Em <palestra realizada durante a ADE (Amsterdam Dance Event)>, no complexo cultural <Melkweg (“Via Láctea” em dutch)>, a carismática e sagaz Josephine Zwaan contou-nos sobre seu trabalho em uma diversidades de frentes: como <rapper – através de seu alter-ego Suzooki Swift>, como <co-criadora de uma plataforma de aprendizado e colaboração para mulheres e pessoas queer que produzem música chamada Rosetta (saiba mais em https://www.rosettabeats.com/)>, como pesquisadora universitária e professora de artes. Além disso tudo, ela também já realizou trabalhos como <cantora-compositora na base do voz-e-violão>. Uau, são tantas as frentes de atuação que, vivesse ela na Renascença, certamente seria chamada de polímata!
Ouça e conheça algumas produções da ROSETTA:
Encarando a tarefa desafiadora mas salutar de enegrecer o debate sobre produção musical digitalizada em nosso mundo dominado por celulares, notebooks e internet banda-larga, <a artista, produtora, pesquisadora e professora Josephine Zwaan> vem trabalhando em profundidade o tema do loop descolonizado.
Filha de um músico percussionista nascido em Gana e que emigrou para a Holanda, ela nos revelou que seu pai, desde os anos 1970, para além dos batuques, seja com as mãos direto nos tambores ou mediados por baquetas, começou a explorar a questão: como podemos fazer as máquinas soarem africanas? Com a entrada em cena dos DJs, das turntables, dos sintetizadores e do movimento Hip Hop, a problemática também pode ser descrita pela expressão que Zwann adotou como cerne de sua pesquisa teórica e prática: como descolonizar o loop?
Zwaan atualmente leciona na <Herman Brood Academia, na Holanda>, e sua <dissertação de mestrado sobre o tema que temos em foco foi realizada na Universidade de Amsterdam (UvA), no setor de Estudos de Mídia, e pode ser acessada/baixada na íntegra e sem nenhum custo>.
Não se trata apenas de propor o loop descolonizado como horizonte utópico, como tarefa ainda realizar, superando a fixação eurocêntrica na teoria musical erudita e na centralidade do piano, deslocando o foco para a práxis cultural africana e para a centralidade da percussão – tudo isto marca presença em seu trabalho, mas Josephine não está falando só de futuro, mas de um percurso que já está sendo trilhado no presente.
Zwann sabe muito bem que muitos artistas visionários já estão realizando o que chama de de-colonize the loop nos últimos anos – é só pensar em beatmakers hoje lendários como J Dilla, Madlib ou DJ Shadow. Yo, o loop descolonizado já tá bombando em muitos auto-falantes e headphones! Deguste um dos paradigmas desta nova arte:
MADLIB + DILLA – Champion Sound
(Lançado pela Stone Throw Records, 2003)
Um dos elementos mais interessantes do trabalho de Zwaan é a crítica pormenorizada que ela realiza de ferramentas para a criação musical digital como Ableton, Logic Pro ou Fruit Loops (FL Studio), softwares que devem ter seus méritos reconhecidos, já que incluem o loop como elemento crucial de seu sistema, mas que segundo ela também precisam ser criticados e descolonizados.
Em <entrevista ao ESNS, Josephine pontuou>: “I was doing research for my thesis on decolonising music production software. Reading African philosophy and African ideas on music inspired new ideas on how production software could function. Now, all the software programmes are designed based on Western music theory and based on the piano. But what if we started from the drum, which is at the core a different instrument – with an entirely different logic. From that, you can understand beat making in a very different way.”
Mergulhando nos estudos sobre Filosofia Africana e banhando-se nas águas ancestrais da sabedoria Ubuntu, Josephine Zwaan nos traz a noção de que a música eletrônica, em sentido abrangente, poderia se beneficiar muito de uma compreensão aprofundada da concepção africana de Tempo. Em sua explicação, ela opõe o Tempo ocidental, emblematizado pela rigidez do relógio, com suas subdivisões rígidas e idênticas, ou pelo metrônomo, com seus beats separados por frações iguais de silêncio, a despeito da velocidade (dos bpms), com o “Tempo africano”, muito mais baseado na circularidade e numa noção de rítmica que abre horizontes para o swing e a síncope.
O trabalho de Zwann é de gigantesca relevância em nossos tempos onde a música eletrônica é de uma pervasividade que beira a onipresença, enquanto testemunhamos a rápida “invasão da I.A.” na produção musical.
Na mesma noite, após a palestra de Josephine, <o coletivo Africadelic> que ela integra exibiu o documentário <Above and Beyond – A Ascensão Global do AfroHouse>, filme excelente como panorama do cenário de house africanizado em 5 países (com destaque para a cena da RISE em Berlim). A versão para cinema do filme tem 2 horas de duração, mas você também pode assistir a versão condensada, de 1 hora, produzida e veiculada pela Deutsche Welle (DW):
Como abertura, a ADE em parceria com a Africadelic também exibiu o curta-metragem <Against All Odds de Thok Koang Thor>, uma obra sobre a refugiada que se transformou em DJ de sucesso Anita, que retorna ao campo de refugiados de <Kakuma, no Quênia>, onde viveu, para gravar os cânticos e batuques de seu povo, para depois inseri-los em sua música eletrônica. Taí: descolonizou o loop, sampleou a África, botou no caldeirão e no melting pot da nova música global emergente a partir de um cerne que não é um centro: a diáspora através do que Paul Gilroy chamou “O Atlântico Negro”.
O trabalho de Josephine Zwann também expressa algo muito interessante na renovação radical da universidade enquanto espaço de produção de conhecimento – um confronto criativo e necessário com o eurocentrismo ainda reinante em muitas instituições.
Que um mestrado tenha sido realizado sobre a descolonização do loop, na Universidade de Amsterdam, é um sinal de novos tempos onde os estudos culturais enfim passam a levar as sabedorias, as epistemologias, as cosmovisões e as práticas artísticas da África a sério. Li a dissertação com muito gosto e proveito, apreciando em cada frase os debates que Zwann estabelece com outros autores – por exemplo, reconhecendo os méritos e as insuficiências de outras obras que enfrentam problemática semelhante, como Mark J. Butler em Playing Something That Runs.
Em paralelo à maré montante de estudos sobre <descolonização> na Academia, sobretudo no âmbito das ciências humanas, erguem-se numa onda digna de nota as práticas descolonizantes nas artes. Isto só torna mais sobressalente a questão: como a gente faz, na prática, para descolonizar a produção musical contemporânea, plenamente embarcada na enxurrada da digitalização e da parafernália eletrônica?
Esta questão mais geral implica uma série de metas bem específicas: por exemplo, se eu quisesse compor uma canção que tivesse batidas eletrônicas que soassem africanas, como eu faria para que isto acontecesse? Que softwares seria melhor utilizar? Como um beatmaker poderia se utilizar das táticas de loop e de sample, hoje pervasivamente presentes em muito do que ouvimos, para ensinar um computador a soar, por exemplo, como soam os tocadores de conga de Cuba,ou como a galera que toca maracatu em Pernambuco?
Afinal de contas, descolonização não é nem deve ser apenas teoria, limitando-se a um “pensamento decolonial”, pois refere-se sobretudo às lutas por libertação realizadas pelas colônias contra os impérios europeus no decorrer dos século 19, 20 e 21. Descolonização exige a práxis histórico-cultural de superação tanto das estruturas de dominação econômico-políticas instaladas e perpetuadas pelo aparato imperial, quanto das formas subjetivo-emocionais implantadas pelo projeto colonizador e com frequência internalizadas pelas pessoas. Ao “hospedar” dentro de si o opressor, os oprimidos/colonizados tornam-se cooptados pelo opressor-colonizador, tornando-se muitas vezes cúmplices deste, como ensinaram autores como Paulo Freire e Memmi.
Podemos dizer que trata-se de descolonizar o fora e o dentro. De deixar para trás, como uma serpente que foi sábia o bastante para abandonar uma pele que não mais lhe serve, tanto a economia-política quanto a “forma-sujeito” (como a chama Anselm Jappe) que o projeto imperial-colonizador intenta que siga imperando.
Uma produção artística decolonial e decolonizante urge diante das catástrofes produzidas pelo mindset imperial que, com seus tentáculos, penetra até mesmo nos beats que ouvimos e com os quais dançamos – nos quais, sem que nem mesmo suspeitemos, muitas vezes a África e a Diáspora foram excluídas, e com grande prejuízo para a música.
Além disto, descolonizar a produção musical significa trabalhar em prol da inclusividade de corpos não-binários e não-brancos que muitas vezes foram trancadas para fora dos espaços de visibilidade e expressão por não se submeterem aos paradigmas hegemônicos. Trata-se dum kick out the jams que chuta para escanteio a supremacia branca e a teoria musical ocidental em prol da entrada em cena de uma alter-estética proposta, em uma miríade de formas, por corpos queer e pessoas-de-cor.
Abra seus ouvidos e expanda seus horizontes: o círculo vicioso da colonialidade imperial está caindo em ruínas e levanta-se, em volume de som e expansão social, a multiplicidade das artes musicais decoloniais. So please lend your ears:
Eduardo Carli de Moraes
Amsterdam, Novembro de 2023
Cobertura do evento ADE (Amsterdam Dance Event) @ Melkweg
Publicado em: 09/11/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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