Texto por Eduardo Carli de Moraes (fotografado acima em ação no estúdio musical do espaço cultural goianiense que encerra atividades no Universitário em Janeiro de 2025)
Ilustração da abertura: Delírio.ink
“existirmos a que será que se destina?”
Assim como não há paraísos senão os perdidos, também não há sentidos senão os forjados. O sentido da vida não difere em muito disto: é forjado, é meio que um “amor inventado”, pra evocar Cazuza. É uma invenção de mortais precários que tem fome de algo além de pão, sede de algo mais que água. Sentido só se forja com força se nisto estivermos empenhados enquanto nós. Não mônadas competitivas, mas camaradas mirando horizonte comum e com mãos à obra de mudar mundo pra melhor. “Sonho que se sonha só”, cantou Raul Seixas, “é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade.”
Famintos por sentido, os bichos-que-morrem que somos inventam casas que são mais do que abrigos contra as feras, mais que defesas contra as intempéries. Inventam casas que, coitadas, recebem a responsa de abrigar um sentido para o viver. Abrigo contra as tempestades é pouco, a gente também precisa de abrigo contra o nonsense.
Mas casas podem ser demolidas. Que há de mais precário que edificar sobre as areias à beira-mar? E que fiz, senão isto, tentar construir este sentido numa casa alugada, velha-caindo-aos-pedaços? Numa área de especulação imobiliária e cheia de construtoras de olho em lucrativas edificações? Com seu exuberante jardim em que uma Goiânia de outra época, cada vez mais enterrada, insiste em falar uma língua cheia de pássaros e insetos e fungos, à qual todos estamos nos tornando surdos?
“…eu pensei que tinha o mundo em minhas mãos, como um deus, e amanheço mortal.” Estes versos, lindamente cantados por Lenine e por Vanessa Moreno, acompanharam minha melancolia em meio a esta “procura sem fim” chamada viver enquanto ia me acostumando à ideia de que A Casa de Vidro, esta entidade que esteve de passagem por este terreno entre 2019 e 2024, está para ser demolida. A busca por este outro imóvel para onde transportá-la foi exaustiva, exasperante mesmo: pagar mais para usufruir menos parecia a imposição da situação de Goiânia no que tange aos bens imobiliários.
Situação crítica que colocou um desafio tremendo à minha capacidade de desapego pois justamente aqui vivi uma experiência de cena, logo de coletividade, logo de sentido-para-o-viver que forjamos juntos, difícil de desapegar. Pois a gente se apega à tudo aquilo que dá de comer a esta fome de sentido que não se mata enchendo a pança.
A encruzilhada crítica que começou assim que o imóvel foi vendido e uma Bluefit planejada para nos substituir, vivo num transtorno que venho chamando angústia de desintegração. A Casa de Vidro como a conhecemos vai acabar – estive sentindo. O tempo ficando escasso para salvá-la do naufrágio. Seus moradores expelidos para outro contrato de aluguel; seu estúdio musical repleto de acordes e camaradagens silenciado para sempre, pelo menos aqui, para dar lugar a mais uma academia de fitness numa cidade já infestada delas!
Debaixo deste chão onde hoje pés pisam pedaleiras, onde bateras chutam bumbos, em que gente viva faz música, em breve surgirá um mega-estacionamento subterrâneo repleto de carros. E a cultura desses batuqueiros, desses maconheiros, desses encrenqueiros e subversivos que somos, ela que se lasque, que se cale.
Tem sido um experimento existencial arriscado desde o princípio. Mas que graça, sem risco? Este quarto, por exemplo, em que escrevo estas palavras, é o mais anômalo dos quartos. Presume-se, de um quarto, que seja espaço privativo, mas neste já passaram centenas de pessoas. Neste quarto já cantaram, tocaram, declamaram, falaram, centenas daqueles que foram passantes pel’A Casa de Vidro. Ele é bem diferente do A Room Of One’s Own de Virginia Woolf, não tem este sentido de um casulo privado onde o sujeito possa gozar da solitude necessária à auto-expressão.
É anômalo pois fiz deste cômodo, deste quarto – entidade de praxe que é posse de alguém para usufruir de intimidade e reclusão – algo aproveitável por outrem, por muitos. Sala de música ou de entrevistas, sala de interações, de improvisos, de papos mil. E também o canto onde lanço meu colchão ao chão pra descansar a carcaça e dormir.
E o que dizer da dificuldade de desapego do Jardim – prestes a ser aniquilado pelas motosserras – que vinha se tornando cada vez mais elétrico, acolhedor de jams, espaço de shows, versão brazuca-cerradeira do que os alemães chamam de Spielraum. Este campo-de-jogo, biodiverso, que torna o ar urbano mais respirável, também vai pra não voltar.
Em 2 de Fevereiro de 2025, na véspera da mudança, sento-me para terminar de redigir este treco que ainda expressa tão mal meus turbilhões internos, e quero voltar ao ponto do início para a próxima seção focava no sentido do viver e qual a relação deste forjado/inventado sentido com a alteridade, a Outridade, a convivialidade, fatores estes que A Casa de Vidro serviu como catalisadora.
EU SOU PARTE DE NÓS – E isto é parcela imensa da tragicomédia da vida
De que vale uma gota? Uma gota é quase nada. Mas o oceano mais vasto do planeta, é feito do quê senão de gotas? Grão de areia é outra coisinha que não vale nada. Grãozito de areia é quase que um nada. Mas qualquer duna não é feito deles? Não é reunião de grãos de areia o Saara, o Atacama? Gota sou, e grão de areia – e o que importa é sobretudo o oceano e a duna que integro.
Só posso valer no interior de algo mais amplo do que mim, e a valia que possamos ter, por minúscula que seja, enquanto humanos, enquanto vivos, enquanto manifestações da matéria cósmica, é uma valia relacional. Isto é, relativa. Valia precária, portanto. Tão precárias são as teias que nos entrelaçam uns aos outros.
Com o álbum do Diego e o Sindicato, um dos meus prediletos nesta vida, aprendi a sabedoria do parte de nós. Também gosto do Ubuntu, mas aqui em Goiânia aprendi esta sabedoria com o Mascate e levei pra vida esta sagacidade Dieguista, esse savoir-vivre Mascatiano: “eu sou parte de nós.”
Isto também pode ser metido na analogia com o jogo, com o Spielraum: se o mundo fosse um xadrez, que peça eu seria? Esta imagem se impôs a mim nos últimos meses: a de que no xadrez da cena musical cá das terras do pequi com césio, é como se eu pintasse cada vez mais, em jogo, como algo além dum peão. Ainda que bem distante da rainha e do rei. E distante pacas também do bispo, que Deus lhe carregue e me deixe com minhas idolatrias por Lúxifer. Talvez um cavalo. Sim, Patti Smith me entenderia: neste xadrez da arte tô como cavalo.
Carrego cargas, pode crê. Sou roadie em vários rolês. Afrika Billy que o diga se nóis não tava no 12 na madruga, desmontando o palco na FETEG após a 2a Mostra da OCLAM, metendo os PA nas carangas, movendo amps e auto-falantes por aí pra Música poder acontecer. O valor disto, confesso, não sei bem. A valia da Música é do âmbito do inquantificável. É claro que não ignoro: existe um “Mercado da Música”. Mas aqui sondo outro enigma.
A Música não como mercadoria, mas como algo que os mortais inventaram e não cessaram de reinventar. Música que mortais teimam em fazer pois ela relaciona-se visceralmente com o sentido do viver. Eu, longe de me sentir apto, sou um daqueles cabra ruins-de-música, mas que é teimoso. Mesmo que eu viva 80 anos, não vou tocar 20% do que Hendrix tocava quando tinha 27. Mas insisti. Mesmo sem incentivos claros, mesmo sem auto-confiança. Fui trilhando este caminho repleto de fracassos que me levaria aos Fritos da Terra e à Trupe Tudo Nos Trinks. E vou sentindo que fracasso cada vez melhor.
Vou parar de dar voltas digressivas para tentar concluir esta bagunça. O que eu pelejo pra expressar é o quanto me botei pra jogo com uma Casa, e dentro dela com o cômodo-estúdio, que tentou o experimento vital de afirmar não o Woolfiano Um Teto Todo Seu, mas o nosso Ubuntuesco Um Teto Todo Nosso. Que acolhe cardumes que nadam na contracorrente. Que abriga batuqueiros que costumam ser xingados de macumbeiros. Onde o rock e o samba convivem sem treta.
C’est fini por aqui: A Casa de Vidro termina seu percurso de 2019 a 2025 neste imóvel do setor Universitário. Os últimos meses me empurraram para a encruzilhada crítica e o labirinto desnorteante onde me debato até agora, na entremescla de angústia e júbilo que as palavras falham em expressar.
Hoje, ao desmantelar este estúdio, ao tirar dele instrumentos, ao descolar quadros das paredes, ao tirar espumas e placas acústicas, ao rumar para o esvaziamento deste quarto todo nosso, vi que ele serviu como aquele grão de areia na duna do Sentido.
Rumamos para o Novo Mundo e este horizonte que miro insiste em estar repleto de incógnitas, algumas acabrunhantes, outras excitantes e convidativas. Este sentido-para-o-viver parece que vai persistir ao invés de colapsar. Um novo estúdio vai nascer. Outros cines vão rolar. Tombos e lesões não me impedirão de tocar adiante este experimento de significar o viver, sendo um Frito da Terra, sendo um educador. Uma “justificativa estética da existência”, Nietzsche ensina, é mais do usar coisas belas para adornar as paredes nas periferias do nosso ser. Tornar a vida bela é torná-la digna de ser vivida, apesar do trágico multiforme e abundante que a acossa por todos os lados.
Só sendo parte de nós e empenhando esforços para que este nós seja algo belo, transformativo de tudo o que é estagnação ou regressão, um nós criativo e expressivo, é que este tal de viver, na teia que somos, corre o risco de ter algum sentido. Que, ainda que forjado como todos, tem a solidez que deriva das nossas solidariedades conjugadas, assim como a força de correnteza de um grande rio, cada vez mais indomável conforme vão se reunindo seus afluentes, confluindo em prol de uma Cultura Viva que vamos fazendo nascer. Que não cansamos ainda de pelejar para siga seu co-labor de criativação.
“- NINGUÉM VAI ACABAR COM O ROLÊÊÊÊ!”
Carli, Goiânia, 02/02/2025
SAIBA MAIS:
https://www.youtube.com/@acasadevidro_pontodecultura/videos
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Publicado em: 03/02/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia