução é a Natureza, e a da evolução tecnológica, o homem.” (LEM: 2019, pg. 28)
Lem afirmará que a Natureza, causadora da bioevolução, cria usando como um de seus métodos a destruição. Na verdade, a bioevolução “é um modo perdulário de invenção”: “ao longo de milhões de anos, o processo da bioevolução e suas práticas empíricas custaram hecatombes de vítimas – hecatombes enfrentadas sempre quando as condições de vida mudavam -, que se verificaram como ‘soluções falsas’ do problema da manutenção da vida.” (op cit, p. 38)
A bioevolução é dita “perdulária” pois desperdiça muito, destrói muito, joga um jogo de tentativa e erro que atravessa os milênios, um jogo, aliás, com mais perdedores do que vencedores, mais vítimas que sobreviventes. Muitas espécies chegaram a um beco-de-saída e foram extintas. Mudanças climáticas e ambientais extremas levaram vários organismos a perecerem para sempre, quase sem deixar vestígios para além de alguns fragmentos de ossos enterrados nas profundezas das rochas.
Não se deve superestimar a ‘sabedoria’ da evolução biológica, já que muitas vezes levou espécies inteiras a um beco sem saída, e repetiu não só soluções vantajosas como também erros perniciosos. A sabedoria da evolução é empírica e imediata, e sua aparente perfeição ela deve à imensidão dos abismos de tempo e espaço que atravessou, em que, no entanto, encontraríamos mais derrotas do que sucessos caso tentássemos fazer um balanço. (LEM, op cit, p. 40)
Na comparação com a bioevolução, a tecnoevolução aparece a Lem como estando, no tempo presente em que escreve, em estágio de aceleração. Ou seja, muito capital estava sendo investido na aceleração de processos tecnológicos avançados – “os norte-americanos resolveram investir 20 bilhões de dólares no pouso dos seus primeiros homens na Lua, em 1969. Se eles estivessem
dispostos a adiar esse prazo por 20 anos, a realização do Programa Apollo iria certamente custa bem menos, porque a tecnologia primitiva consome, por ser jovem, recursos desproporcionalmente maiores em relação aos que seriam necessários para a execução de projeto análogo quando ela atinge fase mais adulta…” (LEM, op cit, p. 46)
Além de Lem, podemos citar as especulações sobre o futuro, a partir das tendências que enxergava em seu presente, de Vilém Flusser. Ele viu com clareza que caminhávamos para um mundo onde os humanos estariam progressivamente debruçados sobre telas e agindo principalmente através da ponta de seus dedos tateando em busca dos contatos com as teclas:
“As teclas estão em toda parte: interruptores iluminam o quarto com rapidez de relâmpago; caixas se abrem imediatamente ao apertarmos um botão; o motor do carro se põe a funcionar instantaneamente ao virarmos a chave; a câmera fotográfica toma fotografias logo que apertemos a sua tecla… Ao apertarmos um botão, montanhas explodem, e, ao apertar o botão vermelho, o presidente americano pode terminar com a vida humana na Terra… As pontas dos nossos dedos são feiticeiros que embaralham o universo. (p. 35-36)
Portanto, há toda uma produção filosófica contemporânea que está atenta às mutações que estão incidindo sobre nossos corpos e subjetividades por efeito das novas tecnologias. Se considerarmos ainda as intervenções técnicas sobre corações e mentes em sentido amplo, podemos conceber interessantes pontes de contato entre áreas aparentemente díspares: evocamos aqui a abertura de um horizonte, que queremos explorar mais a fundo, de interlocução possível entre a
Teoria Queer, que tem em Paul Beatriz Preciado um de seus mais importantes pensadores, e as reflexões de Vilém Flusser (sobretudo em obras como O Universo da Imagens Técnicas) e Régis Débray (criador da Midialogia).
Para Preciado, as tecnologias farmacopornográficas – a pílula anticoncepcional, o Viagra, a testosterona em gel, os preservativos em látex, as cirurgias de redesign de gênero – abrem aos sujeitos novas possibilidades de devires identitários inéditos. Para Flusser, a aventura futura da humanidade terá a ver com a assunção de uma atitude criativa, artística e poética diante das imagens técnicas e das próteses (inclusive chips cerebrais) que devemos não apenas consumir como zumbis, mas criar e recriar com nossas capacidades de sintetizar informações novas a partir das informações disponíveis.
Ora, a arte, sobretudo aquela identificada com o sci-fi, mas também vertentes mais próximas seja do fantástico, seja do horripiliante, tem explorado em profundidade este devir-outro do sujeito diante das novas mídias e novas tecnologias – o implante de memórias ou microchips no cérebro humano é um dos temas recorrentes, dos andróides com lembranças artificiais de Blade Runner,
passando pelo membro biônico de Luke Skywalker em Stars Wars, chegando às atividade da corporação Lacuna que fornece o serviço de “deletamento” de traumas em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças.
Ao propor que a técnica de produção do gênero, através de novas tecnologias
farmacológicas e protéticas, performa tecnicamente horizontes inauditos de expressão sexualafetiva, permitindo os devires-trans e a polifonia do sexo para além do binarismo reinante, Preciado está atento às mutações somático-subjetivas implicadas pelo mundo emergente, repleto de tecnologias de produção de subjetividade baseadas na digitalidade, na hiperconexão e na artificialização de nossos corpos:
“Cada geração precisa inventar sua própria ética em relação às suas tecnologias de produção de subjetividade, e, caso não o faça, como advertia Hannah Arendt, corre o risco do totalitarismo – não por malícia, mas por simples estupidez. Assim como os sistemas teológico-políticos apoiaram suas formas de controle na prevalência do livro único, nossas sociedades digitais correm hoje o risco de deslizar para uma forma de totalitarismo do software único, uma espécie de ontoteologia digital. Os aplicativos disponíveis na Google Play ou na Apple Store são os novos operadores da subjetividade. Lembre-se então de que, quando você baixa um aplicativo, ele não está sendo instalado em seu computador ou em seu celular, mas em seu aparato cognitivo.” (PRECIADO, 2020, p. 86) [28]
Caso pensemos que os videogames são também produções técnicas destinadas a produzir uma imersão do jogador em um ambiente virtual interativo, produtos do artifício humano que desejam capturar os sujeitos para um mergulho na stésis cibernética que o jogo propõe, estaremos prontos para levar a sério a tarefa do filósofo atual de compreender as mutações subjetivas envolvidas aí. Pensadores como David Le Breton, no texto “Deslizar no infinito do virtual”, já se debruçam sobre isto, sondando os mistérios psicológicos envolvidos na adicção à Internet e em fenômenos como o vício de usuários de Second Life (LE BRETON, 2008, p. 97 – 103).
A dissociação entre a pessoa concreta, de carne-e-osso, envolvida em relações presenciais, e seu alter ego, representado por um avatar e por um username (pseudônimo) nas redes, tende também a intensificar fenômenos novos de personalidades múltiplas, numa certa confusão psíquica que aflige o sujeito contemporâneo. Este, não mais perdido unicamente na selva de pedra das
cidades, agora perde-se no labirinto das imagens – “David Lynch fez da temática o suporte de filmes clássicos intemporais como Estrada Perdida (1997) ou Cidade dos Sonhos (2001)” (LE BRETON, p. 75)
Também podemos abordar a problemática através do Réquiem Para um Sonho, de Aronofsky adaptando romance de H. Shelby, em que o vício toxicômano tradicional é posto em paralelismo com o vício “videodrômico” (para evocar um filme sci-fi notável de Cronenberg que aborda problemática similar).
No Brasil, um dos mais importantes filósofos a debater com a produção de ficção científica foi Álvaro Vieira Pinto nos dois volumes de O Conceito de Tecnologia. Partindo de uma perspectiva que valoriza a consciência crítica que supera a consciência ingênua, Vieira Pinto discorda tanto do catastrofismo dos profetas do apocalipse quanto das róseas pinturas de uma idílica utopia tecnocientífica.
Sobre os catastrofistas, lança argumentos como:
“Se a era da aviação fosse anunciada tão somente em termos de profecias calamitosas, mencionando apenas o número de desastres aéreos que viriam efetivamente a ocorrer, os contemporâneos seriam tomados de horror diante da entrada em funcionamento das primeiras máquinas voantes, embora na verdade representassem em conjunto um imenso benefício para a humanidade.” (VIEIRA PINTO: 2005, p. 91)
Deste modo, o autor alerta que algumas distopias catastrofistas podem espalhar o temor ou a inércia, colaborando com uma certa “tecnofobia” – tendência que se manifesta hoje em correntes de pensamento e práxis como o anarcoprimitivismo (cf. John Zerzan), o decrescimento econômico (cf. Serge Latouche) ou o chamado “catastrofismo esclarecido” (contra os quais um autor como Pascal Bruckner se insurgiu em sua obra Le Fanatisme Du Apocalypse).
Por outro lado, aponta Vieira Pinto, há um subproduto literário, de fabricação lucrativa, denominado ‘ficção científica’… que exalta o papel dos artefatos mecânicos e elétricos na transformação do mundo onde os homens vivem ou irão viver, dando-lhes possibilidades inauditas de conforto, locomoção, prolongamento da vida, realizações culturais, etc., insuspeitadas no passado… Na perspectiva filosófica, o essencial de tais romances consiste em fazer crer que a criação das
máquinas, por si só, altera as formas de convivência entre os homens. Tal é razão pela qual este gênero literário se reveste de nítido sentido ideológico… Oculta-se ao leitor o processo social de que deverão surgir estas maravilhas mecânicas… (VIEIRA PINTO, 2005, p. 87)
A pesquisa atual sobre o tema do sci-fi é multifacetada e complexa. Coloca em cena a batalha entre tecnofilia e tecnofobia, instiga a velha querela entre otimistas e pessimistas, acende o debate público sobre os rumos do progresso técnico-científico e suas consequências estéticas, éticas, políticas, cognitivas, civilizacionais. A produção de obras sci-fi precisa ser analisada com bisturi
crítico, percepção genealógica e atenção redobrada aos aspectos ideológicos que possa conter.
Como alerta Vieira Pinto, várias produções do gênero, em especial as mais “caça-níqueis”, podem acabar servindo como máquinas de disseminação, via indústria cultural 4.0, da ideologia tecnocrática lançada para a era dos super-heróis como o Homem de Ferro (The Iron Man) ou a extremamente lucrativa série de filmes Os Vingadores. Em contraste, toda uma perturbadora produção sci-fi distópica procura agir através da representação de futuros possíveis que possam agir sobre nosso presente: prefigurando um mundo infernal, performam no mundo atual uma espécie de terapia radical em que inoculam um remédio informacional em nossas mentes – como os cautionary tales de outrora, soam os alarmes contra
rumos e tendências equivocadas de nosso presente através de suas sombrias pré-figurações, agindo assim, no presente, através de uma ação simbólica e comunicacional que pode gerar efeitos concretos.
Partindo de uma reflexão filosófica acerca da capacidade de projeção no futuro de que os humanos são dotados, iremos investigar como se manifestam, em várias obras fílmicas, as representações utópicas e distópicas, averiguando em que medida tais obras contribuem para um incremento de sabedoria acerca desta nova época – o Antropoceno – em que vivenciamos o Prometeu desacorrentado da tecnociência triunfante e o cada vez mais forte surgimento da “intrusão
de Gaia na história”.
Partindo de conceitos como política prefigurativa e de linguagem performativa, hoje bastante utilizadas em pesquisas nas ciências humanas, tentaremos sondar de que maneiras as fantasias utópicas e as profecias catastróficas/apocalípticas podem agir sobre nosso mundo através destas representações de um porvir artisticamente prefigurado e massivamente distribuído através dos aparatos técnicos que hoje possuímos. Em outras palavras, trata-se de sondar a importância social e histórica da arte, em específico do sci-fi audiovisual, sobre a conjuntura dos atualmente vivos aos quais se descortina, cada vez mais, a responsabilidade diante das futuras gerações de seres sencientes diante do porvir ameaçado da biosfera.
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Publicado em: 06/03/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia