“Os que lavam as mãos o fazem numa bacia cheia de sangue.”
Bertolt Brecht
Inconsciente de seu próprio ridículo, o Estadão sujou as suas mãos de sangue ao descrever o embate eleitoral que opôs a chapa Fernando Haddad & Manuela D’Ávila à dupla Bolsonaro & Mourão, em 2018, como algo que colocava ao eleitorado uma “escolha muito difícil”. Hoje é difícil não gargalhar com sarcasmo da bizarrice ou mesmo da estupidez de tal avaliação. Feita, aliás, pelo mesmo jornal que, em 30 de Maio de 2021, resolveu mentir por omissão ao esconder as gigantescas manifestações de rua do #29M. O Estadão não esteve sozinho na cumplicidade com a barbárie: a aliança em prol da morte e da destruição foi assustadoramente ampla.
Hoje, poderíamos estar sendo governados por um professor que honra o legado de Anísio Teixeira e Paulo Freire, ex-Ministro da Educação do governo Lula que em seu período no MEC (2005-2012) comandou a realização de alguns dos mais significativos avanços da educação pública brasileira em toda a história da Nova República. Quantas dezenas de milhares de vidas brasileiras teriam sido salvas caso Haddad e seus ministros estivessem à frente do combate à pandemia e do financiamento estatal da ciência?
A pergunta “e se…?”, neste caso, é legítima para nos fazer refletir sobre a bifurcação histórica anterior e sobre os caminhos que não tomamos. Caso tivéssemos escolhido outro rumo na encruzilhada pretérita, certamente teríamos sido conduzidos a outro presente, bem diferente de um Brasil reduzido a um imenso necrotério pelo Capitão Cloroquina e sua corja, responsáveis por um estratégia genocida no trato com os rebanhos humanos que lograram iludir e conduzir ao matadouro.
Em 2018, em páginas infelizes de nossa história, uma maioria eleitoral foi manobrada pelos profetas do fake, pelos “profissionais da violência”, pelos lambe-botas de torturadores. E o poder pendeu para o pólo do miliciano e dos generais. Com o beneplácito de um TSE acovardado diante das bravatas militares e que não teve a decência de cassar a chapa que tantos crimes cometeu (a começar pelo Caixa 2 para disparo de discurso-de-ódio no Zapistão, revelado em plena campanha eleitoral pela jornalista Patrícia Campos Mello da Folha de São Paulo). A chapa dos fascistas-de-farda permaneceu impune de todas as falcatruas que cometeu em prol da cooptação de eleitores-ovelhas para que votassem “17”.
Em meados de 2021, comprovou-se o que já dizíamos em 2018: o eleitor que apertou 17 nas urnas saiu deste processo com as mãos manchadas de sangue. Mesmo antes da pandemia, em discursos e práticas, Jair Bolsonaro já se anunciava como genocida-em-potencial: criticava a ditadura militar por ter matado pouco, sugerindo como número ideal de vítimas cerca de 30.000 pessoas.
O cara outrora conhecido como “Seu Jair”, morador da Casa 58 do Vivendas da Barra (ainda queremos saber: quem mandou o vizinho do presidente assassinar Marielle Franco?), mais do que cumpriu sua meta mortífera: ele produziu cadáveres em número mais de 10 vezes superior àquele que propos que a ditadura deveria ter assassinado. Ao aliar-se à covid-19, sabotando o isolamento social, atacando máscaras e atrasando a vacinação, podemos dizer, seguindo Pedro Hallal (epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas), que o governo Bolsonaro tornou-se responsável por pelo menos 3/4 (três quartos) das mais de 500.000 mortes evitáveis da pandemia (considerando apenas as vítimas entre Março de 2020 e Junho de 2021). Sim, negacionismo mata – e quanto mais bolsonarista é uma cidade, mais morte e adoecimento em massa nela se produz.
O assassino-em-massa que o Capitão Cloroquina revelou ser em 2020 e 2021 já estava prefigurado lá atrás, nas posturas daquele psicopata que chegou a ameaçar o ex-presidente FHC de fuzilamento. Assim como Arendt diagnostica no criminoso nazista Adolf Eichmann uma vasta irreflexão, uma perigosa idiotia, o caso do seu Jair pode ser lida em chave análoga: em toda sua lamentável trajetória de vida está explícita sua falta de educação, a ausência nele da capacidade para o pensamento crítico e auto-crítico, gerando um caráter presunçoso e violento, um pensamento travado e tosco, uma atitude que goza com um sadismo-ostentação, deleitando-se ao tripudiar sobre as normas morais mais elementares.
A psicopatia era um elemento inegável nas posturas daquele sujeito de-formado que posava, com sorrisinho perverso, para fotografias onde não tinha um pingo de vergonha em celebrar como seu livro de cabeceira: A Verdade Sufocada, de Brilhante Ustra, um dos chefes do aparato de tortura da ditadura. “Ustra Vive”, celebra a familícia em camisetas e memes, colocando de maneira explícita um criminoso monstruoso como se fosse digno de ser tratado como ídolo. Ustra, a quem Bolsonaro celebrou, enquanto deputado do baixo clero, quando participou da facada-nas-costas contra Dilma Rousseff conhecido como impeachment de 2016 – e que foi evidentemente um golpe de Estado que empoderou as ratazanas insepultas da ditadura assassina.
