A expressão fake news é recente, mas o fenômeno é antiquíssimo: a mentira, noticiada em massa, tem pernas longas. É capaz até mesmo de atravessar o oceano viajando em caravelas repletas de ávidos e gananciosos conquistadores escravocratas. Encontrando crédulos em seu caminho, a mentira instituída pode espalhar seu contágio como uma pandemia.
Ocorreu assim com a farsa eurocêntrica, desembarcada aqui neste território batizado pelos conquistadores em homenagem a um certo Américo Vespúcio: desceu das caravelas, junto com os crucifixos, as Bíblias e as escopetas, a fraude de um Jesus branquelo, loiro, de olhos azuis, transformado em cúmplice dos europeus na escravização dos povos indígenas e africanos (prática abominável também calcada na fraude “nós, cristãos, temos alma; já os negros e os índios são tão desalmados quanto cachorros”).
Jesus, que com muito mais probabilidade tinha o biotipo de um palestino contemporâneo e que seria hoje escorraçado pelos racistas como um nigger e enfiado num campo de refugiados pelos xenófobos, foi construído e representado a posteri como homem branco e portador dos valores supremos da civilização ocidental num processo farsesco que sedimentou a ideologia hoje hegemônica – que se manifesta até as raias da insanidade a cada Natal (mas não só).
A força desta ideologia é tamanha que a maioria das pessoas não questiona se o Jesus que lhe mandam consumir e adorar é uma invenção dos branquelos responsáveis pelo genocídio que se seguiu à Conquista do dito Novo Mundo. Há 500 e poucos anos atrás, o cristianismo fez suas primeiras incursões neste território que estava repleto de uma miríade de povos e culturas, enraizados em ancestralidades outras, e que até 1.500 d.C. nunca tinham sequer ouvido falar de Jesus, de Bíblia ou do direito divino de oprimir atribuído por um suposto Papai do Céu único e onipotente aos reis da Zôropa…
Desconstruir os construtos históricos acerca do messias supremo do cristianismo – uma das tarefas a que Nietzsche, auto-denominado O Anticristo, se impôs – importa demais na atualidade pois este sequestro de Jesus pelos reacionários escrotos não é História. É o nosso presente, em que Bolsonazistas, pastores trambiqueiros, ministras teocráticas e outros mercadores de ilusões seguem jogando combustível na mesma farsa: constrõem um Jesus ready-made, tão racista, machista, homofóbico, elitista, militarista e patriarcal como eles mesmos. Fabricam um amigo imaginário à sua imagem e semelhança. E praticam hecatombes pretendendo que este fake-messias está ao lado deles.
Um exemplo de desconstrução possível desta pervasiva ideologia cristo-fascista que hoje nos desgraça consiste em questionar a quase onipresença dos crucifixos pendendo dos pescoços dos auto-proclamados cristãos: sabemos que se trata de uma referência à cruz, instrumento de aplicação da tortura e da morte lenta e dolorosa, o que levou Richard Dawkins a fazer a provocativa comparação: usar um treco destes pendendo do pescoço equivale a andar por aí com uma cadeira elétrica em miniatura servindo de pingente.
Sei que me responderão que este é o símbolo do martírio e que é para lembrar do mártir que se idolatra um instrumento da mortificação bem próximo ao peito. Mas isto não impede de pensar que esqueceram de perguntar ao Jesus de carne-e-osso, aquele que nunca fundou cristianismo nenhum, se ele estava de acordo em ser vinculado à cruz que certamente lhe foi extremamente odiosa enquanto ele agonizava e se preparava para soltar suas famosas palavras finais: “deus, por que me abandonaste?”
Quem assistiu ao Spartacus de Stanley Kubrick ou à paródia do Monty Phyton A Vida de Brian, sabe que a crucificação era um dos modus operandi banalizados do Império Romano para lidar com arruaceiros, subversivos, transgressores, bandidos – e que crucificados foram milhares e milhares de pessoas além de Jesus de Nazaré. Mas quem é que, ao beijar seu crucifixo, se lembra da legião de martirizados e injustiçados que não se tornaram pop-stars como Jesus?
Na pintura de Orozco que inicia este artigo, Jesus é representado como alguém que odeia a cruz e a derruba a machadadas. Já o Jesus de Jair “Messias” Bolsonaro e sua seita de fanáticos, que vem transformando o Brasil em uma necrópole, é a “ressurreição” do Jesus opressor, que segue crucificando os pobres, os desvalidos, os dissidentes sexuais, os praticantes de religiões minoritárias, os ateus e agnósticos, espalhando pelo mundo as novas cruzes da tortura rediviva e do genocídio “com Deus do meu lado”.
Paulo Leminski, escrevendo sua biografia de Jesus, fornece uma alternativa interessante a quem quer escapar da “captura reacionária” que se impôs ao nazareno – como diz a Jacobin, Leminski destaca “seu caráter subversivo e utópico que inspirou as grandes revoluções modernas”. Publicada em 1984 e hoje parte integrante do livro Vida (que também explora as existências de Trótski, Bashô e Cruz & Souza), procura apresentar sua perspectiva de Jesus como um “subversor da ordem vigente, negador do elenco dos valores de sua época e proponente de uma utopia“. Também deseja “revelar o poeta” por trás do profeta (p. 159). A obra inicia-se brincando de noticiário e relatando feito imprensa marrom um factóide ocorrido em Jerusalém:
“Alguém que atende pelo nome de Jesus invadiu as dependências do Templo, agredindo e expulsando toda a casta de vendedores que ali exercia seu ofício. O lunático, galileu pelo sotaque, entrou, subitamente, chutando as mesas dos mercadores de pombas e outros animais destinados ao sacrifício. Na confusão que se seguiu ao incidente, entre as moedas que rolavam pelas escadas, gaiolas quebradas, pombas que voavam, acorreram os guardas, que não conseguiram deitar mãos no facínora. O tal Jesus desapareceu no meio da multidão. A reportagem apurou que o referido é natural de Nazaré, na Galileia, filho de um carpinteiro. Arrebanhou inúmeros seguidores entre os pescadores do mar da Galileia. Dizem que opera milagres. E descende, por linha direta, do rei Davi.” (p. 160)
O Jesus de Leminski raia no céu do livro com certos arroubos anarquistas, enfurecido contra os adoradores do vil metal, movido pelo desejo de dilacerar os idólatras do bezerro de ouro. Este gesto radical interessa intensamente a Leminski, que sabe muito bem que um poeta não precisa traficar somente com palavras escritas, mas pode expressar-se com seus atos, através de seus ditos e feitos. Como Sócrates e Sidarta Gautama (o Buda) antes dele, Jesus não deixou nada escrito de próprio punho; no entanto, “mudou o mundo como poucos” (p. 165).
Para compreender as raízes e o contexto sócio-cultural de onde emergiu Jesus de Nazaré, Leminski faz-se historiador e pondera:
“O Oriente Médio era o lugar culturalmente mais rico da Antiguidade. (…) Essa parte do globo, afinal, foi berço do judaísmo, do cristianismo e do Islã, as religiões de Moisés, Jesus e Maomé. Não nos deixemos iludir pelas aparentes diferenças entre essas três confissões religiosas, nem por seus conflitos históricos. Com variantes de detalhes, as três afirmam, no fundo, os mesmos princípios: o tribal monoteísmo patriarcalista, o moralismo fundado em regras estritas, a tendência ao proselitismo expansionista, a intransigência. ‘Não haverá outros deuses diante de ti’, parecem dizer as três, afirmando Javé, Jesus e Alá.”
Jesus insere-se numa longa tradição de profetas que anunciam o advento futuro de um certo Reino de Deus, “a começar por esse extraordinário Isaías, que Jesus, superpoeta, gostava de citar. (…) Pela extrema criatividade imagética, voos quase surrealistas de fantasia, vigor e pujança de expressão e formulação, Isaías tem de ser contado entre os grandes poetas da humanidade, no time de Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Bashô, Goethe.” (p. 167)
Leminski também sabe muito bem que o ofício dos profetas do Antigo Testamento desenvolve-se “no auge das agruras que afligiram o povo hebreu, estraçalhado entre os poderes do Egito e da Babilônia-Assíria. (…) Nesse quadro, os profetas exerceram agudo papel político, como assessores e conselheiros dos reis de Judá e Israel. Alguns pagaram com a vida esse envolvimento direto com a História. Quer a lenda que Isaías, aos cem anos de idade, por intrigas de cortesãos, foi acusado de alta traição, condenado à morte e serrado ao meio. (…) A profecia sempre foi uma profissão perigosa.” (p. 168-169)
Jesus, antes de mais nada, é um judeu, que traz em seu próprio corpo a marca de sua pertença aos hebreus: “era circuncidado”. Já adulto, aos 30, Jesus será batizado por João no Rio Jordão, um rito “articulado com a confissão dos pecados, com a categoria ascética da penitência. (…) Entre os judeus, esse rito parece que começou a competir com o da circuncisão, a ablação do prepúcio, que sempre foi, desde Abrão, a marca distintiva do Ham Israel. A história dos conflitos originais entre o judaísmo e o cristianismo poderia ser, liturgicamente, entendida como uma luta entre os ritos da circuncisão e do batismo.” (p. 171-172)
Entre Moisés e Jesus, há um abismo de tempo, cerca de um milênio. Segundo Leminski, “Jesus veio para exagerar a pureza da doutrina de Moisés” (p. 174):
“Entre Moisés e Jesus, há, pelo menos, um bom milênio. Natural que, em mil anos, a religiosidade judaica tenha evoluído para exigências mais sofisticadas e formas mais complexas e abstratas de expressão. Afinal, quando Moisés formulou a Lei, os hebreus eram um povo de beduínos nômades, recém-fugido do cativeiro no Egito, onde os faraós da XXIII Dinastia os empregavam, como escravos, entre dezenas de outros povos, na edificação dos templos e palácios que fizeram a glória do país do Nilo. Depois disso, o povo hebreu passou por uma extraordinária peripécia histórica, conquistando Canaã, constituindo-se em Estado, triunfando com o rei Davi, prosperando com seu filho Salomão, vivendo, enfim, toda a complexidade política e militar dos reinos semitas do Oriente Médio, primeiro, estraçalhado entre as superpotências egípcia e assíria, depois, invadido por persas, gregos macedônios e, enfim, romanos. Por bem ou por mal, a Palestina e o povo hebreu se viram envolvidos pela imensa onda de helenismo que desabou sobre a Ásia com a invasão de Alexandre. A doutrina de Jesus representa uma resposta criativa aos novos tempos que o povo judeu vivia.” (p. 176)
Jesus não respeita com ortodoxia perfeita os rituais mosaicos, como prova o episódio célebre da adúltera. Uma mulher foi pega no flagra traindo seu marido e “conforme a lei mosaica, a adúltera deveria ser apedrejada pelo povo até a morte” (p. 177). Um sintoma evidente de que estamos diante de uma religião patriarcal e, portanto, machista, é o fato de que o homem que pratica o adultério não é de modo algum sujeito a tais rigores punitivos. Dois pesos, duas medidas. Diante do iminente apedrejamento da adúltera, Jesus lança a provocação:
Quem não tiver pecado
Atire a primeira pedra.
Leminski comenta:
“Homem assim não ia ter vida longa nem morrer na cama. Ia ter um fim como João, seu ‘guru’ e batista, que teve a cabeça cortada por Herodes. Isaías, serrado ao meio. Jeremias, exilado no Egito… A vida de um nabi não era muito segura. Não se brinca, impunemente, com os poderes deste mundo. Jesus chegou a tocar no sacrossanto repouso do sábado, talvez, com a circuncisão, os dois ritos fundamentais do judaísmo. É extraordinariamente minucioso o elenco de proibições, interditos e tabus do sábado judaico, o dia em que se repete, ritualmente, o descanso de Javé, no sétimo dia, depois de criar o universo. No sábado judeu, as atividades são reduzidas a um mínimo. Rabinos extremamente meticulosos, ao longo dos séculos, foram legislando os gestos que violam o sábado, indo do trabalho à alimentação da vida diária à sexual, limitando até o número de passos lícitos, nesse dia de não fazer nada. Ora, sucedeu que, num sábado, discípulos de Jesus passavam ao lado de um campo de trigo. Estavam com fome, agarraram espigas e as comeram. Fariseus estavam presentes e, escandalizados, interpelaram Jesus: ‘Teus discípulos violam o sábado’. É proibido colher nesse dia. Jesus arrasou: ‘O sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado’.” (p. 178)
Agindo menos como teólogo e mais como historiador, Leminski prefere retratar Jesus em seu contexto social e político, em suas interações intersubjetivas, não se aventurando muito a comentar ou criticar as lendas transformadas em dogmas – como a concepção imaculada ou a ressurreição no terceiro dia após a execução. Jesus é essencialmente uma figura subversiva aos olhos do status quo imperial romano, essencialmente um inovador perigoso que é visto com desconfiança pelas autoridades judaicas instituídas. Por isso a biografia leminskiana tem um certo sabor realista, similar àquele que anima o filme de Pier Paolo Pasolini, O Evangelho Segundo Mateus. Podemos polemizar o quanto quisermos sobre os supostos super-poderes milagreiros do nazareno, mas o inegável é que, como figura histórica, Jesus torna explícitos os conflitos, no Oriente Médio, entre Roma e as populações pelo império oprimidas:
“Na teocracia semita, o líder religioso é sempre chefe político. E vice-versa. Basta ver o caso do Irã do Ayatolah Khomeyni. Descendente do rei David, Jesus era o líder carismático do povo numa guerra de libertação contra o imperialismo romano. Sua condenação final diante do poder de Roma, encarnada na pessoa do procônsul Pôncio Pilatos, é significativa: o povo o aclamava, abertamente, como rei. Ao colocar sobre a cruz onde o supliciavam uma placa com a inscrição ‘Jesus de Nazareth, Rei dos Judeus’, os romanos mostravam que não estavam brincando em serviço.
Deixemos de lado as lendas messiânicas sobre o nascimento em Belém. Jesus sempre é chamado de ‘nazareno’, natural de Nazaré. E os primeiros cristãos eram chamados de ‘galileus’. A fábula da fuga ao Egito deu margem a muitas outras lendas. Está em Mateus. Jesus nasce, os magos vêm visitá-lo, o rei Herodes fica sabendo, consulta os sábios para saber onde nasceria o Messias. Citando Miquéias, os sábios apontam Beth-Lehem: Herodes ordena o massacre de todas as crianças com menos de um ano de idade. Avisado por um anjo, José pega a mulher e o filho e foge para o Egito, donde só volta depois que o mesmo anjo, pontual funcionário do Senhor, lhe avisa, em sonho, que dá para voltar, tudo está limpo. Daí, José volta.
A fábula é inverossímil. Só ver a distância a percorrer entre a Galiléia e o Egito, numa época quando as estradas da Ásia viviam infestadas de assaltantes e ainda havia grande quantidade de leões, depois extintos pela caça contínua e sistemática. Não é assim, no entanto, que se trata uma fábula: uma lenda vale por seus significados simbólicos. A fuga da família de Jesus para o Egito era uma volta às origens. Afinal, foi lá que o povo hebreu viveu escravo dos faraós. De lá, Moisés o tirou, para a liberdade, a plenitude, a maioridade, depois da invasão de Canaã (a Palestina), realizada com implacáveis hecatombes, massacres e aniquilação, ao estilo assírio, de cidades inteiras, como conta o Livro de Josué.” (p. 182)
Frequentador assíduo da obra dos linguistas e estudiosos de semiótica, de Propp a Jakobson, de Peirce a Bakhtin, Leminski enxerga também em Jesus um emissor de linguagem que tem suas peculiaridades: “Talvez, à luz de uma estética da recepção, adequasse seu discurso ao universo dos pequenos lavradores e pescadores dentre os quais arrebanhou seus primeiros seguidores. (…) Jesus parece ter sido muito livre na escolha de suas companhias. Os evangelhos estão cheios das queixas dos fariseus pelo fato de Jesus frequentar pecadores, estrangeiros, publicanos (coletores de impostos para Roma), meretrizes e até gente pior.” (p. 188-189)
Jesus não inventou a parábola destinada a provocar epifania: este já era um “gênero linguístico” praticado por uma antiga tradição oriental, praticada por Confúcio na China, pelos gurus da Índia, pelos sufis do Islã etc. (p. 195). A idolatria a textos considerados sagrados também não foi criação de Cristo, que participa de uma cultura onde livros-ídolos, como a Torá, são comuníssimos. De todo modo, os relatos sobre Jesus, em especial as lendas sobre seus poderes prodigiosos e milagreiros, não perderam sua capacidade de encantar uma vasta fração dos humanos, mesmo após dois milênios já transcorridos:
“Nos evangelhos, Jesus vive fazendo milagres, signa, prodígios, que demonstram sua força sobrenatural. São, na maior parte, milagres médicos ou econômicos: cura de doenças (cegueira, surdez, paralisia) ou multiplicação de alimentos (pão, peixe, vinho), o que bem situa Jesus em seu universo de gente miúda, sempre às voltas com a penúria ou a moléstia. De qualquer forma, os signos foram dados. E, quase dois mil anos depois, estão longe de parar de rolar. De desistir de sua capacidade de serem interpretados.” (p. 198)
Tanto é assim que a literatura não cessa de produzir novas variações sobre este tema aparentemente inesgotável: mesmo um livro altamente experimental e vanguardista como o Finnegans Wake de James Joyce dialoga com os evangelhos, e no século XX tivemos muitos romances importantes publicados e que re-interpretaram o mito, caso de Nikos Kazantzakis com A Última Tentação de Cristo ou José Saramago com O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
Em artigo publicado na Revista Cult, o crítico literário Manoel Ricardo de Lima afirma que, com Vida, Leminski elegeu quatro vidas que estariam “posicionadas radicalmente contra algo que mais atinge o homem moderno: o dinheiro… Essas quatro figuras surgem contra o capital”, considera Manoel. Ora, no caso da biografia sobre Jesus, é explícito um retrato de um profeta-poeta anti-capitalista, como exemplificado pelo episódio no Templo de Jerusalém ou pelo Sermão da Montanha, que enuncia que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus.
“Quando Jesus viveu, a economia de todo o mundo mediterrâneo já era monetária. Nas mãos de egípcios, gregos, gauleses, ibéricos, judeus, circulavam sestércios e asses, cunhados por Roma, pequenos círculos de metal trazendo o perfil e o nome do Imperador, onipresença de Roma. No mundo em que Jesus vivia, o dinheiro era a evidência da presença do dominador: o povo de Israel estava nas mãos do goiim, os pagãos, idólatras, politeístas, que não reconhecem o poder de Jeová, que não sabem que só há um Deus e que esse Deus escolheu um povo para crer nele e só nele. Na Judéia, a mais ínfima moeda era um índice da humilhação nacional.” (p. 203)
O César de então cobrava seus tributos através de todo o Império Romano, acumulando capital às custas de multidões espoliadas, de modo que este ímpeto capitalizador acaba identificado por Jesus com o domínio satânico de Mammon. Conta-se que Jesus e seus doze discípulos inclusive puseram seus bens em comum, vivendo efetivamente em um micro-regime comunista, característica que também marcou a seita de Pitágoras cerca de 500 anos antes. De todo modo, “entre os doze principais [discípulos] que o seguiam, a administração do dinheiro comum estava a cargo de Judas Iscariotes. Pois foi Judas, o homem do dinheiro, quem traiu Jesus, apontando-o às autoridades. Por exatamente trinta dinheiros. Trinta belas moedas de prata, com a imagem do Imperador de Roma.” (p. 206)
O contexto sócio-político que engloba a figura de Jesus é portanto dominado por um Império monetarizado e patriarcal, contra o qual ele realiza uma espécie de levante de escravos. Há mais de Spartacus em Jesus do que sonha a nossa vã historiografia. E Nietzsche, no século 19, saberá ler com clareza o quanto a moral do cristianismo representa uma inversão de valores, uma afirmação dos valores contrários aos vigentes nas classes dominantes, numa espécie de revolução moral preconizada pelos escravos contra a moral de seus senhores. Os últimos serão os primeiros, e se não for na Terra… será no Céu.
Leminski também é magistral ao destacar o caráter machista e falocêntrico das instituições sociais e das mitologias culturais dos monoteísmos nascidos no Oriente Médio. É só lembrar que o mito do Gênesis, “fundamento metafísico do patriarcalismo semita”, conta que Eva nasceu depois de Adão e foi edificada a partir de uma reles costela do macho. “Notável na estrutura do mito da origem de Eva é que ele constitui uma inversão da realidade: biologicamente, é o homem que sai da mulher, não a mulher do homem.” (p. 207)
“O patriarcalismo falocrático, próprio dos pastores nômades, que eram todos os semitas em sua origem, encontrou sua tradução mais literal na poligamia, regime no qual a mulher desaparece enquanto pessoa, reduzida a uma fração de um harém. Os antigos hebreus e o judaísmo posterior são fundamentalmente patriarcalistas, bem como o cristianismo e o Islã, derivados diretos da fé de Moisés. Nesses três credos (no fundo, um só), a mulher não tem acesso às funções sacerdotais: os intermediários entre o sacro e a humanidade são rabinos, padres, ulemás. Isso vem de muito longe. No livro do Gênesis, os primeiros grandes patriarcas hebreus (Abrão, Isaac, Jacó) têm muitas mulheres, como cabe a um próspero sheik do deserto. Como distinguir o esplendor do reino de Salomão, sem lembrar das setecentas mulheres do seu harém, entre as quais brilhava, inclusive, uma filha do faraó do Egito? Nesse universo patriarcal, falocrático, poligâmico, a mulher só pode ter uma existência, uma condição ontológica rarefeita, essencialmente subalterna, secundária, menor, algo entre os camelos e rebanhos e os humanos plenos, que são os machos. Daí, os rigores da lei mosaica contra o homossexualismo e a sodomia, instâncias de aguda feminilização do homem, punidos com a morte.” (p. 207 – 208)
