A protagonista Enid (interpretada por Niamh Algar) trabalha em um conselho de censores, na Inglaterra de Margareth Tatcher (ultraliberal na economia, hiperconservadora nos costumes), em uma época de explosão de vídeos de ultraviolência. Um trabalho que a obriga a assistir diariamente uma enxurrada de conteúdos gore em um momento histórico em que o laissez faire, pelo menos nesta área, perdeu espaço para a regulação e censura estatal dos contéudos dos vídeos nasty que então viviam um boom.
Dia após dia, adentra as retinas de Enid uma overdose de horrorshow (para lembrar da expressão utilizada pelo Alex de “Laranja Mecânica”). Partindo daí, o filme debate um fenômeno histórico: o surgimento de censores que o govenro inglês instaurou para responder ao “pânico moral” que havia se instaurado no começo dos anos 1980 devido à “the wiespread distribution of horror and exploitation films that were released uncensored both in footage and marketing, thanks to a lack of established legislation specifically designed to regulate video content” (Bloody Disgusting).
Tendo como pano-de-fundo a ascensão na disseminação dos VHS sanguinolentos no Reino Unido dos anos 1980, o filme sonda as conexões entre a produção audiovisual “extremista” e a determinação dos comportamentos psicóticos, violentos, assassinos. Será mesmo que crimes graves, como estupros, homicídios e killing sprees podem ser atribuídos ao excesso de decapitações e violências gratuitas presentes nos filmes de horror snuff, nas músicas de death metal ou nos video-games de tiroteio? Ou será que a violência presente nas obras é apenas um sintoma, ou um espelho, da violência que perpassa a sociedade?
Apesar de iniciar apostando na premissa de investigar os efeitos psicológicos deste labor que expõe Enid a um fluxo sem fim de imagens perversas e sádicas, este filme de estréia em longa-metragem da cineasta do País de Gales, Prano Bailey-Bond, logo mergulha num exercício desnorteante de meta-linguagem.
O TEXTO, A PARTIR DAQUI, CONTÊM SPOILERS
Enid, em busca de desvendar o mistério do desaparecimento de sua irmã, logo irá afundando-se cada vez mais no reino sombrio das produções cinematográficas proibidonas (inclusive por ela mesma), até que as fronteiras entre o real e o fictício se apaguem. A cineasta pratica um interessante exercício de lançar sua protagonista de uma posição inicial de exterioridade e distanciamento em relação aos filmes que assiste para censurá-los, em direção a um efeito “Rosa Púrpura do Cairo” (W. Allen), em que ela passa a “entrar” cada vez mais no universo dos filmes gore de Frederick North. De modo ousado, labiríntico e angustiante, o filme trabalha de maneira provocativa os efeitos psíquicos da posição social de Enid e nos contagia com o desnorteio da protagonista.
Quando ela assiste, com seu caderninho em mãos, em seu labor de censora, ao filme de F. North “Don’t Go In The Church”, ela é impactada a ponto de sofrer efeitos físicos que a conduzem ao desequilíbrio afetivo extremo e finalmente ao vômito. O filme mostra bem este fenômeno complexo: como seres humanos podem ter seus afetos tão transtornados por imagens a ponto de sentirem sintomas fisiológicos como taquicardia, pânico ou vômito? Como pode um fluxo de fótons que o nervo óptico conduz ao cérebro causar, após “decodificado” por nossa cognição, gerar sintomas tão viscerais?
Conversando com seu colega após o episódio, ele avança a tese de que a psiquê humana é ele mesmo um dispositivo de censura através do qual nossa consciência “edits out” (corta ou edita-fora) aqueles elementos que são demasiado intragáveis ou insuportáveis.
O filme constrói um vibe sombria, de suspense cheio de thrills, para debater não apenas a relação entre a violência social e a violência audiovisual, mas também para mostrar o quanto a nossa mente inclui aquelas aptidões para o recalque que Freud bem expôs. Dentro do enredo, há a explosão sensacionalista na imprensa inglesa do caso de um certo “Assassino Amnésico”, que teria cometido três assassinatos contra sua esposa e dois filhos após assistir ao filme trasheira “Deranged”.
O Assassino Amnésico ganha este nome pois não é capaz de lembrar-se de seu ato, ou seja, recalcou esta memória, censurou seu ato homicida, editou-o para fora do filme de sua consciência. Este crime passa a assombrar Enid pois a imprensa acaba “pegando-a para Judas”, acusando-a de ter uma responsabilidade indireta pela sangueira por ter aprovado a divulgação do filme “Deranged”. Uma onda de indignação cívica conservadora passa a estigmatizar a censora Enid por sua incompetência. A sociedade dos “cidadãos e cidadãs de bem” começa a descer o sarrafo naqueles que não censuraram direito as obras e que assim teriam causado tais tenebrosos derangements.
Como bem destaca a Cecília em sua resenha, reproduzida na sequência, o filme fala bastante de uma “hipocrisia demagógica” que a ideologia conservadora veicula em seus gritos histéricos em prol de mais censura, como se esta fosse uma panacéia. A atmosfera de “pânico moral” cria um bode expiatório nos filmes violentos e aponta a censura como solução, como se esta fosse resolver todos os problemas da violência social. Quem defende esta tese simplória são normalmente aqueles que costumam calar-se completamente acerca das injustiças sociais sob o capitalismo necroliberal e sobre desigualdades causadas pela dominação hetero-patriarcal-supremacistabranca que inunda as estruturas de nossas sociedades violentíssimas.
Parece-me que o filme ‘Censor’ não está pondo lenha na fogueira do conservadorismo control-freak ao mostrar os transtornos psíquicos de sua protagonista, mas, ao contrário, está problematizando de maneira provocativa alguns fenômenos sociais que são de alta pertinência para o debate público:
Por que o globo ocular cortado por uma lâmina em O Cão Andaluz de Buñuel e Dali é considerado obra-de-arte, mas Baise-Moi de Virginie Despentes é proibido em todo território francês? Por que consumimos filmes de Tarantino com muita pipoca e coca-cola, adorando a avalanche de mortes estilizadas, mas muitos quiseram ver Marighella banido dos cinemas por mostrar a brutalidade do regime militar no trato com os que se opuseram a ele através da luta armada? Por que séries ultra-sanguinolentas da Netflix como Round 6 e Snowpiecer são o maior hype, e seriam tão bem-sucedidas e lucrativas se fossem menos violentas?
Ao assistir Censor, lembrei-me também de que, após o massacre cometido por alunos da escola Columbine, alguns entes da imprensa yankee atribuíram a culpa pelos crimes (retratados por Gus Van Sant em “Elefante” e debatidos pelo documentário de Michael Moore) ao fato dos adolescentes assassinos serem fãs de Marilyn Manson… Nesta lógica estapafúrdia, caso os CDs de Manson tivessem sido previamente censurados, o massacre jamais teria acontecido? Como se a carnificina não tivesse muito mais a ver com a disponibilidade de armas-de-fogo e de munições, somada ao armamentismo que corre no mainstream da cultura estadunidense…
É este tipo de causalidade trôpega, simplista e a meu ver equivocada, que consiste em culpar produções culturais por problemas sociais, que um filme como ‘Censor’ desmonta a golpes certeiros de meta-linguagem e provocatividade. No processo de nos fazer refletir sobre os fenômenos sociais, o filme torna-se ele mesmo um fascinante filme gore de ultra-violência, terminando com um aparelho de videocassete que expulsa o VHS chamado “Censor”, numa piscadela irônica a si mesmo.
Esta protagonista, Enid, é repleta de ambiguidade: por um lado, ela parece aderir à ideologia reinante, ao pânico moral que seu trabalho procura amainar, e a fantasia idílica que o final do filme expõe revela um lado ingênuo do seu caráter, a tentativa de sua psiquê convencer a si mesma de que “eu sou uma mulher de bem, fazendo um trabalho socialmente relevante, e se eu puder censurar bem os filmes nascerá uma sociedade harmoniosa e pacífica, e inclusive minha família se refará em plena amorosidade”.
Mas, por outro lado, sua situação existencial foi o gatilho para uma espécie de crise psicótica onde ela, em delírio, acreditando que a atriz Alice Lee era na verdade sua irmã desaparecida, leva-lhe a meter-ne no set de produção do novo filme de North, onde sua delusion a conduz a confundir o personagem fictício Beastman com uma entidade real, o que por sua vez a transforma numa assassina e decapitadora do ator que interpreta o personagem bestial e do diretor que acabara de lhe dizer: “as pessoas me acusam de criar o horror, mas o horror já está lá fora… está até em você”.
O devir-ultraviolenta de Enid torna este desfecho complicado, pois pode conduzir à interpretação simplória de que Enid de fato foi levada pelos filmes trash que assistiu a tornar-se parecida aos psychos dos vídeos nasty que torturam e matam sempre com requintes de crueldade. Quando uma outra interpretação é possível e muito mais oportuna: é a sociedade conservadora, que taca combustível no fogo do “pânico moral”, que enlouqueceu Enid, sobretudo ao retratá-la na imprensa como uma pervertida, uma má censora, uma co-responsável por crimes de sangue etc.
Censor é um filme que honra uma tradição que inclui Cronenberg, Abel Ferrara, D. Lynch, P. Strickland, dentre outros. Um filme que também se inclui na tradição da metaficção e que termina por morder o próprio rabo, tornando-se ele mesmo, de propósito, uma obra semelhante àquelas que sua protagonista tem por função censurar: um Ouroboros do terror, esta obra instigante coloca-se ousadamente na linha de fogo dos conservadores, como se dissesse “eu mesmo sou um produto horrível como aqueles que vocês denunciam”, ao mesmo tempo que toda a construção do enredo serviu para bagunçar e desnortear as acusações simplistas de um vínculo direto entre violência nos filmes como causa de efeitos deletérios na sociedade.
OUTRAS LEITURAS:
“A exposição à violência gratuita dos filmes faz com que a sociedade se torne mais violenta. Quantas vezes isso não foi dito ignorando a natureza humana e a existência de guerras, perversidades e genocídios muito anteriores àquela primeira exibição pública dos irmãos Lumière? ‘Censor’ toma como gancho essa hipocrisia demagógica para contar a história de culpa de Enid, funcionária do governo britânico que trabalha analisando obras audiovisuais que podem ou não ser vistas no país justamente por influenciar negativamente a sua população.
Quem dirige ‘Censor’ é Prano Bailey-Bond, um das grandes promessas – podemos dizer agora que realizada – do horror da atualidade depois de dirigir filmes como “Man vs Sand”, “The Trip” e “Nasty”. Em seu longa, ela vai do humor fino inglês ao slasher mais explícito e mistura a intensidade dos diálogos a longos momentos reflexivos e experimenta o casamento de linguagens, indo do VHS ao digital, brincando com as janelas de exibição, com as cores e (d)efeitos que o tempo e tecnologia foram eliminando da vida cotidiana, como o ‘burn-in’ ou aquela estática tradicional do fim de programação da época em que as TVs ainda eram de tubo.
Essa definição temporal, aliás, é muito importante para o filme e para uma de suas linhas críticas. Porque além de uma grande e bela homenagem ao cinema de horror dos anos 1980, ‘Censor’ vai buscar nessa hipocrisia da culpabilização da arte um de seus pontos. E Bailey-Bond pontua muito claramente isso em tela. Além da sequência que cobre offs de impressões populares colando diversas cenas gore, ela faz questão de colocar Tatcher, a Dama de Ferro discursando após uma ação nada sutil da delicada polícia britânica. E é assim por todo filme.
O outro lado também é dado quando ela pontua a própria censura e a incongruência do discurso. Se há a influência, como seriam as pessoas que passam os dias assistindo a esse tipo de conteúdo? E se há um desdobramento que possa ser problematizado, vários outros, de várias outras idades, estão ali – e não só ali – para relativizar a questão e demonstrar que a questão é muito mais individual do que de influência externa.
A questão individual, inclusive, recebe bastante atenção em uma elaborada história pessoal, que leva o filme a um outro lugar e que faz com que o horror deixe de ser um objeto coadjuvante para realmente se integrar à trama. Enid tem o seu passado culpado a resolver, numa temática que pode parecer velha conhecida dos amantes do gênero, mas que vai ganhando contornos tão inesperados que conquista o público. Dando vida à censora, está Niamh Algar em uma grande atuação, que vai muito bem da contenção ao pânico. A transformação pela qual a personagem passa durante o filme é impressionante.
Com um final inesperado e hipnotizante, ‘Censor’ é um daqueles filmes que consegue partir de vários lugares e alcançar múltiplos objetivos, fala de política, de sociedade e do ser humano utilizando-se de elementos bem determinados com propriedade e sem deixar a impressão descartável de outros do gênero. A prova de que Bailey-Bond tem mesmo muito a dizer e sabe exatamente que ferramentas utilizar para isso.”
– Cecília Barroso (cenasdecinema.com)
Publicado em: 23/01/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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