“Legalize a planta, liberdade para quem usa!” lia-se na faixa que esteve na vanguarda da 13ª edição da Marcha da Maconha em Goiânia. Realizada no Domingo, 23 de Junho de 2024, com participação de aproximadamente 1.000 manifestantes (*), e organizada pelo longevo Coletivo Antiproibicionista Mente Sativa, a mobiização ocorre em encruzilhada histórica para a sociedade brasileira.
Se, por um lado, o STF – Supremo Tribunal Federal julga nos dias que correm a descriminalização da maconha (tendo formado maioria, em 26 de Junho de 2024, em prol da descriminalização da posse de até 40g ou 6 pés da planta), por outro lado nosso Congresso Nacional – de hegemonia conservadora, direitista e dominado pelas bancadas da Bala, do Boi e da Bíblia – ameaça-nos com um aterrorizante retrocesso encarnado na PEC 45 (contestada por entidades dos direitos humanos como Conectas).
“Toda maconha é terapêutica, toda prisão é política!”, apregoava outra faixa estendida pelos manifestantes na Praça Universitária. A generalização provocativa veiculada pela frase é uma fisgada válida nas certezas caducas do senso comum: de fato, não existe maconha que não seja terapêutica (“só” recreativa) e qualquer aprisionamento de cidadão por posse da planta não tem nada de politicamente “neutra”, sendo sempre o fardo desproporcional daqueles com um grau superior de melanina na epiderme.
As evidências do racismo encravado na guerra às drogas se acumulam: no Estado de São Paulo, a polícia “enquadrou 31 mil negros como traficantes em situações similares às de brancos usuários”, como noticiado pela Folha de S. Paulo. Em seu artigo, Leonardo Fuhrmann, citando pesquisa do Insper, pontua: “Para a polícia de São Paulo, a diferença entre um traficante e um usuário de drogas pode estar na cor da pele. Ainda mais quando o acusado é flagrado com pequenas quantidades de maconha. Em razão disso, 31 mil pessoas pardas e pretas foram enquadradas como traficantes em situações similares àquelas em que brancos foram tratados como usuários.” (FUHRMANN, 2024, FSP – Leia na íntegra)
Um evento artístico-cultural sem precedentes aqui na capital de Goiás trouxe uma boa dose de ineditismo à edição 2024 da Marcha. Desta vez tivemos algo mais do que cidadãos conscientes indo às ruas, em audaz postura de desobediência civil, para impelir a sociedade brasileira a repensar e refazer sua catastrófica Guerra às Drogas.
Um palco foi montado, com ótima estrutura de som e iluminação, sombreado por uma tenda colorida estilo rave, para que o dia fosse repleto de performances culturais de rappers, DJs, bandas e performers (tocaram Fritos da Terra feat. Milca Francielle, @Bloco Batuque Sativa, Banana Bipolar, MaLik Lion, @Artur Rodrigues, União Clandestina, dentre outros).
Os discursos – inclusive de autoridades políticas eleitas como o vereador Fabrício Rosa e o deputado estadual Mauro Rubem do PT – Partido dos Trabalhadores – também ganharam em decibéis e em respeitabilidade. Como se o protesto dissesse: “Respeitem nosso palco, respeitem nossos P.A.s!”
Todo o processo, nos últimos meses, para realizar a proeza de realizar o “festival” artístico-cultural na PU envolveu uma empreitada conjunta que reuniu Coletivo antiproibicionista Mente Sativa, em uma série de reuniões ocorridas em A Casa de Vidro, e com o apoio crucial de @Maes de Cannabis, @Santa Ganja e outras entidades em prol de direitos cannábicos da cidade. Demandou-se alvará da AMMA, ponto de energia elétrica da Equatorial, além de ter-se realizado reuniões com a chefia da Polícia Militar.
O movimento demonstrou sua capacidade de ser parcialmente “legalista”, jogando com classe o jogo jurídico que desmonta os pretextos para a repressão policial violenta. Neste sentido, quero saudar as lideranças que cuidaram – e muito bem – de todos os aspectos jurídicos e que tornaram menos provável uma confrontação com a violenta PM de Caiado – o “bajulador de genocidas” (tanto do genocida Bolsonaro quanto do genocida Netanyahu).
Batucamos nossa revolta contra as leis injustas que continuam a desgraçar o Brasil, condenando-os ao apartheid social e ao racismo policial carcerário banalizado, em uma Marcha de rara beleza e expressividade. Para muitos de nós, ali, queimava em nós a sensação de culminância. Uma Marcha é sempre a culminância de muito trampo prévio – e neste 2024 tive a imensa satisfação de acompanhar de perto e de dentro toda a complexidade deste processo social.
Na Semana Pela Legalização que precede a Marcha, e antes ainda no evento cultural do 19 de Maio, A Casa de Vidro serviu como uma espécie de QG do ativismo cannábico e da educação em prol de um outro mundo possível, um que estamos coletivamente bolando, sem guerra e com nossa planta predileta legalizada para cultivo e usufruto.
Chega da truculência proibicionista e da estupidez negacionista: pois reprimir com bruteza e negar os benefícios terapêuticos e culturais da cannabis e do cânhamos legalizados é tapar o sol da verdade com a peneira furada dos preconceitos tacanhos.
Goiânia, 24-06-2024
Com fotos de Ariana Tozzatti
2. BOLANDO UM FUTURO SEM GUERRA (às pessoas negras e periféricas)
Penso que a Marcha da Maconha de Sampa foi muito feliz na consigna escolhida para aquela que Mídia Ninja descreve como a maior Marcha que já rolou no Brasil: “bolando um futuro sem guerra”. Em Goiânia, outra faixa aprofundou o significado da reivindicação, deixando nítido que não se trata de nenhum pacifismo ingênuo, mas da percepção de que a guerra em curso não é contra substâncias, mas contra pessoas. Certas pessoas muito mais do que outras: a mal nomeada Guerra às Drogas é na verdade uma “guerra às pessoas negras e periféricas”.
Em recém-lançado artigo, “Proibicionismo e a guerra às drogas no Brasil: uma análise sociológica sob a perspectiva da governamentalidade biopolítica e o racismo de Estado”, Guilherme Borges da Silva expressa assim a conjuntura e as razões para nossa insurgência:
“Historicamente, a relação entre substâncias psicoativas e sociedade é intrincada e multifacetada, refletindo não apenas práticas culturais e rituais, mas também dinâmicas de poder, controle e marginalização. As drogas, em suas variadas formas e contextos, têm sido simultaneamente celebradas por suas propriedades medicinais e ritualísticas e demonizadas por seus potenciais efeitos adversos e associações com criminalidade. Nesse contexto, a abordagem estatal em relação ao consumo de drogas não pode ser compreendida de forma isolada, mas sim como parte integrante de um complexo entrelaçamento de história, política e cultura. A criminalização ou regulação do uso de determinadas substâncias reflete, em muitos aspectos, as tensões e conflitos inerentes à própria construção da noção de direitos humanos.
(…) O presente ensaio, ancorado na teoria foucaultiana, busca desvendar o intricado processo de formação e manutenção do proibicionismo das drogas no Brasil. Mais especificamente, pretende-se elucidar como essa política se estabeleceu e perpetuou através de uma lógica que pode ser interpretada sob a lente do “racismo de Estado”. A centralidade deste estudo reside em evidenciar, com base na literatura acadêmica e científica nacional, que o proibicionismo em relação a certas substâncias psicoativas é intrinsecamente ligado ao papel preponderante da medicina nas relações de Estado, sob a ótica do Biopoder. Esta medicina, longe de ser um mero instrumento de cura, foi cooptada por elites dominantes com o intuito de monitorar, regular e, em última instância, controlar comportamentos sociais e culturais de segmentos marginalizados da população, com ênfase na população negra e/ou residente em periferias urbanas. Adicionalmente, este trabalho se propõe a ilustrar, por meio de dados estatísticos, como o proibicionismo, intensificado pela política de “guerra às drogas”, tem agido de forma desproporcionalmente prejudicial a essas parcelas, resultando em mortes tanto no plano simbólico quanto no físico.
Neste contexto, a necessidade de uma reavaliação crítica e profunda das estratégias e políticas adotadas torna-se não apenas relevante, mas urgente. O proibicionismo, ao ser analisado sob uma lente crítica, revela-se como uma política que, muitas vezes, reflete e perpetua desigualdades estruturais e relações de poder assimétricas. No caso brasileiro, essa dinâmica é ainda mais acentuada, dada a histórica intersecção de questões raciais, socioeconômicas e políticas que moldam o cenário nacional. Este ensaio, ao se debruçar sobre as particularidades do proibicionismo de drogas no Brasil, tem como objetivo não apenas desvendar as complexidades e contradições dessa política, mas também fomentar uma reflexão crítica sobre as estruturas de poder que a sustentam. Além disso, busca compreender como essas estruturas influenciam e são influenciadas pelas relações sociais em um contexto mais amplo. Ao fazer isso, aspira-se contribuir para a formulação de políticas públicas mais justas, inclusivas e, acima de tudo, respeitosas dos direitos e dignidade de todos os cidadãos…”
(GUILHERME BORGES DA SILVA, artigo no livro Sobre os Direitos Humanos: fundamentos – críticas – perspectivas. 2024. ACESSE O PDF COMPLETO: https://drive.google.com/file/d/1kUI1Lg15_V_fGlopVUU_1bAPAw8919r-/view?usp=drive_link)
Debate importante: a nossa Marcha da Maconha em Goiânia foi expressiva, de rara beleza, com vários componentes de ineditismo (como o festival cultural na Praça Universitária), e agora segue ressoando em fotos, vídeos, zines e posts de rede social, mas o fato é que somente 1.000 manifestantes (aproximadamente) saíram às ruas para se somar à mobilização. Qual o motivo de tal esvaziamento e tal apatia diante de uma encruzilhada histórica tão crucial como esta que vivemos com o julgamento no STF e com a PEC no Congresso? O explica que menos gente do que o esperado tenha comparecido?
Há relatos de que o fenômeno ocorre Brasil afora – os maconheiros no armário? A exceção foi a Marcha de São Paulo, que reuniu cerca de 200.000 manifestantes e foi provavelmente a maior da história do Brasil. Em vários outras cidades, relata-se esvaziamento em relação a anos anteriores e em artigo recente Monique Prado questiona: “A diminuição da presença de manifestantes em atos me parece ser um desafio que não é restrito à pauta da legalização da maconha e outras drogas. Ainda assim, é muito simbólico presenciar este esvaziamento no ano em que o Congresso nos ameaça com um flashback ditatorial por meio de uma proposta que busca modificar uma cláusula pétrea da Constituição para nos retirar direitos e criminalizar o consumo e o porte de substâncias ilícitas.” (Leia em: https://cannabismonitor.com.br/monique-prado-as-marchas-da-maconha-nao-podem-parar/)
Em breve, A Casa de Vidro lançará seu novo documentário, o quarto já realizado sobre a pauta – urgente e necessária – que aqui abordamos novamente, tentando somar ao trampo coletivo de ir bolando um futuro sem guerra.
APRECIE TAMBÉM:
“Conectas denunciou no Conselho de Direitos Humanos da ONU, nesta segunda-feira (24), a tramitação da PEC das Drogas no Congresso Nacional. Para a organização, a proposta aprofunda os problemas da atual legislação penal, que não tem parâmetros capazes de distinguir o uso de drogas do tráfico, o que afeta principalmente jovens negros.
“É urgente que o Estado brasileiro se abstenha de legislar contra direitos humanos no sistema de Justiça criminal e se comprometa com uma política de drogas fundamentada na redução de danos, implementando medidas de atenção e cuidado em liberdade que sejam construídas com a participação da sociedade civil, especialmente das pessoas que são mais afetadas”, diz o discurso.
Para a Conectas, o Brasil precisa fazer uma mudança de abordagem, sugerindo a adoção de políticas de drogas baseadas na redução de danos e que envolvam a sociedade civil na construção dessas políticas.”
Publicado em: 25/06/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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