Texto e Fotos por Eduardo Carli para A Casa de Vidro
Diante do <Concertgebouw>, sob o encanto da lira dourada de Apolo que adorna seu topo, de olhos bem abertos e perplexos diante de sua arquitetura imponente, sinto uma quase instintiva postura de reverência: estamos diante de um Templo da Música, de uma Catedral da Cultura! Amsterdam é assim em tantos de seus encantos: impõe respeito não como uma postura intelectual, mas pela força da experiência sensorial e estética que se impõe aos sentidos.
Paro um tempo, perdido em contemplação, no amplo gramado diante de uma das salas-de-concerto mais belas em que já estive, com o <Rijks Museum> às minhas costas, com os museus Van Gogh e Stedelijk na periferia de meus olhos, e penso com meus botões sobre a grandiosidade da Civilização que erigiu tais instituições. Penso com meus botões que meu conceito de Civilização nunca mais estará desligado da vivência neste ponto do planeta Terra.
Estes prédios, os acervos e atividades que eles abrigam, inspiram um enorme respeito: a Museumplein é de fato um daqueles locais no globo que pode melhor nos dar um certo orgulho por pertencer à espécie humana. Ainda que o senso crítico possa vir para sussurrar na orelha da mente: é preciso se lembrar, também e sempre, da trajetória histórica que trouxe à existência estes tão admiráveis portentos civilizatórios. Uma história onde o imperialismo/colonialismo e as guerras ditas mundiais (e de fato inter-imperiais) joga um papel de peso.
Enquanto escuto a encantatória arte dos sons, sou invadido por memórias de tudo o que tenho aprendido sobre a história de Amsterdam durante os tempos mais sinistros do século 20, e assalta-me a noção Walter Benjaminiana incontornável: “todo documento da cultura é um documento da barbárie”. Tanto na visita que fiz ao excelente <Versetz Museum>, quanto na sessão de cinema de quase 5 horas de duração do <“Occupied City” de Steve McQueen>, ambos dedicados sobretudo aos anos entre 1940 e 1945, quando as Nederlands sofreram a invasão e ocupação nazista, pude conhecer em minúcias o que ocorreu durante a ofensiva do III Reich por aqui. Nunca mais estarei na Museumplein ou no Concertbegouw como a mesma pessoa após estes amargos aprendizados.
Os nazistas adoravam esta região de Amsterdam e logo a transformaram em um de seus playgrounds prediletos. Meteram seus tanques e tropas para ocupar a Museumplein e os neerlandeses tiveram muita dificuldade para evitar que pinturas valiosas de Rembrandt e outros artistas fossem pilhadas do Rijks e levadas para a Alemanha. Os nazis, tão “civilizados”, tão fãs de alta cultura, também adoravam assaltar os museus dos países que invadiam para roubar as obras-de-arte ali presentes.
No Concertgebouw, os nazis organizaram muitos eventos, performances, saraus, concertos: imagino com horror o deleite com que a elite chique do partido nazi gozava com a música de Wagner enquanto, nos campos de concetração da Polônia, a máquina de extermínio em massa vomitava para a atmosfera os seres humanos reduzidos à fumaça pelos fornos crematórios.
Os chefões nazis, tão cheios-de-si, tão doentes da certeza em sua própria superioridade, gozavam com música-de-elite dentro do Concertgebouw enquanto sua ocupação causava os terrores assustadores do <Inverno da Fome, o Hongerwinter, que em 1944 e 1945 lançou os Países Baixos a um de seus momentos mais tristes e trágicos em todo o século 20>. Enquanto prodigiosos violinos e violoncelos tocavam maravilindas melodias no Concertbegouw, o nazifascismo matava os holandeses de fome e seu antisemitismo assolava a Europa com atrocidades sem precedentes sendo cometidas pelos fãs de Bach e Goethe.
O filme de McQueen conta que os nazis, em sua ocupação do Concertgebouw, não foram exatamente vândalos – eles respeitaram, ao menos parcialmente, este templo da civilização holandesa. Mas acharam insuportável que certos compositores de raízes judaicas estivessem ali celebrados com seus nomes escritos em caracteres vistosos e encravados no alto deste templo da arte dos sons. Logo os nazis mandaram cobrir e esconder as homenagens que o Concertgebouw fazia em suas paredes a Felix Mendelssohn, <Gustav Mahler> ou <Arthur Rubinstein>. Hoje, os nomes deles estão bem visíveis e iluminados.
Neste Dezembro de 2023, estive pela segunda vez no Concertbegouw – em minha primeira visita havia apreciado o “Zaratustra” de Strauss. A <Orquestra Filarmônica das Nederlands>, impecável na excelência de sua musicalização, auxiliada pela acústica absolutamente perfeita deste templo secular às musas da música, realizou uma apresentação magistral de alguns dos melhores momentos do “Quebra-Nozes” de Tchaikovsky, tendo como aperitivo algumas peças de Rachmaninoff, Verdi e Mendelssohn. Após o intervalo, a orquestra, sob regência de Nathalie Stutzman, tocou Wagner e Mahler.