Leminski, nietzschianamente, pondera: “religião de escravos, em seus primórdios, o cristianismo passou por um processo de ascensão social até chegar ao palácio dos imperadores romanos. Nessas altíssimas rodas, os primeiros convertidos foram imperatrizes e grandes damas da família imperial.” (p. 210) Apesar de muitos episódios da saga de Jesus envolverem mulheres, seria exagero fazer dele um feminista. Ademais, “não há traços da vida sexual de Jesus… um homem abstinente dos prazeres da bela aparência e do desfrute de fêmeas.” (p. 211) Aquilo que Nietzsche chamará de ideal ascético manifesta-se em toda a pureza em Jesus, negador da carne e da matéria, influência sobre inúmeras gerações de repressores da sensualidade e da sexualidade: “Para nós, geração permissiva, que viemos depois de Freud e Reich, é incompreensível um mundo em que o sexo é negado. Mas isso é possível. Milhões de monges e monjas, padres e freiras, disseram não ao mais imperioso desejo.” (p. 211)
Em um de seus capítulos mais ousados, Jesus Jacobino, Leminski compara o projeto social de Jesus com o de Robespierre. Este último, cognominado “o incorruptível”, liderou a revolução burguesa na França e, como sabemos, “milhares de cabeças rolaram na guilhotina, condenadas pela sumária justiça revolucionária (revoluções não costumam primar pela gentileza nem pelas boas maneiras).” (p. 216) Se Jesus e Robespierre tem algo em comum, sugere Leminski, é isto: “Eles querem o exagero, a pureza de um princípio. (…) Erro pensar que Jesus veio abrandar os rigores farisaicos da religião de Israel. Ele veio para tornar mais agudas as exigências dessa fé. (…) Ninguém, porém, que conheça os evangelhos pode deixar de ver o caráter violentamente utópico, negador (utopias são negações da ordem vigente: o imaginário é subversivo), prospectivo, des-regrado (r) da pregação de Jesus.” (p. 218)
Profeta, poeta, utopista: Jesus aparece a Leminski como tudo isso junto e misturado. Este messias, tão incômodo quanto um Spartacus (ambos terminaram pregados na cruz pelos romanos), demandava um outro mundo e teve sua boca calada com violência. Em uma interpretação que talvez soe herética aos ouvidos daquelas seitas cristãs mais conservadoras e elitistas, Leminski reclama que a utopia de Jesus seja inserida na galeria do socialismo utópico. E denuncia os inúmeros desvios e perversões que transformam a mensagem de Jesus de Nazaré em algo capaz de produzir Cruzadas, Inquisições, Massacres.
“O Reino de Deus era a restauração da autonomia nacional do povo hebreu. Sobre isso, a autoridade romana não se equivocou, ao pregar o profeta na crux, exemplar suplício com que os latinos advertiam os rebeldes sobre os preços em dor da sua insurreição. Esse o suporte material, sócio-econômico-político, da pregação, por Jesus, de um (novo) Reino, um (outro) poder. Nessa tradução/translação do material para o ideológico, Jesus forneceu um padrão utópico para todos os séculos por vir. As duas grandes revoluções, a Francesa e a Russa, estão carregadas de traços messiânicos de extração evangélica. Ambas prometeram a justiça, a fraternidade, a igualdade, enfim, a perfeição, o ideograma da coisa-acabada projetada sobre o torvelinho das metamorfoses. Natural que seja assim. Afinal, as utopias são nostálgicas, saudades de uma shangrilá/passárgada, estado de excelência que lá se quedou no passado, Idade de Ouro, comunidade de bens na horda primitiva, antes do pecado original da divisão da sociedade em classes, plenitude primitiva, paleolítica, intra-uterina, antes do pesadelo chamado História.
A revolução é o apocalipse, o Juízo Final de uma ordem e de uma classe social: o cristianismo primitivo cresceu à sombra da expectativa da segunda vinda, quando Jesus, vitorioso sobre a morte, voltaria, apocalipticamente, para julgar, ele que foi julgado e condenado pelas autoridades: o retorno do reprimido, a vendeta, o acerto de contas entre os miseráveis da terra e seus prósperos opressores e exploradores. (…) O programa de vida proposto por Jesus é, rigorosamente, impossível. Nenhuma das igrejas que vieram depois invocando seu nome e cultuando sua doutrina o realizou. Religião saída de Jesus não poderia ter produzido Cruzadas, inquisição, pogrons e as guerras de religião entre católicos e protestantes, que ensangüentaram a Europa nos séculos XVI e XVII. O programa de Jesus é uma utopia. Curioso que, na frondosa bibliografia sobre os socialismos utópicos, nunca apareça a doutrina de Jesus como uma das mais radicais.” (p. 221)
Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Publicado em: 14/06/15
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Luan
Comentou em 06/08/18