“Durante séculos, os homens foram punidos por desobedecer. Em Nuremberg, pela primeira vez, homens foram punidos por terem obedecido. As repercussões desse precedente estão começando a se fazer sentir.” – Peter Ustinov, New Yorker, 7 de Fevereiro de 1967
No primeiro capítulo de seu livro Desobedecer (Ed. Ubu, 2018, Coleção Exit, 224 pgs, leia o prefácio), o filósofo francês Frédéric Gros fala de uma “transição histórica – que Arendt tinha testemunhado forjando seu conceito de ‘banalidade do mal’ – e que eu gostaria de chamar aqui de a inversão das monstruosidades“:
Antes, reinava a opinião de que o desobediente era malvado, perverso, incivilizado, segundo a “posição que consiste em colocar a desobediência do lado das formas da rusticidade selvagem, da bestialidade incontrolável. Desobedecer é manifestar uma parte em nós de animalidade estúpida e rude. (…) Desobedecer é se deixar escorregar ladeira abaixo na selvageria, ceder às facilidades do instinto anárquico. Se é o animal em nós que nos faz desobedecer, então obedecer é afirmar nossa humanidade.” (GROS, 2018, p. 28)
Esta ruptura histórica de que Arendt foi uma das maiores pensadoras consiste numa inversão do que consideramos como monstruoso: com as atrocidades nazifascistas, seguidas pelas tentativas de responsabilização penal das autoridades que perpetraram a “Solução Final”, propôs-se a inversão desta costumeira avaliação da desobediência como vício e selvageria.
Diante do que foi revelado pelo tribunal que julgou Eichmann em Jerusalém e também pelo Julgamento em Nuremberg – que ganhou as telas do cinema em 1961 em um monumental filme dirigido por Stanley Kramer, e depois recebeu uma nova adaptação em 2000 realizada por Yves Simoneau -, nunca mais será permitida a ingenuidade pretérita de igualar, segundo a fórmula hoje destroçada: obediência = virtude, desobediência = vício.
“A experiência do século XX, a dos regimes totalitários e dos grandes genocídios, inquietou, perturbou, ou antes fragmentou, rompeu essa evidência cultural maciça que vincula, de maneira cerrada, capacidade de obedecer e afirmação de humanidade…
Eichmann, coordenador frio, impecável, da máquina de morte que levou à destruição de seis milhões de judeus da Europa, na barra do tribunal de Jerusalém não compreende nem mesmo que se conjecture sua condenação: ‘Não posso ser responsabilizado, pois não vejo por que eu seria punido por ter assinado segundo ordens recebidas’.
Considere-se ainda o sinistro Duch dirigindo, com zelo, aplicação, abnegação mesmo, o centro S-21, onde milhares de cambojanos foram torturados para produzir confissões delirantes e, depois, eliminados – seu nome significa em cambojano ‘o aluno dócil. (…) A experiência totalitária do séc. XX evidenciou uma monstruosidade inédita: a do funcionário zeloso, do executor impecável. Monstros de obediência.” (GROS, p. 31-32, que recomenda sobre a conjuntura no Camboja sob o regime do Khmer Vermelho as obras de Rithy Pahn)
MONSTROS DE OBEDIÊNCIA
Na infância, muitos de nós foram ensinados que o Bicho-Papão (ou alguma besta hostil parecida) maltrata e devora as crianças desobedientes. Mesmo depois de crescidos, muitos de nós seguem ouvindo em casa, na igreja ou na escola, da boca de altas autoridades que representam as veneráveis instituições da Família, da Religião e da Educação, que merecem chineladas os insubmissos, que no inferno hão de queimar eternamente aqueles que não forem submissos ao Pai e ao Senhor (o Papai-do-Céu), e que as notas vermelhas e as recuperações são a punição dos indisciplinados.
Toda esta pedagogia da submissão gera a fórmula clichê que aqui estamos interessados em dinamitar: a hipótese não apenas simplista, mas falsa, de que a obediência é a virtude dos bons e a desobediência o pecado dos maus. “Para podermos sentir até que ponto desobedecer pode ser visto como difícil e arriscado, é preciso lembrar o quanto, ao contrário, a obediência desresponsabiliza e faz conhecer o conforto de não ter de prestar conta a ninguém.” (GROS: p. 110)
Não é por virtude que preferimos o caminho mais curto e fácil da obediência: é muito mais por uma covardia íntima, por uma escassez de força-de-vontade-ética, que nos leva a uma opção que nos desresponsabiliza, ou seja, que nos livra do fardo da responsabilidade. A gente obedece pois, se der merda, a culpa será do outro, o que estava liderando, o que mandava as ordens que meramente acatávamos.
Quando falamos em inversão das monstruosidades, é para indicar que o novo paradigma do mal – que Arendt, de maneira polêmica, adjetivou como “banal” – não é mais o desobediente, indisciplinado, que se mostraria incorrigível, mas, pelo contrário, o malvado seria aquele que obedece de maneira cega a seus superiores hierárquicos, ainda que estes estejam ordenando um genocídio ou instituindo a tortura como prática cotidiana. Neste contexto, é impossível desconsiderar o caso Adolf Eichmann – pois se há um paradigma de um “monstro da obediência”, é ele:
“…o planejador logístico da Solução Final, seu mestre de obras. Não certamente aquele que tomaria a iniciativa, que a decidiria, mas aquele que a organiza e, finalmente, sim, torna-a possível, efetiva, realizável. É aquele por quem os trens da angústia e da morte, os comboios da desonra da humanidade, os vagões para Auschwitz ou Treblinka partem na hora certa e chegam ao destino. (…) O processo Eichmann continua a obcecar a reflexão ética contemporânea porque põe em movimento a dialética vertiginosa da responsabilidade e da obediência.” (GROS, p. 110 e 115)
Ao invés de diabolizar Eichmann, considerá-lo como um ser satânico, Arendt tentou compreendê-lo a partir de seu contexto, seguindo de alguma maneira a compreensão de Günther Anders, que foi seu primeiro marido: este enxergou em Eichmann um “funcionário menor obtuso, deplorável, no fundo um medíocre, um indivíduo sem envergadura, apagado, grotesco, um executor insípido, mas bastante meticuloso: uma engrenagem passiva”; uma visão que Gros contesta: “Eichmann não foi um fantoche passivo de comportamento robótico, uma mera engrenagem da grande máquina nazista.” (p. 113)
Para Arendt, este homenzinho medíocre, apegado a clichês, incapaz de reflexão mais aprofundada, revela a extensão do mal que pode ser causado pela burrice – desde que compreendamos bem o que significa aqui “ser burro”. Como explica Gros,
“quando se fala de ‘burrice’ a respeito de um delito ou de um crime, é para dizer: não foi por maldade, foi só burrice, ele não se dava conta. Mas Arendt aqui diz outra coisa. A burrice é pensar por clichês, por generalidades. Ela fala da “pura irreflexão”, sem “qualquer profundidade diabólica ou demoníaca”. Eichmann é incapaz de ter uma opinião, ele só gosta das ideias prontas. É isso que Arendt chama de burrice: a automaticidade da fala, o pronto-pensar, os elementos da linguagem… A ‘burrice’, no cerne da obediência de Eichmann, não o desresponsabiliza, porque na sua idade o indivíduo é responsável por sua própria burrice.” (GROS: op cit, p. 122)
Além disso, podemos falar num retardo moral do sujeito que, incapaz de alçar-se à plena autonomia da razão, esta que apenas o exercício de suas faculdades críticas e reflexivas poderia gerar, contenta-se com a adesão conformista e às vezes fanática a uma noção de honra moral conexa à lealdade. O sujeito se sente no dever de lealdade perante as autoridades de seu país, de seu partido, de sua seita religiosa, e equaciona a sua própria bondade moral, isto é, também sua auto-estima e sua avaliação-de-si, no quão leal ele é a seus superiores. Obedecer é então interpretado pelo sujeito como condição sine qua non para que ele possa se sentir alguém.
Não haveria problema alguma caso um funcionário sentisse que é um “cidadão de bem” quando está trabalhando para um governo que solicita que ele organize os transportes para que toneladas de comida e água potável sejam entregues à população necessitada; a nossa consideração muda totalmente, é evidente, quando este funcionário está encarregado de organizar os transportes que levarão os deportados para o campo de extermínio – neste último caso, a “lealdade” aos chefes não passa de uma abominável cumplicidade no crime.
Isto indica que nem a obediência nem a lealdade podem ser consideradas virtudes, pois é preciso sempre perguntar: o sujeito obedece a quem, é leal a que tipo de chefia, de programa político, de ideologia?
