CRIME NA CINEMATECA – Por Carlos Alberto Mattos
No início desta noite, eu estava assistindo a um filme brasileiro sem saber que, naquele momento, o depósito da Cinemateca Brasileira já ardia em chamas. Soube depois que terminou o filme, quando voltei à internet. Na verdade, não foi uma notícia nova. Nós já sabíamos que isso ia acontecer, só desconhecíamos quando ia acontecer.
Afirmo com provas e convicção que foi um incêndio criminoso. Que fique claro: para que um incêndio seja criminoso não é preciso que alguém risque um fósforo, provoque um curto-circuito ou faça algo assim. Um incêndio é criminoso quando deliberadamente se deixa criarem as condições para que o fogo brote. Foi o que aconteceu com a Cinemateca Brasileira.
Há um ano e meio o maior acervo cinematográfico da América Latina vem sendo relegado à própria sorte pelo poder público. O governo federal, a quem cumpre mantê-lo, assumiu o descaso como política. Fechada desde agosto de 2020, a Cinemateca não conta com equipe técnica contratada, nem acompanhamento especializado da situação de seu imenso acervo. Os riscos de roubo, incêndio e deterioração foram insistentemente denunciados pela sociedade e principalmente pelos funcionários da casa.
No dia 12 de abril deste ano, os trabalhadores da Cinemateca divulgaram um manifesto alertando para o risco de um incêndio. “O acompanhamento técnico contínuo é a principal forma de prevenção”, diziam. No último dia 20, o Ministério Público Federal fez novo alerta à União quanto à possibilidade de um incêndio. Há um processo movido pelo MPF, mas a leniência das instituições para com este governo genocida e culturicida vai deixando o país pegar fogo antes que as medidas necessárias sejam tomadas.
Se depender dos governos federais que têm se sucedido desde o golpe de 2016, coisas como o Museu Nacional, o Sistema Lattes, as universidades federais e a Cinemateca Brasileira são penduricalhos que só fazem atrapalhar e dar despesa. Além de serem covis de “inimigos”. Os sucessivos neonazistas a ocuparem a Secretaria Especial da Cultura talvez se sintam aliviados ao verem que terão menos um “elefante branco” para cuidar e lhes trazer dor de cabeça.
O incêndio da Cinemateca foi mais que anunciado. Foi provocado. Se não diretamente com o fósforo, com o instinto de destruição que caracteriza a atual presidência.
29 de Julho de 2021
Originalmente publicado no blog do autor:
https://carmattos.com/2021/07/29/crime-na-cinemateca/
https://www.youtube.com/watch?v=b98P_3SlHpw
TV CULTURA – “É uma omissão criminosa”
Crise na área cultural
Depois de perder o status de ministério no governo Bolsonaro, o setor cultural enfrentou sucessivas crises. A Associação Comunicação Educativa Roquette Pinto, que administrava a Cinemateca, entregou as chaves para a Secretaria Especial da Cultura e demitiu 52 funcionários. A entidade alegou que não tinha como pagar o corpo técnico, altamente especializado. Houve dispensa também do pessoal da limpeza e da manutenção.
Em julho de 2020, o Ministério Público Federal entrou com uma ação na Justiça contra a União por abandono da Cinemateca.
Há três meses, trabalhadores da Cinemateca lançaram um manifesto em que alertam para os riscos ao acervo da instituição sem o acompanhamento adequado.
“A possibilidade de autocombustão das películas em nitrato de celulose, e o consequente risco de incêndio frequentemente recebem mais atenção da mídia e do público. A instituição enfrentou quatro incêndios em seus 74 anos, sendo o último em 2016, com a destruição de cerca de 500 obras. O risco de um novo incêndio é real. O acompanhamento técnico contínuo é a principal forma de prevenção”, diz o texto.
Patrícia Fillippi, chefe do CEDOC da TV Cultura e coordenadora do laboratório de recuperação de filmes da Cinemateca, esteve no local do incêndio e criticou o descaso com o setor: “Aqui é a fisionomia do caos. É aqui que nós vemos a maneira como a cultura brasileira é tratada”.
“A Cinemateca já passou por uma inundação aqui, neste mesmo prédio, e não serviu de alerta, não serviu de nada. Aqui tinham os documentos da cultura cinematográfica brasileira, que deveria estar sendo preservada pela cinemateca, mídias em sua diversidade e uma reserva técnica feita com as melhores condições. E não tinha zelo, não tinha manutenção. É esse o estado da arte brasileira”, completou.
https://www.youtube.com/watch?v=3IExOQz1kl4SAIBA MAIS: http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/…/04_06_04.php Trata-se de um vídeo que acompanha o início da transferência da Cinemateca Brasileira para a sede atual. Aqui, as regras são as do filme institucional, mas nada consegue impedir Candeias de filmar como sempre filmou, isto é, como quer. Não por acaso, o vídeo começa “à margem”, numa beira de estrada – uma das imagens recorrentes em suas fitas, quase sempre como signo de certo malestar, um não-pertencer, um eterno procurar a si mesmo. E não é outra coisa que o texto, bem mais objetivamente, nos revela: fala de uma Cinemateca Brasileira ainda dividida por diferentes locais, assim como já esteve em inúmeros outros, sempre de maneira provisória e em depósitos muito longe do ideal e necessário. Para além de mera ilustração do texto narrado, o olhar de Candeias, em essência pouco afeito à verbalização (videos raros diálogos de seus filmes), dá às palavras novos significados, por vezes quase abstratos, mas sempre belos para os que sabem ver com curiosidade e os olhos livres. Candeias possui clara visão de mundo e de cinema e as imagens de beira de estrada são muito mais do que um cacoete visual, assim como o uso aparentemente arbitrário da grande-angular em certos momentos: trata-se aqui de deformar o olhar, de produzir outra coisa, de ver-dizer de outra maneira. O grande mérito do filme talvez esteja justamente em fugir da armadilha fácil do conformismo oficialesco e confortador, e das soluções parciais que poderiam representar a transferência da Cinemateca para uma sede definitiva. Muito já se falou sobre a necessidade de um arquivo de imagens animadas; tudo se passa como se houvesse uma unanimidade muda que, no entanto, pouco ou nada resolve. Enfim, Cinemateca Brasileira fala principalmente ao leigo: o que é uma cinemateca? a que nos serve? O espectador que tire suas conclusões, mas vale perguntar: estamos culturalmente preparados para ter uma cinematografia e para bem-manter um verdadeiro arquivo de filmes? (estávamos, é bom lembrar, no imediato pós-Collor e ainda sob os efeitos do baque cinematográfico). Nesse sentido, talvez o momento mais precioso do vídeo seja quando, sobre certa imagem de latas de filme empilhadas, diz a locução: “Balançando assim, filme brasileiro, com certeza!”. (Balança, mas não cai, graças ao diletantismo e à determinação de todos que teimam em manter de pé esta arte bastante instável que é o cinema brasileiro.) Em tempo: o arquivo da Cinemateca Brasileira, maior e mais antigo do país, guarda, entre outros muitos tesouros, cópias e matrizes de quase todos os filmes de Candeias, de A margem até O vigilante. Juliano Tosi
Publicado em: 30/07/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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