DISCÍPULOS DE DIONISO: A SABEDORIA TRÁGICA DE NIETZSCHE EM SUA DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA – Comunicação realizada na ANPOF 2024, ocorrida em Recife, no GRUPO DETRABALHO – GT: Ética e Filosofia Política. O vídeo abaixo inclui um breve prelúdio com cenas do Recife e da UNICAP e conta com trilha sonora de Juliana Perdigão, “O Hino da Alvoca Libertina”.
TRANSCRIÇÃO (I.A.)
Bom dia, vou me apresentar brevemente para vocês, eu sou Eduardo Carli, estou vindo ao Recife pela segunda vez, participando da Anpof também pela segunda vez. Estive lá em Goiânia, que é a cidade onde eu moro atualmente e onde desenvolvo minhas atividades como doutorando e como professor de filosofia no IFG, e para essa Anpof eu decidi apresentar dois trabalhos nessa 20ª edição do encontro. Um foi apresentado ontem, que é a pesquisa em curso que eu estou fazendo, que é mais na área de Estética e Filosofia da Arte, lidando com a questão do Cinema e do Antropoceno. E esse trabalho que eu vou apresentar para vocês hoje, ele é baseado na dissertação de mestrado que eu apresentei na Universidade Federal de Goiás (UFG), e isso foi em 2013, e eu decidi ressuscitar esse texto para a publicação em livro, com algumas modificações, com alguns temas que eu decidi realçar naquilo que estava nessa dissertação de 2013.
Então, o que eu vou apresentar para vocês é uma espécie de capítulo inédito desse livro que vai sair agora em 2025 pela Editora dialética de São Paulo e eu inclusive mudei o título, que a minha dissertação de mestrado se chamava Para Além da Metafísica e do Niiilismo, a Sabedoria Trágica de Nietzsche e eu achei que num livro para o público mais amplo e com esses realces que eu vou tentar trazer aqui, um título mais instigante seria esse que eu escolhi, que é Discípulos de Dioniso, e o tema central continua sendo a sabedoria trágica de Nietzsche.
Então, vou tentar fazer uma síntese do meu argumento. Boa parte dos estudiosos de Nietzsche sabem que ele, desde a sua juventude, enquanto um filólogo, um professor de letras greco-romanas na Universidade européia (na Basiléia, Suíça), ele se interessou muito pela questão do início do teatro, ou seja, ele foi buscar as raízes, as origens do teatro e mais especificamente das tragédias, esses grandes concursos competitivos de peças teatrais que também ocorriam num contexto social onde as chamadas Dionisíacas aconteciam, que eram grandes festas populares que, de certo modo, pronunciam o que hoje nós conhecemos como bacanais ou carnavais.
E eu pesquisei bastante essa questão da origem da tragédia que o Nietzsche traz e é claro que é muito célebre, muito estudado, muito famoso, essa noção de que os deuses Apolo e Dioniso, dois deuses do panteão, do Olimpo, eles, segundo Nietzsche, entraram em uma espécie de aliança muito tensa, uma aliança não exatamente entre amigos harmônicos que estão de acordo em tudo, mas pelo contrário, uma espécie de aliança entre adversários, uma aliança tensa, e dessa mistura, desse hibridismo entre o Apolíneo e o Dionisíaco, os gregos teriam criado essa obra de arte, que é a tragédia, e que o Nietzsche considera uma espécie de culminância também, eu diria, na história da cultura.
Então você tem um filósofo ali no século 19 que está recomendando de certo modo que os seus contemporâneos e até mesmo que as pessoas vindouras se interessem pelas origens da tragédia e tentem também reativar essa potência na arte do seu tempo. Então uma das grandes polêmicas do não só com a música do Wagner, mas com o espetáculo de arte total wagneriano, e ele vai debater se Wagner de fato produz essa renascença da tragédia antiga ou não, e a gente sabe da tensão que existiu entre eles, das rupturas.
O dionisismo transcende o campo da arte, da cultura propriamente, e na filosofia nietzscheana é como se isso transbordasse também para a área ético-política, uma visão de mundo dionisíaca, eu até chamo isso às vezes de uma cosmovisão dionisíaca, que tem atrelada a ela uma sabedoria, no sentido de uma proposição de um modo de viver sábio, que precisaria reativar algumas potências desse dionisismo antigo, que foram, por razões históricas que ele explica muito bem, foram abafadas, principalmente após Sócrates. Então tem toda uma teoria Nietzscheana também de como o socratismo surge na história e produz a morte da tragédia, por conta de um certo, eu diria, logocentrismo, uma espécie de tirania da razão.
E aí nós sabemos que, por exemplo, na República de Platão, os poetas trágicos não são bem-vindos, e que a dialética filosófica, aquele diálogo que conduz às verdades eternas, absolutas, aos paradigmas incorruptíveis do mundo transcendente, tudo isso ganha dianteira diante do que existia antes na filosofia pré-socrática e na arte trágica. Um dos meus argumentos é que não devemos confinar no âmbito da estética ou da filosofia da arte a discussão sobre o dionisíaco. Eu fiz um estudo aprofundado de alguns helenistas, por exemplo, o Marcel Dettienne e o Jean-Pierre Vernant, que têm uma abordagem até bastante antropológica de como se davam esses cultos a Dioniso na antiguidade, e como isso perpassa também, não apenas pelas pessoas de teatro, sendo Dioniso esse Deus celebrado não só pelo vinho, pela embriaguez, mas também nessa criatividade teatral, dramática. Então haveria, na verdade, para além do teatro e da arte, uma proposta Nietzscheana de bem viver que teria a ver com esse impulso dionisíaco que foi abafado.
Então é um pouco sobre isso que eu gostaria de falar para vocês hoje, brevemente. E me parece também que a gente teria que partir dessa frase muito famosa de Nietzsche, Deus está morto, que se disseminou, virou um meme, muito conectado a Nietzsche – e me parece que ele foi um ateu um pouco anômalo, digamos assim. Ele se tornou descrente apesar das pressões familiares que haviam ali para ele se tornar um pastor protestante como seu pai e ele realizou um empreendimento crítico muito radical, muito demolidor de toda a tradição judaico-cristã, do monoteísmo judaico-cristão em geral.
E, no entanto, ele fez uma espécie de apologia muito exaltada desse deus Dioniso. Então, isso também me interessa compreender como é que um filósofo do século XIX tem a intenção de cometer uma espécie de deicídio, de falar que a crença nesse Deus judaico-cristão perdeu seu crédito e que cada vez mais o ateísmo ganha expressão e magnitude na Europa, e, no entanto, no meio desse processo de crítica atéia, onde ele fala que ele não é um pensador, ele é dinamite, eu vim para filosofar como martelo, esse lado muito polêmico de Nietzsche, surge também uma proposta de que deveríamos recuperar um culto antigo que está na raiz da tragédia – e aí aparece essa figura do sábio Dionisíaco que o Zaratustra também encarna na grande obra meio profética que Nietzsche escreve lá na década de 1880.
E Zaratustra diz que ele prefere ser um sátiro do que um santo. E ele é um pouco essa figura de fato dionisíaca, bailarina, que pretende, enfim, propor novos caminhos para a cultura. Então, o argumento central aqui nesse começo de apresentação seria esse, que não se trata apenas de Dioniso na genealogia da tragédia, mas sim de algo muito mais amplo que o Nietzsche até o fim da vida vai explorar, que seria uma espécie de conflito visceral na cultura entre o que ele vai chamar Dioniso e o Crucificado. Então o Nietzsche opera com essas contradições, com esses entrechoques, e nesse caso é o cristianismo e o dionisismo que estão entrando em choque.
Então eu vou citar um trechinho bem famoso aqui da Gaia Ciência, Aforismo 343, que me parece bastante significativo nesse contexto também, que ele fala que o maior acontecimento recente, o fato de que Deus está morto, ou que a crença no Deus cristão perdeu o crédito, ela começa a lançar suas sombras sobre a Europa. E, no entanto, de maneira bem surpreendente, o Nietzsche acha que isso não é exatamente uma má notícia. E ele diz que “nós, os espíritos livres, nós, os espíritos dionisíacos, que soubemos aprender a sabedoria trágica, esses filósofos que estão nascendo diante dessa notícia de que o velho Deus morreu, nós nos sentimos iluminados por uma nova aurora, nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa, e enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar está novamente aberto e provavelmente nunca houve tanto mar aberto.”
Então, esse é um dos pontos que eu trabalho na dissertação, como que Nietzsche vai desse ateísmo destruidor, dessa noção judaico-cristã, monoteísta, desse Deus transcendente que cria o mundo, cria o inferno, o céu, oferece recompensas e castigos, tem toda uma teleologia envolvida nesse ato criativo divino. Como que o Nietzsche faz isso tudo colapsar com a sua crítica, demolidora, mas ao mesmo tempo ele vem com uma proposta de algo que tomaria o lugar vago dessa ausência.
Então no lugar desse Deus morto, celebremos o dionisismo. Então, com o termo discípulos de Dioniso, eu também me refiro a pessoas, através da história, que são conhecidas com termos como mênades, bacantes, sátiros. São alguns dos nomes dados a esses discípulos de Dioniso, que são, digamos, os oficiantes de seus ritos e que criam a sua arte, a sua música, o seu teatro, a sua dança sob a inspiração desse culto que tem como uma das grandes intenções atingir o êxtase coletivo. Então tem uma autora que eu li bastante também que se chama Barbara Ehrenreich, que escreveu um livro chamado Dançando nas Ruas, onde ela também menciona que na história esse ímpeto dionisíaco serve como não apenas uma espécie de apologia da embriaguez que nos leva para além da razão, da medida apolínea, da ordem, mas que existe nessa visão dionisíaca de mundo um desejo de superar o individualismo, de superar o que o Nietzsche também chama de princípio de individuação.
O Nietzsche tem um grande debate com Schopenhauer, com aquilo que é colocado n’O Mundo como Vontade e Representação, a respeito de como os indivíduos também acabam se confinando em uma espécie de mônada individualista, quando eles transformam a razão em uma tirana e fica faltando a eles uma dimensão comunal, uma dimensão de uma coletividade na qual o indivíduo possa se fundir, de certo modo. Existe uma espécie de mística dionisíaca. E diante desse cenário eu comecei a pesquisar alguns autores, a principal delas é a Barbara Stiegler, que realmente acho que entre os pensadores contemporâneos é uma das que mais atualiza Nietzsche para os nossos tempos.
E nesse livro Nietzsche e a Vida, ela coloca como subtítulo uma nova história da filosofia. Então ela propõe que as rupturas que Nietzsche nos preconizou, também renovam a história da filosofia e que Dionisíaco e Apolíneo, eles também podem ser mobilizados em uma espécie de debate ontológico sobre o que ela vai chamar de “o fundo da vida”, que é um pouco diferente da essência da vida. O que é a vida na sua profundeza?
Então eu também tenho mobilizado essa noção do profundo e do superficial. E a Bárbara Stiegler, ela diz que o Nietzsche considera que a vida na sua fundura, a vida na sua profundidade, ela é dionisíaca, ela é repleta dessas pulsões que transformam a vida numa espécie de mar tempestuoso. E, na verdade, os viventes, os seres vivos, nós seres humanos também, nós temos necessidade de construir um mundo apolíneo através dos conceitos, das obras de arte, que são uma espécie de mundo das ficções necessárias.
Então, o que Nietzsche está afirmando é que nós estamos mergulhados no oceano do Devir, ele tem uma visão muito semelhante àquela do Heráclito, do Tudo Flui, Então, estando mergulhados nesse oceano que se move, nessa fundura dionisíaca que nos carrega, nós teríamos uma certa necessidade de uma terra firme. E aí nós criamos conceitos como de substância, de sujeito idêntico a si mesmo. Esse oceano dionisíaco tem pequenos barcos apolíneos que tentam navegar.
E isso tem muitas repercussões no campo da ética e da política que eu estou explorando. Quem quiser saber mais a fundo poderá consultar no livro depois. Mas a essência do dionisismo seria então uma busca por esse êxtase coletivo, onde o princípio de individuação é rompido. Quando os discípulos de Dioniso participam do que se chama de tiasos, eles transcendem as suas individualidades para fazer parte de uma espécie de caldeirão coletivo, individuação transcendida – e o sujeito meio que se dissolve nesse mar cósmico.
Então, sobre isso, para terminar, eu trouxe duas citações que me parecem também muito interessantes para falar dessa sabedoria trágico-dionisíaca que o Nietzsche está propondo e que implicaria uma espécie de mergulho no cosmos, uma recomendação para que o sujeito, ao invés de ficar confinado na sua individualidade, ao invés de ser um filósofo racionalista, ele se torna uma pessoa que eu diria senti-pensante, é um termo que o Eduardo Galeano propôs, e ele tende a viver desejando cada vez mais mergulhar no cosmos e ali vivenciar um êxtase coletivo. Então, para terminar as duas citações, que não são de Nietzsche, mas são de pensadores e artistas no seu campo de influência, a primeira é do Albert Camus, no livro O Homem Revoltado, ele lida com a noção que o Zaratustra traz, de que precisamos ficar fiéis à Terra, e o sábio geonesíaco seria essa figura que é plenamente fiel à Terra.
O Camus escreve, “o Nietzsche nos grita que a terra é a única verdade, a ela é preciso ser fiel, nela é preciso viver e buscar a sua salvação.” Então vocês devem se lembrar de como Zaratustra fala, parem de ouvir aqueles que nos pregam esperanças ultramundanas, eles são os caluniadores da terra, esse chamado para o aqui e agora da terra. Nietzsche nos ensina ao mesmo tempo que é impossível viver em uma terra sem lei. Nietzsche não é o demolidor de todos os valores, mas é aquele que propõe uma transvaloração, uma nova tábua de valores. A partir do momento em que você reconhece que o mundo não persegue nenhum fim, nenhum telos, Nietzsche propõe admitir uma espécie de inocência do mundo.Não se pode julgá-lo quanto a nenhuma intenção, substituindo, consequentementeemente todos os juízos de valor por um único sim, uma adesão total e exaltada este mundo.
Então é uma uma ética de se dizer sim né a esse mundo, e aí o Camus finaliza com a seguinte frase: “da mesma forma que Empédocles, sábio pré socrático, se atirou no vulcão Etna para buscar a verdade onde ela está, nas entranhas da Terra, Nietzsche propunha ao homem mergulhar no cosmos.”
Então isso seria a parte dessa sabedoria trágica. E aí é claro, não vou ter tempo para detalhar isso, mas a sabedoria trágica tem muito a ver com o amor fati, com esse conceito central da ética nietzscheana, que é uma espécie de bendição trágica da existência, com tudo que ela inclui, inclusive o que há de mais doloroso, o que há de mais dilacerante, o que há de mais desafiador na nossa existência, a gente deveria dizer sim a isto. O amor fati é essa bendição trágica que diz sim a esse cosmos, a essa terra onde estamos enraizados. E aí para terminar eu vou ler para vocês o famoso Hino à Vida, que foi escrito pela Lou Salomé.
O Nietzsche também era um artista, era um pianista, um compositor e a única partitura deuma composição musical que ele publicou em vida é justamente esse Hino à Vida que tem as palavras de Lu Salomé com a música que Nietzsche compôs ao piano – e me parece que essa poesia ela serve como uma boa síntese do que seria a sabedoria trágica abraçada por esses espíritos dionisíacos.
Então, para terminar, o hino à vida de Lou Salomé: “Tão certo quanto o amigo ama o amigo, eu também te amo, vida enigma. Mesmo que em ti eu tenha exultado ou chorado, mesmo que me tenhas dado prazer ou dor, eu te amo junto com seus pesares. E mesmo que me devas destruir, vou me desprender dos teus braços como um amigo se desprende do peito amigo. Com toda força te abraço. Deixa tuas chamas me inflamarem. Deixa-me ainda no ardor da luta sondar mais fundo seu enigma. Ser, pensar, milênios. Fecha-me em teus braços. Se já não tens felicidade a me dar… muito bem, dai-me o teu tormento.”
Eu vou fazer um breve comentário: ela diz então que a vidaé um enigma e isso supõe que na verdade há essa razão apolínea capaz de decifrar a existência por inteiro. Existe sempre uma área de penumbra, uma área de desconhecido, uma área de mistério né? Sempre restam incógnitas nessa vida enigma e nela estão incluídas a exultação, o entusiasmo e o êxtase com o choro, a dor e o sofrimento. Né? É uma mescla de paz e de luta, de doença e de saúde, de vida e de morte, essa vida-enigma que pode ser sondada cada vez mais a fundo. Esse poema traz a noção de uma profundidade inexaurível que você vai tentando decifrar.
E aí o fim do poema e também da minha intervenção aqui é: “se você não tem felicidade para me dar, tudo bem, dê a mim o tormento.” E essa é uma frase que tem a ver com esse sim, num sentido muito mais amplo, de abraçar o cosmos, ou seja, existir sabiamente consistiria em acolher essa vida enigma no que ela tem também de incompreensível, de irracional, de absurdo, de ridículo, de doloroso, dizendo um sim muito amplo a uma existência que ela é na sua essência contraditória. Isso me lembra também a última frase que eu vou citar, William Faulkner, que é um escritor estadunidense que eu gosto muito,ele tem uma frase que ele diz, between nothing and grief, I choose grief, que significa que entre o nada e o sofrimento, eu escolho o sofrimento. Isso me parece muito próximo da Lou né? Vida enigma, se não tens felicidade a me dar, muito bem, dai-me o teu tormento! Uma breve síntese do que seria uma sabedoria trágica dionisíaca que o Nietzsche e o Zaratustra.
Eduardo Carli de Moraes
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Publicado em: 22/11/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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