Este é o homem que jurou com a mão sobre a Bíblia que iria governar com o lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Uma notável falta de educação para o senso crítico levou dezenas de milhões de cidadãos que se dizem cristãos, ou seja, seguidores de um messias que foi torturado até a morte aos 33, a apoiarem este anti-Cristo medonho, este falso-messias encarnado, que sempre foi visto fazendo apologia a torturadores e lançando combustível no caldeirão do cristofascismo militarista que hoje nos desgoverna.
Foi este ser humano fracassado e perverso, encarnação de um caráter deformado por ideologias odientas, que conseguiria um score máximo na Escala F de Adorno (que media a personalidade autoritária essencial à constituição de um regime fascista), que foi transformando, em aliança com a covid19, o Brasil num imenso necrotério. Na necrópole Brasil, há futebol pra distrair as massas do genocídio, além de mentiras sem fim circulando pelo Zapistão, mas na prática o trabalhador precarizado, a quem se concedem migalhas de auxílio emergencial, precisa escolher entre morrer de fome ou por sufocamento virótico. É esta a “liberdade” que o bolsonarismo nos concede.
Do ponto de vista da educação, em meio ao show de horrores sem interrupção que é este desgoverno de mal-educados, há uma cena emblemática que fala muito do lodaçal profundo em que nos metemos. Lembram daquela foto do CPF Cancelado, em que o presifake posava sorridente ao lado do apresentador Sikêra Júnior, e na qual aparecia também o Ministro da Saúde, Queiroga?
Pois bem, há um carequinha de óculos, também super sorridente na foto, que é ninguém menos que Milton Ribeiro, o Ministro da Educação do Brasil. O sucessor de Abraham Weintraub no MEC não parece sentir um pingo de vergonha ao deixar-se fotografar em tal contexto que insulta a inteligência de qualquer cidadão a quem ainda tenha restado uma migalha de senso crítico. Dando voz aos secundaristas espertos e críticos, a UBES tuitou: “Ele deveria estar trabalhando para amenizar os impactos da pandemia na educação e não fazendo apologia à morte.”
Como lembrou Fernando de Barros e Silva em seu artigo “País Cancelado”, na Revista Piauí (Maio de 2021, pg. 7), o CPF Cancelado “é o jargão usado por policiais e grupos de extermínio para se referir com júbilo à execução de alguém (supostamente um criminoso).” O que o Ministro da Educação faz nesta cena tétrica, com aquele sorrisinho cretino de orelha a orelha?
Vou reiterar: o responsável supremo pela condução da política pública educacional do país é flagrado neste contexto macabro, onde cidadãos comuns são anunciados pelas autoridades como matáveis, onde o assassinato extra-judicial perpetrado pelo Estado é tido como uma ninharia, digna de gracinha e de meme (“CPF cancelado! KKK!” – dá pra imaginá-los conversando pelo Zap, com emoticons gargalhantes acompanhando uma enxuradas de rs).
E no entanto isto não causa grande escândalo, isto parece para a maioria de nós como algo banal. Sim, a Bozocracia banalizou tanto o mal, memeficaram tanto o horror, bestializaram tanto nosso cotidiano, que diante de cenas bestiais e horrorosas como estas nós não reagimos com revolta à altura, ou pior: muitos de nós achamos tudo isso normal.
Que o Ministro da Educação possa ser um des-educador profissional ou que o general Pazuello possa ser empossado como Ministro da Saúde sem nem saber o que é o SUS, isto é normal? Eles banalizam o mal, e todo mundo que acha tudo isto normal acaba por banalizar o mal em cumplicidade com o maioral, acaba por entrar em aliança cúmplice com o mal em sua encarnação hierárquica maior: aquele que está lá no topo do Executivo Federal oferecendo cloroquina até às emas.
Não! Não há nada de normal, nem deve ser tido como banal, nós termos tido alguém da qualidade de Fernando Haddad no MEC e agora termos como Ministro da Educação alguém que passa pano pra fascista, celebra BOPEs e CPFs cancelados, enquanto aperta o torniquete dos recursos públicos para matar de inanição UFs e IFs, cada vez mais subfinanciados. Como relatou Brasil de Fato, em Maio de 2021: Com verba de 2004 e dobro de alunos, universidades federais podem parar em julho – Baixo orçamento faz com que as universidades cortem bolsas de estudos, prejudicando diretamente os alunos mais pobres.
O Ministro da Educação que Bolsonaro escolheu para o Brasil pandêmico é uma afronta à inteligência – assim como todo o resto da sua Esplanada da Barbárie, para a qual a estupidez parece ser condição sine qua non para empossamento.
O Ministro Milton é também teólogo e pastor, numa mistura altamente tóxica para a educação laica e libertadora no país. Está alinhado aos valores dogmáticos que animam Damares. Suponho que ele presuma ser um “homem-de-deus”. Mas que estranha concepção do divino tem estes homens que exibem, sem culpa, sua filiação a um projeto que cancela CPFs às centenas de milhares, sem consciência do horror de que participam! Gozosos com a fama como se estivessem num reality show, enquanto mais de 500.000 vidas perdidas que estão agora rodeadas pelo choro, pelo luto, pela indignação dos que sobrevivem mas estão amputados de um vínculo. Como ousam eles brincar com plaquinhas de CPF cancelado, diante de uma montanha altíssima de vidas perdidas para a aliança entre a covid19 e o Bolsonavírus covard-17?
“Que a imagem controversa tenha sido produzida durante a visita de Bolsonaro a Manaus, epicentro da catástrofe sanitária e caso exemplar da negligência criminosa do governo no combate à pandemia, foi uma coincidência que só acentuou a inevitável associação entre os CPFs cancelados e as vítimas da Covid19 em um momento em que o país se aproximava de 400.000 mortes. Na foto, o uso de máscaras está reservado às figuras periféricas…” (Piauí, op cit)
Pergunto de novo, reiterando meu assombro diante do horror que muitos normalizam: por que o Ministro da Educação do Brasil, flagrado em tal cena comprometedora, não foi alvo de nenhum escândalo público, não gerou sequer um twittaço de revolta, quando merecia nada menos que um Tsunami da nossa indignação?
Eis mais um sintoma do quanto estamos naturalizando o absurdo, suportando o insuportável, nesta conjuntura onde o fascismo Bolsonarista não cessa de puxar o nível para baixo e produzir um aparato de banalização do mal: hoje em dia o mal vem em enxurradas, mais caudalosa do que a torrente de lama tóxica de Brumadinho. A ponto de começarmos a achar que são coisas de pouca monta a fala de Salles sobre “passar a boiada”, ou o sorriso cafajeste de Milton Ribeiro ao lado de um psicopata fascista, onde homens brancos da elite do atraso celebram a morte violenta de cidadãos assassinados pela polícia, sem direito à defesa ou a julgamento.
Barros escreve ainda na Piauí: “só consigo enxergar [nesta imagem de Milton Ribeiro] um daqueles tipos pervertidos do patriarcado que povoam o teatro de Nelson Rodrigues. Lado a lado, o idiota e o sádico sorridentes também não deixam de ser uma metáfora do próprio Bolsonaro.” (LEIA MAIS: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/pais-cancelado/)
Adorno falou que a educação nunca mais poderia ser a mesma depois de Auschwitz. O mesmo vale para o Brasil após o Bolsonarismo: quando Seu Jair estiver morto e enterrado, a patologia social que ele representa e da qual é líder ainda estará entre nós. Mais perigosa que qualquer vírus. Será preciso educar para que estes horrores que na atualidade encaramos de frente nunca se repitam. Sabendo, se formos lúcidos, que estes horrores tem a mania de se repetirem.
O que é bastante bizarro em nossa conjuntura é também o fato de que fascistas mal-educados, que buscam cancelar nosso futuro e pegar um atalho para o passado mais tenebroso, gostem de atacar a nós, educadores comprometidos com valores libertários, pois estaríamos supostamente praticando doutrinação do alunado através da inculcação de “marxismo cultural”. Este pessoal que é “liberal em economia”, “conservador nos costumes” e “Escola sem Partido” em educação desejaria uma intervenção forte do Estado – nada de mão invisível, eles querem um punho truculento! – para lidar com Paulo Freire, Gramsci, Marx e toda a “esquerdalha” com o uso de um lança-chamas. Ou seja, com base na política da extirpação do dissenso. Sobre o tema, ver o livro de Leher, Autoritarismo Contra a Universidade (Ed. Expressão Popular).
Diante disso, só resta ao analista lúcido de nosso contexto afirmar que, se falhamos no passado e geramos o monstro fascista que já chocou o ovo da serpente, foi por falta de uma sólida formação materialista dialética que pudesse formar para a cidadania e para a participação autônoma na construção comum do coletivo. O horror é também fruto da ausência de uma política pública que disseminasse a consciência crítica e a capacidade de contestar autoridades. Falhamos foi por escassez de Pedagogia do Oprimido, e não por excesso!
O que faltou foi muito mais doutrinação Paulo Freireana nas escolas e universidades! E por isso queremos significar que teria sido ótimo caso tivéssemos podido concretizar a disseminação de uma doutrina que empodera os oprimidos em sua tarefa interminável de expulsar os opressores não apenas dos espaços de poder, onde exercem sua brutal dominação, mas também de apertar o eject dentro de nós mesmos, extrojetando aos opressores que subjetivamente hospedamos e dos quais às vezes nos tornamos cúmplices.
Desmond Tutu já dizia que “se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor.” E o meme do He-Man complementa, com um toque de sarcasmo: “Neutro é detergente. Você é conivente.” Diante de um futuro cancelado por fascistas mal-educados, só nos resta dizer aos que se propõem neutros, isentos, em cima do muro, desmobilizados, apáticos, que não lavaremos nossas mãos nem calaremos nossas bocas – pois, como ensina Brecht, “os que lavam as mãos o fazem numa bacia cheia de sangue”.
Publicado em: 11/06/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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