Um exemplo do quanto a lealdade pode tornar-se perversa e patológica foi apresentado pela série Como Se Tornar Um Tirano (How To Become a Tyrant), da Netflix, que afirma: a “lealdade” de Goebbels a Hitler era tamanha que, em 1945, com o esfacelamento do III Reich, incapaz de imaginar uma Europa sem Hitler, o ministro da propaganda do regime que agonizava decide dar uma das mais sinistras provas de lealdade ao hitlerismo: no bunker que será seu túmulo, envenena seus 6 filhos e depois se envenena, acompanhando lealmente seu führer à sepultura.
Esta é a natureza da defesa que Eichmann tenta realizar perante o tribunal de Jerusalém: eu “pessoalmente considerava que essa solução violenta [do problema dos judeus] não era justificada. Eu a considerava um ato monstruoso. Mas, para meu grande pesar, estando atado por meu juramento de lealdade, eu devia em meu setor ocupar-me da questão da organização dos transportes.”
Bem, retruca Gros, “nessa lealdade cega, com falsos ares solenes, nessa atroz dignidade reivindicada encontra-se também o que Arendt chama a burrice de Eichmann. (…) Arendt nunca deixou de repetir: Eichmann é responsável; é justo que seja condenado à morte, mas não em nome de sua monstruosidade moral. Sabemos que Arendt, que não pôde ir a Nuremberg, vai a Jerusalém logo que o processo é anunciado: ela queria ver pessoalmente, ao vivo, um alto responsável nazista. E não poderá se desfazer de sua primeira impressão: mediocridade, normalidade do personagem, o que ela denomina até sua ‘apavorante’ normalidade -, mas, sob Terceiro Reich, ser normal era ser um assassino. Ela vê um ser insignificante, fraco, jactancioso, sem envergadura, insípido. Mas essa mediocridade nunca o desresponsabiliza…” (GROS, op cit, p. 121)
No filme de Margarethe Von Trotta, quando Arendt dá sua aula sobre o caso Eichmann, ela destaca o caráter sem precedentes dos delitos que estavam sendo julgados em Jerusalém e que não estavam previstos nos códigos penais. O indivíduo que ali estava para ser julgado por seus atos insistia em se despersonalizar, em acusar o sistema, em atribuir responsabilidade apenas a seus superiores hierárquicos, dizendo que nada tinha feito por iniciativa própria etc. Este fenômeno é designado pela expressão “the evil committed by no-one” (o mal cometido por ninguém) e está conectado com a recusa do sujeito em assumir-se como pessoa responsável e autônoma.
A “desculpa típica dos nazis”, diz Arendt, é este “eu estava apenas obedecendo ordens” – mas a filósofa não aceita perdoá-lo. A tentativa Eichmanniana de des-responsabilizar-se através da des-personalização – dizendo que ele não passava de uma parte da engrenagem, de um executor de iniciativas alheias etc. – não merece que a acatemos. Nesta cena notável, a filósofa afirma que nunca tentou defender Eichmann, nem contribuir para que fosse perdoado ou tivesse sua pena suavizada (muito pelo contrário, ela concorda com a pena de morte a que ele é condenado): “o que eu tentei foi conciliar a chocante mediocridade daquele homem com seus atos abomináveis. Tentar entender não é o mesmo que perdoar.”
O antídoto contra a recorrência possível das atrocidades do Holocausto, argumentará Arendt, passa necessariamente pela reflexão racional alçada a um valor moral insubstituível e indelegável. Cada um precisa exercitar e fortalecer este “diálogo consigo”, assumindo a responsabilidade de compreender, caso não queira correr o risco supremo de chafurdar na perigosa mediocridade da irreflexão. Decerto que os atos irrefletidos, as ações impulsivas, a escassez de consideração das consequências antes da realização de uma intervenção qualquer no real, são coisas bastante banais.
É justamente por isso que a filosofia importa: para nos convidar à aventura imprescindível de pensar de maneira autônoma, pois desistir de pensar produz frutos dos mais nefastos para o sujeito e aqueles ao seu redor: “Eichmann abdicou da característica que melhor define o ser humano: ser capaz de pensar. Consequentemente, ele tornou-se incapaz de fazer juízos morais. Essa incapacidade de pensar criou a possibilidade para que muitos homens comuns cometessem atos cruéis numa escala monumental jamais vista.”
Obedecer de maneira acrítica e acéfala, simplesmente seguindo ordens das autoridades sem pensar nas consequências, é a fórmula garantida para a catástrofe moral. Não somos ovelhas de rebanho sob o cajado de um pastor todo-poderoso, mas seres humanos dotados da capacidade de reflexão e de autonomia – renunciar a elas é desistir de algo crucial à nossa própria humanidade.
Monstruoso, hoje, é aderir de maneira conformista à mais banal das experiências cotidianas: a preguiça de pensar conexa à demissão voluntária que o sujeito realiza de sua responsabilidade, inclusive a de compreender. Por isso a expressão proposta por Gros, a inversão das monstruosidades, é bem pertinente e recebe formulações plurais.
Evoco aqui, de maneira breve, algumas destas formulações de uma desobediência virtuosa: em sua canção “Como o Diabo Gosta”, que encerra o Lado A de seu LP Alucinação, Belchior veicula o famoso bordão “sempre desobedecer, nunca reverenciar.” Outro artista musical brasileiro, o espírito-livre Raul Seixas, dizia que “a desobediência é uma virtude necessária para a criatividade”.
Já o historiador contra-hegemônico Howard Zinn tem um famoso discurso sobre a desobediência civil em que estabele que “nosso problema é a obediência das pessoas quando a pobreza, a fome, a estupidez, a guerra e a crueldade assolam o mundo. Nosso problema é que as pessoas sejam obedientes enquanto as prisões estão cheias de ladrõezinhos e os grandes bandidos estão no comando do país. Este é o nosso problema.”
A atualidade da problemática aqui explorada não poderia ter emblema mais expressivo do que a frase proferida pelo general Eduardo Pazuello em companhia de Jair Bolsonaro: o ex-ministro da Saúde, empossado no cargo ainda que tenha confessado que “nem sabia o que era o SUS”, manifestando sua total lealdade ao Capitão Cloroquina, disse: “é simples assim: aqui um manda e o outro obedece”. Além disso, Pazuello manifestou todo seu “carinho” ao extremista e sectário que hoje ocupa ilegalmente a presidência da república.
Em 2021, mais de 1 milhão de pessoas perderam a vida para a covid19 no mundo e o Brasil lidera o ranking de óbitos no ano corrente – como apontou Miguel Nicolelis. Neste caso, portanto, a obediência-de-ovelha do general perante o presifake genocida não tem nem uma migalha de virtude: é a cumplicidade no crime-contra-a-humanidade. Algo que faz com que Pazuello e Bolsonaro mereçam estar juntos, como réus, em tribunal penal internacional, pagando pela co-responsabilidade que têm na catastrófica gestão que acarretou mais de 500.000 mortes evitáveis durante a pandemia em território brasileiro.
Sr. Pazuello, repetindo os erros de Eichmann, demonstra não ter aprendido que obedecer a um líder criminosamente negacionista, ser leal a um genocida, jurar aliança a um racista e a um apologista da tortura, não faz do obediente um herói. Ao contrário, há certas obediências obscenas, em que seria virtuoso desobeder mas é fétido e nefasto obedecer. Afundando-se na irreflexão, na falta de discernimento ético, Pazuello quis ser leal e obediente à autoridade do presidente, só para descobrir-se na posição que já era a de Eichmann: um canalha cúmplice de outro canalha, unidos na perfídia, co-responsáveis por uma atroz máquina mortífera, incapazes, depois do mal-feito, de assumirem seus atos e consequências, indignos da mínima atitude moralmente honrada que deles se espera: que peçam desculpas. Não esperemos deles nem mesmo esta dignidade mínima pois eles já demonstraram serem sintomas mórbidos e encarnações concretas da banalidade do mal rediviva.
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Julho de 2021
BRAGANÇA, Danillo Avelar. “Resenha de do livro Desobedecer (2017), de Frédéric Gros”. Dissonância: Revista de Teoria Crítica, v. 3 n. 1, Dossiê Desobediência Civil, Campinas, 1º Semestre de 2019, p. 337-344. ACESSAR PDF.
GABRIEL O PENSADOR – “Estudo Errado”
“Eu tô aqui pra quê? Será que é pra aprender?
Ou será que é pra sentar, me acomodar e obedecer?”
Publicado em: 20/07/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia