A MÚSICA QUE ARRASA FRONTEIRAS
por Eduardo Carli de Moraes
“Music is the universal language of human emotion.”
THEODOR REIK (1888-1969), “The Haunting Melody – Psychoanalytic Experiences in Life and Music”
Entre 26 de Junho e 06 de Julho de 2014, Montréal acolheu a 35ª edição de seu célebre Festival Internacional de Jazz. Todos os anos, no coração da metrópole francófona da América do Norte, o evento atrai um público estimado em mais de 2 milhões de pessoas.
Na aurora do verão canadense, o Jazz Fest ofereceu mais de 300 concertos gratuitos, a céu aberto, que ocorrem em palcos localizados no Quartier Des Spectacles, região da pólis devotada à expressão artística e onde se localizam a Place Des Arts, o Musée D’Art Contemporain e a Maison Du Festival, entre outros notáveis espaços culturais.
Além do amplo leque de eventos gratuitos, dezenas de shows pagos ocorreram em pubs, teatros e salas de concerto pela cidade, com ingressos disputadíssimos, que normalmente se esgotam meses antes da primeira nota musical ser tocada.
Alain Simard, que fundou o festival há 35 anos atrás e hoje atua como seu presidente, considera-o como “o maior evento cultural e turístico do Québec”: “O Festival Internacional de Jazz de Montréal representa a interação social no seu melhor, a essência mesma do icônico senso de festa dos Montrealeses, de seu convívio de espírito aberto com os visitantes vindos de toda parte. As distinções étnicas, linguísticas, políticas, econômicas e geracionais cessam de existir. A música e o calor humano são o denominador comum. O Festival é um pequeno oásis urbano, inclusivo e cool, onde nos encontramos aos milhares para relaxar em um deleitoso ambiente musical, onde reina a vontade de descobrir, compartilhar e se entreter em conjunto.” (Le Festival: Le Plus Social Des Réseaux!)
O Primeiro Ministro do Québec, Philippe Couillard, do Partido Liberal, em sua declaração oficial, não poupou nos arroubos autocelebratórios: “ao longo dos anos, este rendez-vous tornou-se o mais importante festival de jazz em escala mundial. Este sucesso testemunha nossos valores: somos uma sociedade ambiciosa, aberta, apaixonada e festiva – e isto para grande felicidade dos amantes da música nos quatro cantos do planeta.” (Mots des Dignitaires, p. 13) O que pode soar a alguns ouvidos como exagero, proferido por um estadista acostumado a fazer propaganda política, foi referendado em 2004 pelo Livro dos Recordes Guinness, que considerou o Jazz Festival de Montréal o maior do gênero em todo o mundo.
Montréal, a mais populosa cidade da província do Québec, com mais de 1 milhão e 600 mil habitantes, vivencia durante o Jazz Fest uma efervescência humana extraordinária, impulsionada pela quantidade impressionante de visitantes temporários que comparecem ao evento – incluindo os músicos, engenheiros de som, roadies, jornalistas, fotógrafos, documentaristas, dançarinos, artistas das mais variadas estirpes etc. Além, é claro, da multidão que constitui uma platéia pluri-étnica e multi-linguística, evidenciando o intenso cosmopolitismo que é uma das marcas maiores de Montréal.
Para que seja realizado a contento, este mega-evento precisa que trabalhem em sincronia os Ministérios do Turismo, dos Transportes, da Cultura & Comunicações, dentre outros. Além disso, parcerias com empresas privadas viabilizam financeiramente o festival, com destaque para Rio Tinto Alcan, Bell, TD e Heineken.
Todos os anos, grandes figuras da música mundial visitam Montréal: a história registra, desde a 1ª edição em 1980, apresentações de “mitos” como Ray Charles, Miles Davis, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Astor Piazolla, Dizzy Gillespie, Tom Jobim, James Brown, Dave Brubeck, Tony Bennett, Cab Callaway, Van Morrison, Bob Dylan, Stevie Wonder, entre muitos outros. Em 2014, não foi diferente: dentre as atrações maiores do festival, estavam o bluesman B. B. King, a diva do soul Aretha Franklin, a pianista e cantora Diana Krall, além de artistas mais vinculados ao mundo do rock, mas muito respeitados também no universo do jazz – caso de Elvis Costello, Beck Hansen e Ben Harper. Esta 35ª edição prestou sua homenagem ao guitarrista de flamenco, recentemente falecido, Paco de Lucía (1947-2014), a quem o festival foi dedicado.
Em termos econômicos, o Jazz Fest de Montréal caracteriza-se como organização sem fins lucrativos, como explica a revista oficial do evento ao declarar: “as atividades são realizadas sem intenção de ganhos pecuniários e todos os lucros são reinjetados nas operações do festival e seus atividades gratuitas”. A edição mais recente foi realizada com um orçamento de 25,2 milhões de dólares canadenses e criou 1.500 empregos.
Um estudo publicado em 2011 nos fornece uma ideia dos impactos econômicos mais amplos sobre os setores de hospedagem, alimentação e transporte, que vivem nesta época um de seus maiores booms anuais: estima-se que os gastos de turistas e equipes de produção, cuja presença em Montréal é inteiramente ou em parte justificada pela ocorrêcia do festival, atingem 96 milhões de dólares canadenses. Já quanto às proveniências dos visitantes, as estatísticas apontam que 30% vêm dos EUA, 25% da própria província do Québec, 18% de outras regiões do Canadá, 18% da Europa e 9% dos demais países.
Apesar de ser um festival dedicado sobretudo à música, o FIJM também abre espaço para outras formas de expressão artística, incluindo espetáculos de dança-de-rua (veja vídeo exclusivo no fim deste post). O público teve acesso também a uma galeria de artes plásticas, de entrada gratuita, onde estavam em exposição pinturas raras realizadas por Jimi Hendrix e Miles Davis, além de inúmeras obras de artistas do Québec, com destaque para dúzias de trabalhos de Yves Archambault, que nos últimos 20 anos foi o responsável pela arte dos belos posters do festival. Abaixo, confiram alguns dos mais impressionantes desenhos de Archambault nos últimos anos:
O Festival Internacional de Jazz de Montréal também tem como um de seus nortes a missão educativa de permitir às crianças e jovens a descoberta do universo da música. Muitas famílias com seus pequenos rebentos, às vezes em carrinhos-de-bebê, no colo das mães ou nos ombros dos pais, circulam pelos acolhedores espaços do FIJM, que tem como uma de suas metas contribuir com as faíscas que acendem, desde cedo, as paixões musicais. Uma das principais iniciativas, neste sentido, é o Parque Musical Para Crianças (Parc Musical Pour Les Enfants), que procura fornecer um entretenimento ao público infantil que plante a semente do amor pela arte em tenra idade. Em uma das atrações do Parque, a criançada podia pular, dançar e rolar sobre as teclas de um piano gigante. Logo ao lado, um escorregador em formato de saxofone, onde deslizavam os pequenuchos em direção a uma piscina de bolinhas, onde caíam após serem expelidos, como notas musicais humanas, da boca do sax gigante.
Outro conceito muito interessante que norteia a organização do festival é o de CARBONEUTRALIDADE, ou seja, a intenção de realizar um evento que não tenha efeitos deletérios sobre o meio ambiente com o aumento das emissões de dióxido de carbono. Tanto o Festival de Jazz de Montréal quanto o Festival d’Été de Québec – que ocorrem ambos entre o fim de junho e o início de Julho – tem o comprometimento de serem “carboneutros”. Toda a poluição e sujeira – resultante do aumento do ritmo dos transportes, da ascensão do consumo de eletricidade, da maior produção de lixo etc. – é compensada pelos “projetos verdes” que ambos os festivais apoiam.
Além de oferecer ao público uma ampla gama de eventos culturais gratuitos, o que constitui uma excelente amostra de que é possível realizar, em termos de políticas públicas de cultura, a união entre qualidade artística e vasto acesso popular, os festivais de música do Québec mostram uma louvável preocupação ecológica, investindo o que for necessário em programas de reciclagem e plantio de árvores, por exemplo.
Este escriba não teria condições de julgar o festival por inteiro, já que chegou à Montréal 5 dias após o início da festa, tendo perdido dúzias de shows que animaram os primeiros dias; além disso, limitou-se aos espaços abertos e gratuitos, onde a multitude se aglomera. Mas este “fragmento” do FIJM que pude experimentar deixou uma excelente impressão, memórias que carregarei vida afora, além de uma vontade sincera de aplaudir Montréal com salvas de palmas e ruidosos “BRAVO!”s.
Apesar do foco ser o “jazz” – um vocábulo tão lúdico como costumam ser aqueles que nomeiam gêneros musicais: “rock and roll”, “samba”, “rhythm & blues”… – não se trata de modo algum de ser ortodoxo na seleção de artistas que se adequem aos cânones do que “jazz” significa. Montréal, oxalá, quer mais é deixar a diversidade reinar. Nenhum purismo delimita feudos, segrega estilos, condena tendências: é como se Montréal abrisse seus convidativos braços para acolher a Música em toda a variedade das suas manifestações. Sem apartheids, estimula-se a expressão musical em um amplo espectro etno cultural: marcaram presença os ritmos africanos picantes do Mokoomba, do Zimbabwe; a big band australiana de ska Melbourne Ska Orchestra; o grupo cubano de salsa, mambo e rumba Conjunto Chappottin y Sus Estrellas; o hip-hop futurista e orquestrado do Deltron 3030;o heavy-blues de alta-voltagem, e bem Janis Jopliniano, de Layla Zoe; dentre muitos outros exemplos.
O psicanalista Theodor Reik, citado na epígrafe, escreveu que “a música é a língua universal da emoção humana”. Esta ideia de que a música é o único idioma universal, transcendendo o verbal, expressando a Vontade e seus afetos, nunca fez tanto sentido quanto agora. Em Montréal, por esta semana em que flanei pelas ruas, como um peixe nadando em um oceano de gente. Era impressionante estar diante de tão extraordinária diversidade de pessoas, de credos, de cores, de raízes, de backgrounds, de filiações, de idiomas, de vestimentas, de tatuagens, de idiossincrasias, de peculiaridades. Um caldeirão da multiplicidade como eu jamais antes havia experimentado. Nadei nesse mar de gente em infinitas variações como se o Quartier Des Espectacles fosse um holograma do mundo. E era.
Montréal parecia acolher tal maré humana como quem recebe qualquer desconhecido como um amigo em potencial e que merece ser saudado com “namastê”. A metrópolis parecia orgulhosa, contente de si, por ter em suas ruas uma tal efervescência de convívio humano, celebrando e curtindo, em paz, música de tudo quanto é canto do globo. Sem xenofobia nem puritanismo, Montréal armou o cenário para que a música servisse como um cimento invisível que congrega e reúne, para além das diferenças, mostrando in práxis que um outro mundo é não somente possível. Já há certas Zonas Autônomas Temporárias, para emprestar o termo de Hakim Bey, onde o alter-mundo da convivência no seio da multiplicidade, da celebração da existência em meio ao reconhecimento pleno da diferença, já está vivo e pulsante.
Foi um dos melhores remédios que já tomei contra uma certa síndrome de misantropia que às vezes me acomete. Neste grandioso evento, ficou-me provado que é sim possível uma civilização que respeite plenamente a arte, que incentive devidamente seu florescimento e que forneça amplo alimento cotidiano àqueles que tem fome de beleza (e nós somos legião…). Neste belo verão québécois, a música jogava na posição de cimento social, de terreno comum, de realidade compartilhada, quiçá até de crença conjunta. Mas digo “crença” não no sentido religioso – crença, que pode ser plenamente laica, na música como bem, como valor, como força prática de congregação, como potência social de celebração coletiva.
Esta valorização cívica, popular, governamental e mesmo empresarial da música mostra-se claramente durante o Festival Internacional de Jazz de Montréal. Ano a ano, ele serve como oportunidade para uma redescoberta renovada do cosmopolitismo em ação, da diversidade cultural em convivência, de gente das mais diversas proveniências e raízes, juntas no mesmo espaço, vivenciando e celebrando. Para além das diferenças, dos contrastes, das discriminações, dos apartheids, descobrindo por experiência que é sim possível encontrar chão comum onde erigir a obra – tantas vezes na história arruinada e traída, ainda vastamente por construir – do que Lennon imaginou como “The Brotherhood of Man”.
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Documentário “Music Without Borders” / “Música Sem Fronteiras” (36 min)
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Um filme de Eduardo Carli de Moraes
Publicado em: 15/07/14
De autoria: casadevidro247
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
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