“Peço para ser livre pois o sacrifício de minha liberdade não foi voluntário.” Suzanne, em A Religiosa de Diderot
Luminar do movimento Iluminista e um dos principais propulsionadores da Enciclopédia, Denis Diderot (1713-1784) também foi um romancista que utilizou a literatura como campo de denúncia. Entre seus alvos principais estavam as trevas do obscurantismo religioso que transforma instituições como conventos em verdadeiras máquinas de moer mulheres, impondo a repressão vital em nome de um Deus tal como imaginado pelo heteropatriarcado.
Erguendo voz dissonante em meio ao coro dos que celebram a fé e seus feitos, Diderot irá mostrar em detalhes, muito antes de Foucault, o quanto há de autoritarismo e abuso de poder nos processos sociais que geram a conformidade aos dogmas religiosos: não é de livre e espontânea vontade que a maioria das pessoas “abraça” uma determinada fé, mas sim após uma coerção externa, exercida desde a primeira infância por instâncias disciplinares. O destino de Suzanne serve como emblema da fúria dos ideais ascéticos quando estes são impostos, a ferro e fogo, nos claustros onde confina-se a liberdade humano em gaiolas sob medida.
Inspirando-se em fatos reais e dando vazão a seu espírito sarcástico – que também se manifesta em outras obras literárias que pariu como Jacques O Fatalista – Diderot demonstra em seu romance que “brincadeiras de mau-gosto” (no juízo das autoridades fanáticas por seus dogmas, inclusivo aqueles acerca do “bom gosto”) podem até gerar polêmicas obras-primas. Pois na verdade esse livro “A Religiosa” é o resultado de um gigantesco trote armado pelo autor para “sacanear” e ludibriar um amigo seu. Poucas outras “pegadinhas” na história devem ter feito mais bem fez à humanidade!
Na metade do século 18, uma certa jovem francesa, encarcerada num convento em Longchamps, reclamava juridicamente sua libertação, já que fora despoticamente forçada a entrar para a vida religiosa por seus pais por ser considerada um rebento ilegítimo. Um tal Marquês de Croismare, amigo íntimo de Diderot, descrito como um homem compassivo, caridoso e bastante ingênuo, tomou consciência do destino da jovem através dos jornais e sentiu-se compelido a ajudar a mocinha, chegando a “pleitear em seu favor junto a todos os conselheiros de primeira instância de Paris”.
A mocinha acabou por perder o processo e continuou presa no convento, mas Diderot, todo sacana, resolveu se aproveitar dessa situação e passou a escrever uma série de cartas falsas para seu amigo Marquês, fazendo-se passar pela religiosa.
Este Marquês, antigo companheiro de Diderot, havia se isolado do mundo após ter se tornado viúvo. Diderot queria que oamigo retornasse a Paris e voltasse ao convívio com seus antigos companheiros. Nestas cartas falsas enviadas ao Marquês, a imaginação de Diderot inventou um enredo enorme sobre a mocinha dentro do convento, inventou a farsa de uma fuga do cárcere, tramou uma doença que afligia a moça e colocou em sua boca desesperados pedidos por auxílio. Esperava Diderot que a situação da garotinha faria com que o Marquês saísse de seu exílio e fosse correndo à Paris socorrer sua religiosa, somente para descobrir a patifaria de seus amiguinhos…
Como uma mentira leva à outra, Diderot logo viu-se enrolado com o tamanho gigante que vinha ganhando a farsa: os dramas imaginários da falsa doente ficavam atormentando o pobre Marquês, que aguardava a sempre novas notícias sobre sua protegida. E Diderot, tendo que mandar sempre a produção de mais “notícias” (falsas) sobre a moça, “pôs-se a escrever detalhadamente a história de nossa religiosa”.
A historinha, descrita como “a mais cruel sátira já feita contra os clautros”, acabou se tornando um romance de primeira qualidade, dos melhores da safra literária de Diderot (autor prolítico, que também escreveu muitos tratados de filosofia e muitos verbetes de enciclopédia).
Bem ao estilo iluminista do séc. 18, Diderot vai segurar nas mãos a tocha da Razão para dispersar as trevas da Superstição. “A Religiosa” é, como seria de se esperar, um romance que ataca as instituições religiosas de um modo totalmente feroz. Suas técnicas de ataque hoje parecem até um pouco ingênuas, mas é com muita classe que a metralhadora giratória diderotiana vai crivando de balas, impiedosamente, estas representantes do Demônio na Terra que são as madres superioras e as garotas de convento.
As descrições que faz dos tormentos da pobre Suzanne em sua vida monástica são de fato exageradas, beirando a caricatura, o que faz o livro, muitas vezes, se tornar pra lá de engraçado – mas o fio condutor de tudo é a crítica de um filósofo que, no fundo, leva muito a sério sua tarefa de livrar o mundo de todo tipo de superstição.
A rapariga, como narradora de seu próprio martírio, faz com que as madres superioras pareçam pequenos lúcifers; a vida de Suzanne lá dentro, para um leitor de hoje em dia, parece a dos judeus nos campos de concentração. Segundo Suzanne, as autoridades religiosas: “semearam vidros quebrados sob meus pés”, “não me deram senão o alimento necessário para que não morresse de fome; sobrecarregaram-me de mortificações; multiplicaram o pavor em torno de mim, tiraram-me completamente o repouso noturno; tudo o que pode abater a saúde e perturbar o espírito foi feito; era um refinamento de crueldades de que não fazeis idéia”…
Diz que era obrigada a “passar o ofício de joelhos”, a “permanecer fechada na cela”, a “atender às funções vis da casa”. Confessa: “davam-me simultaneamente ordens incompatíveis e me puniam por ter faltado a elas”, “atiravam-me os alimentos mais grosseiros, e ainda os estragavam com cinzas e toda espécie de sujidades”, “vivia então entre quatro paredes nuas, em um quarto sem porta, sem cadeira, em pé ou sobre uma esteira de palha, sem nenhum dos vasos mais necessários, forçada a sair de noite para satisfazer as necessidades da natureza, e acusada de manhã de perturbar o sossego da casa, de errar e de enlouquecer”…
Como foi por livre e espontânea pressão dos pais que Suzanne foi confinada ali, o romance tematiza o sacrifício da autonomia da sujeita e questiona porque ela não tem o direito de se libertar. Suzanne tenta entrar na justiça para se livrar de seu destino cruel (“Peço para ser livre pois o sacrifício de minha liberdade não foi voluntário”), mas seu planos não dão certo.
Quanto mais ela procura se livrar das teias do convento, com mais ódio é visto por madres e colegas, e mais cruelmente é torturada. O enredo não foge muito daí: Suzanninha tentando se livrar da terrível prisão que é a vida monástica, pulando de convento em convento, tentando conquistar na justiça sua libertação, chorando suas mágoas. A partir dessa historinha, Diderot – que é na verdade um filósofo muito interessante – vai fazer algumas interessantes meditações sobre vários assuntos ultra-relevantes.
Chama a atenção para os perigos da vida monástica e isolada, algo que parece uma mutilação da natureza humana (e Nietzsche certamente não discordaria!). Para Diderot, a repressão instintual e a vida completamente retirada do mundo conduz muito mais a loucuras, pensamentos extravagantes e afeições bizarras – dezenas de anos antes de Freud, Diderot já estava bem próximo de algumas idéias da psicanálise que vinculam as neuroses à repressão instintual…
“Votos que ferem a inclinação geral da natureza poderão ser alguma vez bem observados, a não ser por criaturas mal organizadas, em que emurcheceram os germes das paixões, e que alinharíamos com justa medida entre os monstros, se nossas luzes nos permitissem conhecer tão facilmente, e tão bem, a estrutura interior do homem quanto sua forma exterior? Todas essas lúgubres cerimônias que observamos na tomada do hábito e na profissão, quando se consagra um homem ou uma mulher à vida monástica e à infelicidade, interrompem por acaso as funções animais? Ao contrário, não se sublevam, no silêncio, no constrangimento e na ociosidade, com uma violência desconhecida das pessoas do mundo, que têm a ocupá-las uma multidão de distrações?”
Diderot também ataca os eremitas em geral, como por exemplo neste trecho magistral:
“Eis os efeitos do retiro. O homem nasceu para a sociedade; separai-o, isolai-o, suas idéias desunir-se-ão, seu caráter transfigurar-se-á, mil afeições ridículas elevar-se-ão em seu peito; idéias extravagantes germinar-lhe-ão no espírito, como os espinheiros em terra selvagem.” (…) “Eis o que ocorre, cedo ou tarde, quando nos opomos aos pendores gerais da natureza: tal constrangimento a conduz a afeições desregradas.”
Nietzschianamente, descreve também o cristianismo como uma religião do martírio, criada mais para o consolo dos miseráveis e dos infelizes do que para ser seguida pelas pessoas saudáveis e felizes. Suzanne, ao filosofar sobre sua própria religião, deixa isso subentendido:
“Foi então que senti a superioridade da religião cristã sobre todas as religiões do mundo; que profunda sabedoria existe no que a cega filosofia chama a loucura da cruz. No estado em que me achava, de que teria me servido a imagem de um legislador feliz e coberto de glória? Eu via o inocente, o flanco atravessado, a testa coroada de espinhos, as mãos e os pés cravados de pregos, expirando entre sofrimentos; eu me dizia: ‘Eis aí o meu Deus, e eu ouso queixar-me!…’ Eu me agarrava a essa idéia, e senti a consolação renascer-me no peito; conheci a vanidade da vida, e me senti feliz demais em perdê-la antes de ter tido tempo de multiplicar minhas faltas.”
(…) “Não há senão um recurso, é o de tornar nossa condição o menos deplorável possível… não se evitam os desgostos, decide-se apenas a suportá-los. As pessoas religiosas só são felizes quando fazem um mérito, perante Deus, de suas cruzes; alegram-se então, antecipam-se às mortificações; quanto mais amargas e frequentes, tanto mais se felicitam; é uma permuta da felicidade presente pela felicidade por vir; asseguram-se desta, aqui, pelo sacrifício voluntário daquela.”
Enfim, esse é um legítimo romance de combate, que não teme intervir no debate público provocando uma polêmica (a adaptação cinematográfica de Jaques Rivette, aliás, ficou por muito tempo banida pela censura…). Diderot une uma narrativa literária muito bem feita com uma prosa de idéias poderosa e provocante – e termina gerando um dos exemplos literários supremos das idéias Iluministas. Aqui Diderot, revoltado e incendiário, se volta contra a Superstição, a Religião, a Martirização, o Assassinato dos Instintos, demolindo com palavras uma ordem social que pretende “encerrar em sepulcros jovens criaturas palpitantes de vida”.
A personagem de Diderot tem sua pulsão vital moída pelo claustro até o ponto em passa a flertar com o suicídio:
“…minhas frequentes visitas a esse poço absolutamente não passaram despercebidas e minhas cruéis inimigas deleitar-se-iam com o dia em que eu realizasse um desejo que me fervia no fundo do coração. Quando eu me dirigia para aquele lado, afetavam afastar-se e olhar para outra parte. Muitas vezes encontrei aberta a porta do jardim, nas horas em que devia estar fechada, singularmente nos dias em que haviam multiplicado meus desgostos; tinham estimulado ao máximo a violência de meu caráter, e julgavam que me achava com a mente alienada. Mas logo que eu acreditei que esse meio de sair da vida era por assim dizer oferecido a meu desespero, que me conduziam ao poço pela mão, e que eu sempre o encontraria pronto para receber-me, não pensei mais nele…
Desgostei-me de quase todos os meios de perder a vida, pois me parecia que, longe de se oporem, punham-nos ao meu alcance. Aparentemente, não desejamos que nos empurrem para fora deste mundo, e talvez não estivesse mais aqui, se houvessem simulado reter-me. Ao nos tirarmos a vida, procuramos, quem sabe, desesperar os outros, e aguardamos, se acreditamos satisfazê-los; são movimentos que se passam em nós bem sutilmente. Na verdade, se é possível que me lembre de meu estado, quando estava ao lado do poço, parece que eu gritava, dentro de mim, a essas infelizes que se afastavam para favorecer o atentado: ‘Dêem um passo em minha direção, manifestem o menor desejo de salvar-me, corram a reter-me e estejam certas de chegar tarde’. Na verdade, eu só vivia porque me desejavam a morte.”
Além disso, o cristianismo é descrito como religião que prega o martírio e depois vende o consolo àqueles que tornou miseráveis e infelizes. A fé não move montanhas, ela põe uma montanha nos ombros do sujeito para que ele a carregue como uma pesada cruz, pregando que a consolação para tanto sofrimento terreno será a recompensa de que gozarão no além-túmulo aqueles que forem obedientes e mansos.
Raras vezes tal obscurantismo foi confrontado com tanta potência como foi através da pena denuncista de Diderot. A tocha que ele segurava em suas mãos firmes, para iluminar um pouco as trevas do mundo, é a mesma tocha que ainda necessitamos hoje manter em punhos contra a galopante cavalgada dos neo-obscurantistas e sua ladainha enjoativa sobre os maravilhosos benefícios da fé, quando esta é com frequência a assassina do intelecto e a carrasca da autonomia ética.
Publicado em: 15/12/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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