por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
“Goiânia Distópica” foi o nome que o sugeri a Lucas Nakamura, meu colaborador na curadoria, para batizar uma das mostras que promovemos no evento “Viva o Centro” (que rolou no feriado da padroeira, em 24 de Maio de 2023). Na mostra exibimos e debatemos, lá no centro cultural Goiânia Ouro, os filmes: Relatos Tecnopobres, Césio 137: O Brilho da Morte, Julho e <Gastrite> (diretores e minutagem no flyer abaixo).
Na pesquisa preparatória para a mediação do debate (de que eu estava encarregado) descobri que já foram realizados e publicados pelo menos 8 filmes – nacionais e gringos – que tematizam o desastre de 1987. Eles até foram alvo de uma retrospectiva do International Uranium Film Festival (como relatado nesta reportagem de Contra O Racismo Ambiental) e ao fim deste post você poderá assistir à maioria deles.
Se hoje podemos nos encontrar no Centro de Goiânia sem usar traje de astronatura, se despreocupadamente andamos imersos nas aglomerações do Eixo Anhanguera ou da Avenida Goiás, sem que a cidade tenha sido transformada num espécie de Chernobyl do Cerrado, isto se deve a vários motivos – um deles a magnitude menor da catástrofe goianiense de 1987 em relação ao desastre ucraniano de 1986.
De toda forma, o césio-137 é um traço de união entre as catástrofes e quando ocorreu na Goyânia de 1987, tornando a cidade para sempre passível de ser uma ambientação plausível para uma distopia, o evento disseminador de radioatividade cancerígena foi noticiado como o segundo pior da história humana até então – atrás apenas do ocorrido no ano anterior perto de Prypiat, na Ucrânia. A explosão de um dos reatores nucleares de Chernobyl representou uma dupla tragédia nacional (<afetando mais terrivelmente do que qualquer outra nação a Bielorússia, ou Belarus – cf. Svetlana Alexijevich>); já os eventos de Goiânia também estiveram potencialmente conectados com uma tragédia nacionalizada, mas acabaram sendo contidos, ao que parece, sem disseminação mais pervasiva pelo território do Brasil.
Três anos depois do incidente o filme de Roberto Pires era lançado em 1990. Um filme cuja feitura teria consequências trágicas para o cineasta baiano – segundo o curta de Luiz Eduardo Jorge, Pires contraiu nesta ocasião o câncer que depois o mataria. A obra já trazia, no calor dos acontecimentos recentes, uma fidedigna reconstituição dos episódios destravados pelo estranho objeto, apelidado pelos protagonistas de “chumbo”, encontrado abandonado e levado a um ferro velho nas proximidades no Mercado Popular da 74. Era proveniente de um hospital (o Instituto Goiano de Radiologia) e em seu âmago continha as então vastamente desconhecidas partículas de césio, no formato de pedrinhas que irradiavam um fascinante brilho azulado.
Durante a pandemia de covid-19 e <com recursos da lei federal de emergência cultural Aldir Blanc>, a Iglu Filmes e o instituto Memória Roberto Pires promoveram na Bahia a restauração, remasterização e relançamento do filme que na sequência estará na nossa mira. Além de uma análise mais detalhada do filme, queremos aqui contribuir para uma redescoberta da obra magistral deste cineasta brasileiro que atuou a partir do fim dos anos 1950 e que realizou obras-primas como Redenção, Tocaia no Asfalto e Abrigo Nuclear.
É com uma mistura de curiosidade, ingenuidade e malandragem que os personagens se aproximam do estranho objeto – para o cara interpretado por Paulo Betti, o “chumbo” é apenas uma mercadoria e ele está interessado em fazer um grana ao vendê-lo a quilo. Mas logo se revelará ao comprador da muamba algumas das estranhas propriedades de parte daquele “chumbo” – através da abertura, o disco contendo césio emana uma luz azulada e serve como uma espécie de “lanterna”; é assim, com a concretude desta luz azul pouco usual, que a radioatividade é figurada no filme.
Os primeiros a serem expostos ao césio e a adoecerem gravemente logo após o contato não conseguem realizar uma compreensão da causalidade concreta. Há um analfabetismo científico no ar, um desconhecimento completo do perigo. A primeira pessoa, no filme de Pires, que faz o nexo causal é a esposa de Devair que, após ralhar com o marido que brincava com a esquisita lanterna azulada, acorda e descobre seu passarinho morto no chão: ela é a primeira a levantar suspeitas de culpabilidade relacionadas ao objeto intruso diante da evidência empírica do pássaro morto.
Logo se revelará a extensão do poder destruidor deste “chumbo” que cabe dentro de um carrinho de pedreiro mas tem o potencial de contaminar toda Goiânia com uma peste radioativa. Um elemento que desafia nossa compreensão em relação às tragédias radioativas é a desproporção entre a quantidade de matéria (pouquíssima) e o seu poder de destruição (gigantesco). Um punhado de césio, que não encheria o interior de uma bola de futebol, foi capaz de transformar a capital de Goiás, em Setembro de 1987, num enclave proibido, numa Zona excluída, num pesadelo geográfico a ser fervorosamente evitado, no lócus de mortes e adoecimentos causados por aquele punhadinho de pedrinhas azuis…
Algo de muito interessante para nossa reflexões, no filme, é a recorrência da falsa atribuição de causalidade que uma série de personagens manifesta. Ou seja, quando eles começam a passar mal, tem crises de vômito, sentem quenturas extremas pelo corpo, eles atribuem o mal-estar a causas errôneas. Um dos contaminados está passando mal, com muita febre, a ponto de molhar de propósito o chão de sua sala e deitar-se nele sem camisa, para logo tomar uma bronca da mãe – esta pensa que ele está passando mal pois decidiu almoçar fora de casa no último Domingo… o que evidentemente não é a causa real da moléstia).
Com frequência eles atribuem estes sintomas de mal estar àquilo que comeram – e nisto há até uma certa graça, ainda que tragicômica. “Deve ter sido aquela feijoada que você me fez comer”, diz o marido à sua esposa. “Quem mandou misturar banana com água de coco!”, reclama também outro adoecido. “Vou preparar para ele um chá de boldo”, diz a mãe ao filho que em poucos dias estará em um caixão – e não de qualquer tipo, um caixão que pesa mais de 500 kg de chumbo e que terá que ser posto numa cova profunda com o uso de um guindaste. As roupas de astronauta e os caixões lacrados estavam prestes a entrar em cena, completando o quadro da Goiânia distópica…
É uma espécie de gigantesca comédia de erros – e Roberto Pires só nos narra parcialmente a trama. Poderia perfeitamente haver um segundo longa-metragem que desse continuidade ao Pesadelo de Goiânia partindo do momento em que Pires encerrra seu filme.
Neste, os atingidos demoram muito até procurar a vigilância sanitária, e quando resolvem finalmente levar a peça dão com os burros nágua – seja pois a Anvisa está fechada em plena quarta-feira, seja pois tudo na cidade está com as intenções voltadas para uma competição de motocicleta…
A voz da sabedoria é feminina: a única pessoa lúcida em relação à ameaça colocada pela peça é a moça Santana, que trabalhou em hospital e conhece os procedimentos médicos em relação ao raio x. Ela exige que Maria, esposa de Devair, dono do ferro velho, procure a vigilância, caso contrário vai chamar a polícia 🚔…
Em Goiânia só se fala na corrida das motos, e enquanto isso os poucos cidadãos que testemunham a azulada luz fluorescente do césio manifestam mais fascínio do que preocupação diante da substância desconhecida. Trata-se de uma crónica de estratos sociais que tinham completa ignorância acerca das tecnologias envolvidas em um hospital como aquele de onde se extraviou o objeto contaminante. Nós somos os beneficiários de exame de raio x ou ressonância magnética mas para isso não precisamos entender o funcionamento dos mesmos. “Devair compra até lixo hospitalar”, a moça faz a denúncia. A atribuição da doença a digestão continua, e as especulações seguem por Rumos erróneos… Suspeita-se do ovo, da coca-cola estragada, até mesmo do agrotóxico.
O filme também é uma crônica de como os homens se recusam a levar a sério a gravidade da situação e se recusam a buscar auxílio médico. Maria tira sarro do esposo, “ele acha que o médico é a cerveja.” O maridão não quer ir ao hospital… Demora bastante tempo no filme até que a palavra rádio-atividade seja pronunciada. O alerta chega tarde demais para a maioria dos contaminados, Quando o bilhete avisando das partículas radioativas capazes de estourar os ossos chegar as mãos de Devair ele já está severamente adoecido.
Em um dos principais filmes de sua trajetória anterior, Abrigo Nuclear (1980), o cineasta baiano já havia se interessado por um desastre radioativo de grandes proporções – no caso, toda a superfície da Terra foi afetada e o que remanesce da humanidade habita os subterrâneos. Distopia do totalitarismo, o filme explora o tema Orwelliano do controle sobre o passado – o regime vigente dentro do abrigo nuclear não permite que ninguém acesse os bancos de dados (repletos de fotos, vídeos, revistas, jornais etc.) sobre a civilização que causou o colapso das condições de vida na superfície. O acesso a esta informação proibida está no centro do plot.
Abrigo Nuclear figura, pois, o negacionismo e o obscurantismo sendo confrontado pelo “time” de rebeldes liderando por Lattes. Similarmente, no Césio-137, filme que lançaria 10 anos depois, a ausência de informação verídica e conhecimento científico bem embasado está entre as causas da disseminação da contaminação em Goiânia – numa das cenas que mais sinistramente entrelaça Eros e Tânatos numa tela de cinema, o casal transforma o banheiro de casa num motel charmoso utilizando a lanterna azulada como um incrementador de tesão. Nesta cena está encapsulado um pouco do gênio de Pires em entrelaçar a morte e o erotismo, o fascínio e o perigo, a ausência de conhecimento científico acerca dos riscos mesclada com uma vivaz curiosidade infantil, visceralmente estética, que seduz na direção do novo objeto que pintou no mundo.
Em breve, no texto que publicaremos sobre Abrigo Nuclear e Tocaia no Asfalto, exploraremos outras facetas do cinema de Pires, contundente e provocativo; por hora, convidamos aos interessados para que mergulhem na já caudalosa produção acerca da Goyânia Distópica de 1987 – que ecoa até hoje nesta cidade tragicômica que amamos-odiamos habitar.
<ACESSE/BAIXE O FILME NO FÓRUM MAKING OFF (SÓ PARA MEMBROS)>
Publicado em: 29/05/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia