“Não há um único homem sob a abóbada celeste que não saiba que a escravidão é errada para si mesmo.” – Frederick Douglass
“Frederick Douglass é um dos homens cuja trajetória pode ser classificada como uma das mais impressionantes da história mundial.” – Silvio Almeida
Se a escravidão tivesse ficado para a História, confinada ao passado, reduzida a mero item de museu, a ser eventualmente revivida e relembrada em obras de historiadores ou em épicos cinematográficos (como o clássico de Stanley Kubrick Spartacus), teríamos algo a celebrar, por mais execrável que tenha sido a persistência de tal instituição horrenda através dos séculos. Teríamos aposentado algo de hediondo, colocado fora de circulação um horror extremo.
Execravelmente, no entanto, a escravidão prossegue fortemente presente no mundo atual: segundo dados da ONU, citados pelo cineasta Steve McQueen ao receber o Oscar de Melhor Filme por 12 Years a Slave (premiada adaptação do livro de Solomon Northup), ainda existem cerca de 21 milhões de pessoas que hoje vivem em regime de escravidão (leia a reportagem da BBC). China, Nigéria, Paquistão e Índia são os 4 países com maior número de pessoas oprimidas sob regimes de trabalho forçado.
No entanto, engana-se quem pensa que no Brasil este problema não existe. Basta assistir ao perturbador documentário Nas Terras do Bem-Virá (2007, 110 min), de Alexandre Rampazzo, para descobrir a chocante realidade da escravidão na Amazônia: ali, “anualmente são destruídos centenas de milhares de hectares de floresta. Para realizar este desmatamento, são utilizados milhares de trabalhadores em regime de escravidão, aliciados principalmente nas cidades pobres do nordeste.”
Uma das mais memoráveis teses de Walter Benjamin afirma que “todo monumento da civilização é um monumento da barbárie”. Para compreender o que Benjamin queria dizer com esta provocativa e profunda formulação, é só pensar, por exemplo, na conexão umbilical entre o florescimento artístico e intelectual do mundo greco-romano e o sistema econômico calcado no escravismo.
Todas as elevadíssimas e grandiosas construções culturais – como estátuas lindamente esculpidas, edifícios belamente arquitetados, obras de filosofia e poesia compostas com todo o esmero… – vinham à luz em uma sociedade escravocrata e elitista, cujo status quo era defendido desavergonhadamente até por filósofos, poetas e literatos que hoje carregam auras de reputação gloriosa. O próprio Platão, por exemplo, era dono de escravos; e Aristóteles, preceptor de Alexandre o Grande, já inicia seu livro dedicado à Política em um tom escravocrata, machista e patriarcal:
“Alguns seres, ao nascer, se veem destinados a obedecer; outros, a mandar. (…) O macho é mais perfeito e governa; a fêmea o é menos, e obedece. (…) Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens no qual o emprego da força física é o melhor que deles se obtém. Partindo dos nossos princípios, tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão; porque, para eles, nada é mais fácil do que obedecer. (…) A utilidade dos escravos é mais ou menos a mesma dos animais domésticos: ajudam-nos com sua força física em nossas necessidades cotidianas. (…) O escravo é completamente privado da faculdade de querer; a mulher a tem, mas fraca; a do filho é incompleta…”
ARISTÓTELES. Política.
Trad. Nestor Silveira Chaves.
Ed. Saraiva de Bolso, Livro I, Capítulo 2 e 4, pgs. 26, 27 e 42.
Como antídoto contra argumentos tão vis quanto estes que Aristóteles sustenta em sua Política, provindos de uma tão alta autoridade filosófica, em defesa do escravagismo, é crucial ler a obra e conhecer a vida desta figura histórica tão significativa que foi Frederick Douglass (1818-1895).
Para um retrato autêntico da experiência-de-vida concreta de escravos e senhores, de escravizados e escravizadores, o discurso frequentemente abstrato, generalista e descarnado dos filósofos faz bem em deixar-se informar e iluminar por obras que carregam e comunicam a vida em carne-e-osso: caso de Os Danados Da Terra (The Wretched of The Earth), de Franz Fanon, Os Jacobinos Negros – Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos, de C. L. R. James, ou os escritos autobiográficos de Frederick Douglass.
Publicado em 1845, a clássica autobiografia Narrative of the Life of Frederick Douglass, An American Slave retrata de modo vívido e memorável a situação dos escravos nos EUA na época que precedeu à Guerra Civil (1861-1865).
O livro exala a autenticidade que só é capaz de atingir alguém que narra algo que vivenciou em sua carne torturada pelo labor, pelo cansaço, pela fome, pelo desconforto, pela constante opressão. Douglass conta-nos sobre experiências que carrega marcadas indelevelmente em sua memória pois são indissociáveis das cicatrizes deixadas em seu corpo pelo chicote de seus senhores. Sua prosa derrama-se na página como que inflamada pelo fervor da indignação.
A eloquência de Douglass empresta boa parte de sua chama de uma revolta contra esta instituição abominável da escravidão, que reduz uma parcela da humanidade ao status de bestas-de-carga. Os comerciantes de carne humana são descritos em toda a diversidade de suas ações desumanas, cruéis e sádicas pela pena libertária de Frederick Douglass, cujo discurso tem um teor e um sabor bem assemelhado àquele que posteriormente teriam figuras como Malcolm X, Martin Luther King e Angela Davis.
Douglass nasceu escravo no estado sulista de Maryland, filho de uma escrava negra e um senhor branco. Logo no primeiro capítulo, descreve uma das desumanizações impostas à criança nascida em regime de escravidão: o recém-nascido é logo separado de sua mãe e Douglass relata que a convivência afetuosa entre a mãe e sua cria não era permitida aos escravos.
Ele só encontrou-se com a mãe 4 ou 5 vezes durante a vida; ao tornar-se órfão aos sete anos de idade, Douglass relembra com impressionante sinceridade seus sentimentos diante do falecimento desta mulher que os senhores haviam-no impedido de conhecer e amar como seria natural:
“I was not allowed to be present during her illness, at her death, or burial. She was gone long before I knew any thing about it. Never having enjoyed, to any considerable extent, her soothing presence, her tender and watchful care, I received the tidings of her death with much the same emotions I should have probably felt at the death of a stranger.” (CHAPTER I, p. 19)
Descrevendo o trabalho nas plantações, Douglass relembra da abundância de frutas nos pomares, constantes tentações para aqueles obrigados a trabalhar esfomeados e subnutridos na colheita. Com frequência, não podendo resistir à tentação, os escravos devoravam uma maçã aqui, uma laranja acolá, crime pelo qual eram severamente punidos pelos senhores-chicoteadores: “Scarcely a day passed, during the summer, but that some slave had to take the lash for stealing fruit.” (III, p. 29)
Em um episódio perturbador do livro, Douglass descreve os tormentos sofridos em comum pelos escravos sob o jugo de um certo Mr. Gore (que nome apropriado!). Este branquelo sangue-nos-olhos trabalha na função de overseer, ou seja, é o responsável pela vigilância e pela imposição da disciplinada à “negada” que labuta nos campos. Na hierarquia social, Mr. Gore não é nem elite, nem base – é classe média. Mas é aquele tipo de classe média que quer subir na pirâmide social, galgar degraus na escada do poder, e por isto é servil aos interesses da elite – no caso, os latifundiários escravocratas e lords do agrobusiness. Enfim, Mr. Gore é aquele tipo de fascista torturador que justifica seus crimes dizendo: “eu estava somente seguindo ordens”. O III Reich alemão estava repleto destas figuras: funcionários e burocratas que participam de atrocidades e defendem-se depois com o argumento da servilidade, como o Eichmann tão bem descrito pelo livro-reportagem Hannah Arendt sobre o julgamento do nazista em Jerusalém (Eichmann em Jerusalém).
Mr. Gore aparece aos olhos dos negros que foram sequestrados e roubados de seus lares da África, para serem escravizados nos Estados Unidos da América, como um demônio tão abominável quanto eram para os judeus, vítimas do Holocausto hitlerista, figuras como Himmler ou Goebbels ou Hitler. Douglass, quando descreve Mr. Gore, atinge tal gênio literário que lembrei-me de experiências estéticas semelhantes vivenciadas com Shakespeare e seu Macbeth, Conrad e o Coronel Kurtz de Coração das Trevas, Milton e seu Satã (anjo caído e rebelde) em Paraíso Perdido. Frederick Douglass escreveu páginas clássicas nos anais da descrição verbal da Vilania (aqui representada pelos vícios da gravidade, do autoritarismo, da crueldade, do sadismo), incluindo uma descrição de homicídio que está entre as mais impressionantes de toda a literatura norte-americana:
“Mr. Gore was proud enough to demand the most debasing homage of the slave, and quite servile enough to crouch, himself, at the feet of the master. (…) He was cruel enough to inflict the severest punishment, artful enough to descend to the lowest trickery, and obdurate enough to be insensible to the voice of a reproving conscience.
(…) Mr. Gore was a grave man… he indulged in no jokes, said no funny words, and his looks were in perfect keeping with his words. He spoke but to command, and commanded to be obeyed; he dealt sparingly with his words, and bountifully with his whip, never using the former where the latter would answer as well. When he whipped, he seemed to do so from a sense of duty, and feared no consequences… He was, in a word, a man of the most inflexible firmness and stone-like coldness.
His savage barbarity was equalled only by the consummate coolness with which he committed the grossest and most savage dees upon the slaves under his charge. Mr. Gore once undertook to whip one of Colonel Lloyd’s slaves, by the name of Demby. He had given Demby but few stripes, when, to get rid of the scourging, he ran and plunged himself into a creek, and stood there at the depth of his shoulders, refusing to come out. Mr. Gore told him that he would give him 3 calls, and that, if he did not come out at the third call, he would shoot him…
The first call was given. Demby made no response, but stood his ground. The second and third calls were given with the same result. Mr. Gore […] raised his musket to his face, taking deadly aim at his standing victim, and in an instant poor Demby was no more. His mangled body sank out of sight, and blood and brains marked the water where he had stood.” – FREDERICK DOUGLASS, Chapter IV, pg. 36
Nas páginas dos filósofos raramente encontramos algo de tão intensa concretude, uma cena tão vívida que parece escrita por uma poeta trágico grego: quase como um Ésquilo mulato, Douglass pinta-nos uma cena destinada a encher-nos de piedade pelo infortúnio de “pobre Demby”, assassinado à queima-roupa por Mr. Gore. Se Mr. Gore pode cometer este morticínio é pois está prometida à impunidade toda morte perpetrada por um branco sobre um negro.
O racismo institucionalizado manifestava-se na brutalidade cotidiana exercida pela elite contra aqueles coagidos por ela a trabalharem por nada e serem espoliados de tudo. Mr. Gore encarna uma mentalidade – que poderíamos até batizar de fascismo-de-branquelo-racista – que prossegue assombrando-nos: vejam o caso Ferguson e o quanto ele trouxe à tona, mais uma vez, a tragédia social ainda não superada do racismo institucionalizado.
Por isso a obra de Douglass parece-me ter valor histórico não só como uma espécie de grande-reportagem, ao mesmo tempo denuncista e revoltada, mas plena de grandiosas conclamações à fraternidade, à solidariedade, à liberdade – valorizadas tão intensamente por aqueles que disto estão privados, vivendo à sombra de doídas ausências.
Uma ausência que dói em Douglass é a de instrução, de conhecimento, de sabedoria: suas páginas queimam com a chama de uma vida que queria intensamente informar-se, descobrir a verdade, a despeito dos impedimentos exteriores e placas de proibido. Frederick Douglass teve a sorte de ter aprendido o ABC, o bê-á-bá da linguagem, com uma das senhoras – que desrespeitou assim a lei, então instituída, que tornava proibido alfabetizar um escravo.
As instituições educativas estavam todas de portas fechadas às “pessoas de cor” e seria tratado no chicote qualquer negão que fosse pego aprendendo a ler-e-escrever. Os senhores – os fascistas branquelos como Mr. Gore – seguem a seguinte doutrina:
“A nigger should know nothing but to obey his master – to do as he is told to do. Learning would spoil the best nigger in the world. If you teach a nigger how to read, there’s no keeping him. It would forever unfit him to be a slave. He would at once become unmanageable…” (VI, p. 45)
Vê-se bem que o Iluminismo ainda não raiou na mente destes branquelos escravocratas, delirantes de ganância e doentes de etnocêntrico racismo. Eles não desejam espalhar as Luzes do Saber: é mais lucrativo e mais seguro manter os escravos na ignorância. Deve-se batalhar contra qualquer tendência de busca-de-instrução por parte daqueles que estão destinados ao labor físico brutal imposto pelo chicote e pelas ameaças terroristas constantes.
Ouvindo o discurso de seus senhores, Frederick Douglass aprende num insight, momento quase epifânico, que o caminho para sua libertação estava justamente em fazer aquilo que os opressores desaconselhavam. Douglass rebela-se contra os que proíbem-no de aprender e de ensinar: cria escolas clandestinas onde ensina o ABC aos companheiros-de-destino; com o aumento de suas capacidades de expressão e de seu repertório retórico, vai forjando-se um líder de massas capaz de mobilizar com seu Verbo o coração apaixonado das massas; Douglass enfim aparece ao leitor como uma figura de grandeza ética refulgente em sua batalha contra a “depravação” que há em encerrar alguém na “escuridão mental”.
Frederick Douglass aparece então como um mulado iluminista afro-americano que ergue-se como potência pedagógica em seu tempo, ensinando seus compatriotas, inclusive a elite de senhores escravocratas, quão infundado e desmiolado era o racismo que presumia uma inferioridade nata dos negros, em relação ao respeito, no que diz respeito a capacidades intelectuais, artísticas, morais etc.
“The more I read, the more I was led to abhor and detest my enslavers. I could regard them in no other light than a band of successful robbers, who had left their homes, and gone to Africa, and stolen us from our homes, and in a strange land reduced us to slavery. I loathed them as being the meanest as well as the most wicked of men. (…) I would at times feel that learning to read had been a curse rather than a blessing. It had given me a view of my wretched condition, without the remedy. It opened my eyes to the horrible pit, but no ladder upon which to get out. In moments of agony, I envied my fellow-slaves for their stupidity. (…) It was this everlasting thinking of my condition that tormented me. There was no getting rid of it. It was pressed upon me by every object within sight or hearing, animate or inanimate. The silver trump of freedom had roused my soul to eternal wakefulness.” DOUGLASS (VII, pg. 50)
Um Verbo assim tão poético, elevado, eloquente, quanto o de Fred Douglass em algumas de suas melhores páginas, é por si um fenômeno muito significativo e de importância histórica: os talentos de Douglass com a linguagem serviram para derrubar alguns dos preconceitos e apartheids daquela época em que você seria um fora-de-lei se ensinasse um escravo a ler-e-escrever.
O professor de Harvard Kwame Anthony Appaiah aponta que esta lei tornou-se forte após algumas tentativas de insurreição das populações escravizadas, como o levante liderado por Gabriel Prosser em 1800, de modo que a obra de Frederick Douglass brota como um fruto proibido na árvore da América – republicana e independente desde a Guerra de Independência contra o Império Britânico culminada com a proclamação da república dos EUA em 1776, mas ainda escravocrata e dividida.
Um escravo, na época em que Douglass ousou escrever, não tinha direito algum a expressar-se, tanto que seus senhores faziam tudo para impedi-los de alfabetizarem-se; poderia ir pro chicote qualquer nigger pego no flagra cometendo o crime terrível de ler os jornais. Eis porque são tão relevantes as obras escritas de próprio punho pelos escravos, descrevendo suas vivências, experiências, sonhos, planos, medos, traumas, raivas – enfim, toda a amplitude de sua humanidade:
“For much of the 18th century, and even during the height of the Enlightenment in Europe and America, it was widely agreed – among both opponents and defenders of slavery – that Africans, people of the Negro race, were constitutionally incapable of making contributions to arts and letters. (…) This alleged inferiority in matters intellectual was on the main weapons in the armory of those who defended slavery. How could white people treat Negroes as equals, if black people were simply incapable of comprehending the highest gifts of the human spirit?
Against this background, the slave narrative was more than a testimony to the evils of slavery; it was also evidence of the full humanity of black people. (…) The authors had experienced the horrors recounted at first hand; it also demonstrated that black people could write real literature. To achieve the first goal, it had only to be truthful, but to achieve this second goal, it had to display rhetorical brilliance. And no slave narrative achieved this double aim more successfully thatn Frederick Douglass’s Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave, Written By Himself, published in 1845.
By 1845, he was already widely known in the North as a powerful orator in the antislavery cause, a speaker whose evident rhetorical gifts were buttressed by his status as a fugitive slave. (…) He was not only a famous orator, but also a crusading journalist… He was an activist in the cause of women’s suffrage, an important voice urging the recruitment of African-Americans in the Union army, and a campaigner against lynching. He was also among the first African-Americans to hold significant Federal appointments, serving as the United States diplomat in Haiti and the Dominican Republic.
The slave narrative is the first African-American literary genre: it is, like so much of African-American culture, a powerful creative response to America’s racial tragedy. Not only did these narratives contribute to the struggle for abolition, they demonstrated the power of the black imagination, the ability to rise above the level of plain narration and speak to the mind and heart of a society scarred by slavery.”
Se o livro de Frederick Douglass é tão importante historicamente com certeza isto se deve ao poder de persuasão espantoso que emanam destas palavras, repletas de vida e humanidade, e com a força de um leão que põe-se por inteiro na tarefa de quebrar as correntes de ferro e as grades da jaula que mantêm-no cativo no inferno terrestre da escravidão. O livro não é só uma auto-biografia que quer fornecer a crônica de ocorrências passadas, é também um brado orgulhoso, prenunciador do Black Power, com uma voz que imagino de blueseiro, celebrando um triunfo.
Douglass descreve uma jornada da escravidão à emancipação; não recomenda a servilidade, mas a insurreição; não prega a aceitação fatalista da opressão, mas a construção coletiva de resistências e alternativas. Por tudo isso, Frederick Douglass prossegue tendo muito a nos dizer, já que apesar da escassez de diplomas, doutorou-se na Escola da Vida, através do sofrimento, a denunciar e tentar derrubar a fraudulenta, torturadora e genocida instituição histórica (infelizmente ainda longe de estar extinta) da escravatura.
A conquista da liberdade é gradativa, difícil, entravada por mil obstáculos e perigos. Mas Douglass é empurrado pelo destino à sina de jamais conformar-se com a condição desumanizada a que outros o condenaram. Sabe que, tentando fugir, arrisca-se a ser pego e barbaramente torturado.
“On the one hand, there stood slavery, a stern reality, glaring frightfully upon us, its robes already crimsoned with the blood of millions, and even now feasting itself greedily upon our own flesh. On the other hand, away back in the dim distance, under the flickering light of the north star, behind some craggy hill or snow-covered mountain, stood a doubtful freedom – half frozen – beckoning us to come and share its hospitality.” (X, p. 87)
Frederick Douglass conhece muito bem a tendência dos escravos ao fatalismo e à resignação, estados de espírito tão úteis aos senhores desejosos de permanecer impunes por seus crimes de escravização, espoliação, expropriação; citando o Hamlet de Shakespeare, Douglass descreve seus irmãos de infortúnio como frequentemente mais propensos a “aguentar os males que temos mais do que voar ao encontro de males que não conhecemos”.
Douglass exorta os escravos a jamais acostumarem-se com os males de que são vítimas a ponto de desistirem de demandar justiça. Afinal de contas, aquilo que mais anima estas páginas é justamente a presença forte de um afeto: solidariedade com outros que vivenciam um destino comum – em uma palavra, fraternidade.
Daria pano para manga uma longa investigação sobre esta idéia de Família Humana, tal como ela aparece nas páginas de Frederick Douglass. Limito-me a apontar uma impressão forte que me ficou da leitura: o ideal de Fraternidade que Douglass nutre foi forjado principalmente em oposição ao crime ou pecado de fratricídio que era cometido com frequência e abundância ao seu redor; assim como seu ideal de Liberdade é construído por um homem acorrentado, privado dos direitos mais básicos; Mr. Gore tem licença para torturar e matar impunemente, mas Frederick Douglass pode ser pisoteado, espancado, chicoteado, esfolado e destroçado em carne-viva se comer uma maçã no pomar.
Tão obscena é a discrepância entre o ideal da Fraternidade – aquilo que John Lennon chamará em “Imagine” de the brotherhood of man – e a realidade brutal das relações violentas e sádicas, que Douglass sente-se compelido à revolta – e não por destrutividade niilista, mas como defensor do que acredita ser uma ordem ética superior. Neste sentido, Douglass tem algo de Gandhi ou de Thoreau.
Depois de escapar da escravidão, rumando para a região de Nova York, Douglass tornou-se um ativista abolicionista, leitor entusiástico dos jornais e panfletos do movimento, cada vez mais borbulhante, que pedia a extinção da escravidão nos EUA. O preço a pagar pelo impasse entre Norte e Sul foi, como sabemos, uma das guerras mais fratricidas do século XIX, um dos episódios mais sanguinolentos da história universal naquela década de 1860.
Douglass estava muito clara e convictamente posicionado neste debate, como é revelado por suas reações à leitura do jornal abolicionista Liberator:
“Its sympathy for my brethren in bonds, its scathing denunciations of slaveholders, its faithful exposures of slavery – and its powerful attacks upon the upholders of the institution, sent a thrill of joy through my soul, such as I had never felt before! I had long been a reader of the Liberator before I got a pretty correct idea of principles, measures and spirit of the anti-slavery reform. I took right hold of the cause. I could do but little; but what I could, I did with a joyful heart, and never felt happier than when in an anti-slavery meeting. (…) From that time until now, I have been engaged in pleading the cause of my brethren.” (XI, p. 112)
É quase impossível, quando chegamos ao último ponto final, não sentir que acabou de falar um espírito livre. Que mostra-nos que livre não se nasce; livre a gente se torna. Frederick Douglass, professor de liberdade pois libertou-se, profundo conhecedor da fraternidade por ter sentido em sua carne, tantas vezes, este valor ser tripudiado e ofendido, é um destes autores cujas palavras têm o dom de influir sobre as vidas dos leitores a ponto de fazer valer o lema: os livros não fazem história, os livros fazem os homens, e estes fazem história. Sem este livro, talvez houvesse demorado ainda mais a chegar o dia da libertação coletiva (ainda que relativa),“the glad day of deliverance to the millions of my brethren in bonds” (Apêndice, pg. 119).
“If there is no struggle, there is no progress. Those who profess to favor freedom, and yet depreciate agitation, are men who want crops without plowing up the ground. They want rain without thunder and lightning. They want the ocean without the awful roar of its many waters. This struggle may be a moral one; or it may be a physical one; or it may be both moral and physical; but it must be a struggle. Power concedes nothing without a demand. It never did and it never will.” Frederick Douglass, Civil Rights Activist (c. 1818–1895) [READ IT ALL]
Ensaio por Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, 22 de Janeiro de 2015 d.C.
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BIOGRAPHY.COM: Abolitionist leader Frederick Douglass was born into slavery in Talbot County, Maryland. He became one of the most famous intellectuals of his time, advising presidents and lecturing to thousands on a range of causes, including women’s rights and Irish home rule. Among Douglass’ writings are several autobiographies eloquently describing his experiences in slavery and his life after the Civil War.
Douglass wrote and published his first autobiography, Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave, in 1845. The book was a bestseller in the United States and was translated into several European languages. Although the book garnered Douglass many fans, some critics expressed doubt that a former slave with no formal education could have produced such elegant prose. Douglass published three versions of his autobiography during his lifetime, revising and expanding on his work each time. My Bondage and My Freedom appeared in 1855. In 1881, Douglass published Life and Times of Frederick Douglass, which he revised in 1892.
Fame had its drawbacks for a runaway slave. Following the publication of his autobiography, Douglass departed for Ireland to evade recapture. Douglass set sail for Liverpool on August 16, 1845, arriving in Ireland as the Irish Potato Famine was beginning. He remained in Ireland and Britain for two years, speaking to large crowds on the evils of slavery. During this time, Douglass’ British supporters gathered funds to purchase his legal freedom. In 1847, Douglass returned to the United States a free man…” [READ ON]
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Publicado em: 26/01/15
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
nossa! muito bom o texto! grata pela pesquisa e abordagem do livro do Frederick
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
sam
Comentou em 25/10/16