A certo momento, os olhos molharam e garoaram imprevistamente: com meus sentidos em festa, tanto os olhos quanto os ouvidos imersos na beleza daquela experiência estética, pude também apreciar o aqui-e-agora em contraste com o sinistro-outrora. Na Amsterdam ocupada pelos nazis, isto nunca poderia ter acontecido: um concerto em que Wagner mistura-se com Mahler e Mendelssohn! Aos olhos míopes dos nazis, esta seria uma sacrílega mistura entre “raças”, uma orgia de impurezas em que um ariano-superior como Wagner está lado a lado e ao mesmo nível que os representantes da sub-raça exterminável. Além do mais, um concerto onde os russos convivem com alemães através da mediação de músicos holandeses dá uma noção do cosmopolitismo que as Nederlands liberadas da ocupação nazifascista consolidaram e promoveram.
Mas a barbárie nunca está distante dos templos da civilização, e disto a gente se lembra quando pensa de onde veio o capital para construir tais maravilhas senão do colonialismo; quando a gente pensa em perguntar aos indonésios ou surinameses o que eles julgam sobre tais proezas civilizatórias de sua ex-metrópole; quando a gente pensa nos nazis fazendo suas festanças na Museumplein e no Concertbegouw, com a Shoah rolando e a morte pela fome ao redor dos templos da cultura; quando a gente pensa que milhares de Amsterdammers fizeram protestos contra o lockdown da covid19 neste território e tiveram gás lacrimogêneo disparado contra eles pela Politie; quando a gente pensa que nas eleições parlamentares da Holanda <a extrema-direita chefiada por Geert Wilder sagrou-se vencedora> e teremos provavelmente um primeiro-ministro direitoso em prol da islamofobia e do Nexit (a versão Nederlands do Brexit; quando a gente vê que quase não há “pessoas-de-cor” na platéia de um concerto como este, com prevalência extrema de “branquelos” em uma cidade que, fora das paredes do Concertgebouw, tem muito mais cores epidérmicas do que dentro (por assim dizer); quando a gente pensa nisto tudo dá razão novamente a Benjamin: civilização e barbárie nunca estão separadas e só podem ser compreendidas em sua interação dialética, em sua entremescla intrincada, na orgia de sua mistura.
Dito isso, termino em um tom menos pomposo e intelectualóide, re-afirmando apenas isto, que já disse a muitos que me conhecem: caraca, Tchaikovsky foi mesmo um baita dum gênio da música, um gigante da composição, e o “Quebra-Nozes” é um dos auges do ear-candy na história da Música. É ou não é? Ainda que sem a presença da teatralidade e do balé, sem as coreografias que deveriam acompanhá-lo, Nutcracker continua de pé, apenas através de seu som, como uma obra-prima na história da composição musical. Não me canso de apreciar a delicadeza, a ludicidade, o fluxo fácil que Tchaikovsky soube plasmar nesta que é uma dentre muitas de suas masterpieces.
Dias depois, na antevéspera do Natal, voltei ao Concerbegouw e com júbilo incontenível pude assistir a Michelle Davis e os True-Tones, acompanhados pelo Dutch String Collective, colocando a audiência para vibrar num uníssono de jovialidade que só a música, dentre os frutos do artifício humano, é capaz de causar.
Para encerrar estas reflexões sobre os fantasmas do passado sob ocupação nazista dentro deste Templo da Civilização européia, fantasmas sinistros que convivem com o cosmopolitismo de um presente de culturas em confluência e encruzilhada, quero destacar algo ainda que corra o risco de ser acusado de estar “racializando” o rolê e levando o debate para domínios extra-estéticos. Para mim é altamente significativo que novamente uma audiência repleta de “branquelos” tenha se colocado em postura de reverência, respeito e celebração diante desta deusa-carnal-afro, Michelle David, com seu vozeirão conquistador de corações.
Eis uma mulher negra de extraordinária potência expressiva, com suas raízes nas precursoras mortas mas ainda vivificantes como Aretha Franklin, Mahalia Jackson e <Sister Rosetta Tharpe>, backed-up por um cast de músicos muito competentes. Ela pôs todo o Concertbegouw para vibrar com aquele visceral yearning que marca alguns dos frutos mais suculentos da arte afrodiaspórica.
Estou me referindo aqui a um ensinamento que Isabelle Stengers e Philippe Pignarre destacam no livro La Sorcellerie Capitaliste como uma das maiores contribuições do feminismo negro ao mundo contemporâneo: segundo os autores, a “espiritualidade black” – que se manifesta com força descomunal no filme Amazing Grace, sobre Aretha Franklin – passa por um afeto, o yearning, “qui conjugue espoir, gémissement et désir, ce dont tout à la fois une âme a soif et qu’elle n’a pas le pouvoir de définir.” (p. 69)
Ou seja, o yearning é similar a uma ânsia, um desejo intenso, um willpower, aquilo de que temos sede anímica (para contrastar com a sede do corpo), e cujo objeto ou alvo normalemnte é difícil de definir, beirando o inefável. Também para Bell Hooks, uma das principais críticas culturais e pensadoras no campo do black feminism, o yearning é um conceito fundamental e diante dele não devemos ter posturas niilistas-Schopenhauerianas de aniquilação da Vontade. O yearning, eu diria literalmente, é para ser Nietzscheana e dionisiacamente afirmado e alimentado.
Comandando um rito secular, como presença viva da afro-diáspora, Michelle David e seus comparsar fizeram propagar pelos ares esta potência invisível que viaja pelo ar através das vibrações do espectro sonoro e misteriosamente balança a alma carnal. A música congrega, rejubila, eleva o ânimo, alimenta o yearning, e sem ela, de fato, a vida estaria bem mais próxima de ser um erro.
Aprecie também:
https://www.liberationroute.com/pois/696/de-oorlogshistorie-van-het-concertgebouw
Publicado em: 25/12/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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