Paulo Freire dizia-se um “andarilho da utopia”. Esta força monumental da cultura brasileira e da canção popular, Clara Nunes (1942 – 1983), é outra destas pessoas que andarilham, pela terra, guerreiras em prol de uma utopia.
Digo guerreiras pensando num “bom sentido” desta palavra – não no sentido de uma apologia do bélico nem às ogrices típicas da masculinidade tóxica. Guerreiras são aquelas pessoas que Brecht julgava as mais “imprescindíveis” e que não perdem o ânimo nem a disposição de lutar pra construir uma realidade melhor, lutando contra o que obstaculiza o advento deste mundo alternativo.
“Há pessoas que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis.” Bertolt Brecht
Nascida em 1942, em Paraopeba (MG), a pequena Clara teve uma infância traumática e atribulada, tornando-se órfã de pai (aos 2 anos de idade) e de mãe (cerca de 4 anos mais tarde). Ainda adolescente, testemunhou uma briga entre um de seus irmãos e o novo namorado de Clara – a rixa rendeu um namorado morto, um irmão preso e a necessidade da jovem migrar correndo para Belo Horizonte… O meteórico percurso de Clara pelo céu da cultura brasileira nos fornece a figura fascinante de uma mulher andarilha, que soube se metamorfosear, que foi obrigada pela vida à mudança, e que nos legou os cânticos imorredouros destas mudanças.
Podemos apontar seu devir-“guerreira da utopia” como processo gradual, que demandou dela muita coragem: dos primórdios cantando boleros e baladas pop-românticas (que fracassavam nas paradas), Clara embarcou num fluxo que a transformou, primeiro, numa das mais fortes vozes vivas do samba, admiradora e seguidora de Clementina de Jesus e de Elizeth Cardoso; na sequência de seu fluxo de vida, seu canto transmutou para tornar-se veículo dos orixás, voz viva da musicalidade afrobrasileira e das espiritualidades vinculadas à umbanda e ao candomblé. “Devota dos rituais afro-brasileiros, Clara cantou o samba de raiz que desnudou a alma brasileira e resgatou o vigor da cultura mestiça, como escreve Fernando Valle em Zona Curva.
Uma das influências mais determinantes para Clara Nunes foi a obra de Elizeth Cardoso, em especial o LP Sobe o Morro. Um brasileiro que desconhece a obra de Elizeth Cardoso e Clara Nunes, que nunca apreciou estas divas de voz maravihosa interpretando canções imortais de grandes compositores – a exemplo de Nelson Cavaquinho, autor de “A Flor e o Espinho” e “Juízo Final” -, está perdendo uma experiência crucial para sua “brasilidade”, ou seja, para a incorporação de um salutar legado cultural:
Décadas depois sua morte prematura, em 1983, num drama médico-hospitalar que abalou o país, Clara Nunes é uma das artista que nosso povo jamais deveria esquecer, e em cuja obra deveria seguir a se nutrir. Sua figura icônica como guerreira da utopia vai se consolidando, na esteira da bela biografia escrita por Vagner Fernandes e republicada em nova edição, em 2019, pela Ed. Agir.
Os educadores alinhados à Pedagogia do Oprimido certamente enxergam com bons olhos que as salas de aula se vejam saudavelmente invadidas por “hinos” que Clara Nunes tão bem interpretou como o “Canto das Três Raças” (do grande poeta e cancionista Paulo César Pinheiro, com quem Clara foi casada), ou por “Lama”, canções que seguem falando tanto sofre o Brasil contemporâneo ao raiar da década de 2020.
“Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou
E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor…”
a história do samba, decerto que Clara também merece que a ela dediquemos muitas celebrações, não só por ter sido uma intérprete magnífica, dando outra cor e vivacidade às obras de sambistas como Paulinho da Viola (“Coração Leviano”) ou João Nogueira (“Forças da Natureza”). Clara foi figura de realce na Portela e encantou com seu canto muitos sambistas que fizeram história, a começar por Candeia (1935 – 1978). Clara era, como Candeia confessava, sua cantora predileta – e composições dele como “O Mar Serenou” talvez não tivessem se alçado ao status de “imortais do samba” sem o providencial e prodigioso canto de Clara claridade:
Outro modo de adentrar na “galáxia” Clara com muito proveito estético e cognitivo é pela interpretação de suas complexas relações com a cultura afro-brasileira. Não há dúvidas do entusiasmo genuíno e do esforço de estudo e pesquisa que Clara Nunes nutria pelas manifestações sócio-culturais vinculadas às populações afrodescendentes. Em seu percurso artístico, ela celebra a “Morena de Angola” e seus remelexos, mas não o fazia de maneira superficial, só porque era modinha ou algo assim; de fato, como seu biógrafo Vagner Fernandes aponta, a musicalidade “afro” que Clara incorporou a seu som tinha tudo a ver com a aventura espiritual da cantora, notavelmente híbrida e sincrética:
“Clara se dizia umbandista, mas a sua ligação com os cultos afro era tão forte e singular que, por várias vezes, ela própria se via confusa diante da definição de sua religiosidade. Vinha do cardecismo, denominava-se umbandista, mas flertava com o candomblé. Clara era tudo. Era uma espiritualista por natureza. Acreditava no poder dos orixás, mas não deixava de lado as orações do catolicismo. Também gostava de ir a missas. Clara era um caldeirão espiritual. Era a legítima brasileira, absolutamente sincrética, que batia cabeça e cantava ponto em terreiro, acendia velas para as almas, tomava passe em centro de mesa branca, comungava em igreja católica, ajoelhando-se para rezar o pai-nosso ou a ave-maria diante da imagem da Nossa Senhora… (FERNANDES, 2019, p. 172)
Vagner Fernandes atribui à personalidade da cantora uma “superstição extremada”: “qualquer obstáculo que surgisse em sua vida pessoal ou profissional, logo atribuía ao sobrenatural, às forças negativas emanadas pelos invejosos, às obrigações não realizadas para os orixás. Nos centros que frequentara, na maioria das vezes em que sentou à mesa de jogo de búzios com uma ialorixá (mãe de santo) ou um babalorixá (pai de santo), a resposta: era filha de Ogum com Iansã. Todos eram praticamente unânimes na afirmação. No Brasil, como na África, convencionou-se que cada indivíduo possui dois orixás. Algo que, certamente, teria se originado da própria consolidação dos cultos afros em solo verde e amarelo.” (Fernandes, p. 202)
Em tempos tenebrosos como estes que atravessamos em 2020, com o re-empoderamento de uma Elite do Atraso racista e eugênica, com o Bolsonarismo explodindo bombas de ignorância sobre a população, estimulando a xenofobia, o racismo, a misogonia, a homofobia e o ódio brutal contra a esquerda em geral, levantar Clara Nunes como uma bandeira brasileira é salutar – pois, como diz Vagner Fernandes, esta guerreira da utopia foi uma “legítima brasileira, absolutamente sincrética”, o que sugere que, talvez, nosso maior mérito nacional seja a capacidade de sincretismo, de mescla, de mistura, de heterogeneidade, de antropofagia, de mutação e mudança identitária na esteira dos encontros transformadores.
E por falar em encontros transformadores, em 1973 Clara uniu forças com Vinicius de Moraes e Toquinho para o show Poeta, Moça e Violão, que estreou em Salvador, no Teatro Castro Alves. Durante 3 meses, estas 3 lendárias figuras da cultura brasileira atravessaram cidades – Recife, Porto Alegre, Curitiba, B.H., Ouro Preto, Petrópolis etc. – em espetáculos sempre muito aclamados por platéias lotadas.
Diante da polêmica que envolve cantoras como Clara Nunes e Elis Regina em suas relações com a ditadura militar, o livro de Vagner Fernandes nos fornece elementos para uma compreensão mais nuançada do problema; Não acho que seja possível afirmar que Clara Nunes ou Elis Regina tenham “colaborado” com a Ditadura, apesar de terem, em certos episódios, se dobrado às ameaças do regime. Vagner Fernandes conta, por ex, que Clara Nunes entrou em choque com a Ditadura ao gravar “Apesar de Você” de Chico Buarque, em 1971, uma música que ela amava e que havia passado pela censura do governo Médici e tinha estourado nas rádios.
Em janeiro de 1971, ela lançou sua interpretação da hoje clássica canção de Chico – e um jornalista, Sebastião Nery, escreveu em sua coluna que “seus colegas estavam cantando ‘Apesar de Você’ como se fosse a Marselhesa“. Tudo indica que Clara Nunes ajudou a “bombar” “Apesar de Você” e que isto trouxe uma enxurrada de consequências:
“Nery foi chamado à polícia. Semanas depois, a canção foi vetada. O governo proibiu a música, recolheu e destruiu os discos e ainda puniu o censor incompetente. (…) Clara estava em maus lençóis. Foi acusada de subversiva. O presidente da Odeon, Henry Jessen, que era advogado, foi intimado a dar explicações sobre a moça. Fez um acordo com os militares do Exército… Clara iria gravar o “Hino das Olimpíadas” do Exército. Além disso, iria participar do evento em Belo Horizonte, cantando o hino publicamente.” (p. 163)
O autor ainda diz que “desabava sobre Clara o mesmo que aconteceria com Elis Regina em 1972, um ano depois… Elis foi convidada pelos militares para cantar o Hino Nacional em uma Olimpíada realizada na Semana da Pátria. Tudo porque declarou, durante viagem à Holanda, que o Brasil era governado por ‘gorilas’. Para retornar ao país, tinha de ‘aceitar o convite’. A história funcionava assim. Os artistas eram ‘pegos’ pelo governo sob ameaças. Ou iriam ou sofreriam sérias consequências, como a prisão. Clara foi. Elis também. Para Elis, a situação complicou ainda mais… A esquerda caiu de pau em cima dela e o cartunista Henfil enterrou Elis duas vezes no Cemitério dos Mortos-Vivos de seu personagem Cabôco Mamadô, de O Pasquim. Era para lá que Henfil mandava pessoas que, na opinião dele, colaboravam com o regime militar…” (p. 165)
Não taquemos pedras simplistas sobre Clara ou Elis, portanto, já que está em aberto a possibilidade de que não queriam colaborar com os “gorilas”, mas se vergaram como bambus diante de uma força autoritária e ameaçadora que ameaçava quebrá-las. Vergar para não quebrar talvez seja parte de uma sabedoria mínima: a resiliência, o manter-se vivo, perseverando no existir produtivo.
Clara, esta sabiá, filha de Ogum com Iansã, mineira guerreira, sempre praticante de um Paulo Freireano esperançar, parou de cantar cedo: aos 40 anos de idade, em 1983, após uma cirurgia para extrair varizes da perna, Clara Nunes vivenciou graves complicações de saúde: “a cantora apresentara uma reação alérgica a alguma das substâncias do anestésico, uma anafilaxia (choque anafilático)” (Fernandes, p. 347).
Muita polêmica se acirrou na mídia com a morte da cantora, sobretudo no que diz respeito à averiguação de supostos erros médicos que teriam acarretado a tragédia – no fim das contas, a equipe que operou a cantora foi absolvida na justiça por falta de provas. A causa mortis de Clara Nunes, oficialmente, foi um choque anafilático acidental decorrente de uma cirurgia que, como o biógrafo insiste em sublinhar, não era necessária de ser realizada, do ponto de vista da saúde geral ou holística do organismo, mas que foi encarada por Clara por motivos atribuídos à “vaidade”:
“Clara queria cuidar de algumas veias varicosas salientes que a incomodavam esteticamente. Vivia reclamando de dores nas pernas e atribuía o incômodo às varizes. Não seria bem assim. Havia um exagero por parte dela. Submeteu-se ao tratamento muito mais por vaidade do que pelas dores que jurava sentir. Para uma mulher, artista, que vivia de salto alto para baixo e para cima, era mais do que natural que as pernas doessem de vez em quando. A obsessão, acima de tudo estética, para melhorá-las começou a ganhar relevância no dia a dia… tomou a decisão de operá-las.” (p. 341)
Tenha razão ou não o biógrafo Vagner Fernandes, ao atribuir o fim prematuro da cantora à vaidade feminina, o fato é que há toda uma engrenagem da indústria cultural, muita inspirada pelo modelo de showbusiness dos EUA, calcado no star system, que exige do artista de sucesso, que se alça ao estrelato, que tenha uma bela aparência que alavanque vendas e lucros. Clara Nunes, como sabemos, foi a primeira mulher na história da MPB a romper a marca de 100.000 cópias de discos vendidos; era muito presente nas bancas de jornais, inclusive em revistinhas de fofoca, além de presença constante na TV (e não apenas durante os carnavais…). Tudo isso somado conduziu a cantora a uma preocupação com sua aparição pública corporal que não é plenamente compreensível para nós, reles mortais, que nunca vivenciamos nada parecido com o pop-estrelato.
Caso não tivesse sido tão vaidosa, se tivesse aceitado algumas varizes em suas pernas, se tivesse acolhido como natural o processo de envelhecimento e de fenecimento da juventude, Clara Nunes poderia ter vivido até os 80 anos, seguindo a nos encantar, como faz Elza Soares até hoje? Talvez, mas acredito que é preciso evitar juízos morais que incidam sobre a condenação do indíviduo, por um suposto vício como a “vaidade”, e que tente compreender a determinação social dos comportamentos.
De todo modo, a tragédia consumada também transformou Clara em lenda e emblema: “a única certeza que se faz presente é do inquestionável legado musical deixado pela cantora. Ela continua nas rodas de samba dos subúrbios e de áreas nobres das metrópoles, nas quadras das agremiações carnavalescas, nas rádios, nas redes sociais, no Spotify… Da forma como gostava: com o povo cantando pelas ruas as estrofes de suas canções.” (Fernandes, p. 372) Fonte jorrante de axés e saravás, força da natureza repleta de carisma, voz de sabiá que está entre as mais belas que já cantou e encantou, Clara será lembrada e seu canto seguirá a ecoar!
APRECIE: DISCOGRAFIA ESSENCIAL
(BAIXE EM MP3 DE ALTA DEFINIÇÃO)
VÍDEOS:
Eduardo Carli de Moraes
12/08/2020.
Publicado em: 12/08/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia