Saiba mais sobre o mais recente livro de ensaios da escritora indiana Arundathi Roy
(2014, 125 pgs., Haymarket Books)
“Another world is not only possible, she is on her way.
On a quiet day, I can hear her breathing.”
Arundhati Roy no Fórum Social Mundial de Porto Alegre
Olhe para nosso mundo e as prioridades hoje nele vigentes. Recursos são investidos às mancheias em aparatos de repressão – bombas de gás lacrimogêneo, viaturas de polícia e “caveirões”, dentre outros gadgets da nova tecnologia anti-riot. Além disso, vivemos um obsceno boom do encarceramento em massa: EUA, China, Rússia e Brasil rivalizam pelo título de nações “campeãs” no ranking das pátrias encarceradoras.
Quando perguntamos aos Poderes Instituídos por que tantos bilhões de dólares são investidos em militarismo, ao invés de estarem sendo investidos em ações para minorar os efeitos desastrosos da poluição atmosférica e do aquecimento global, eles nos miram com olhos fulminantes, prontos a chamar a Polícia Política para prender mais um “terrorista em potencial”, mais um “radical perigoso”…
Hoje, quem questiona a hierarquia de prioridades desta civilização que está às beiras de um colapso ecológico corre o risco de ser enquadrado em alguma “Medida de Segurança Pública” destinada a manter a Lei e a Ordem. Mas que Lei e que Ordem são estas que eles ordenam que devemos obedecer com todo nosso respeito, nossa subserviência e nossa inação?
“No começo de 2006, Joseph Stiglitz, que foi economista chefe do Banco Mundial, e Linda Bilmes, uma economista de Harvard, estimaram que a Guerra no Iraque tinha até então custado aos Estados Unidos entre 1 e 2 trilhões de dólares… Nós faríamos bem em perguntar aos nossos governos porque eles encontram tão fácil a grana requerida para destruir a biosfera, mas acham tão difícil levantar a grana requerida para salvá-la.” GEORGE MONBIOT, Heat: How To Stop The Planet From Burning, p. 56. Leia outros trechos deste livro.
Nos EUA, o discurso da Lei e da Ordem é proferido pela boca daqueles que gastaram trilhões com o genocídio no Iraque, por exemplo, depois de terem mentido descaradamente sobre supostas armas de destruição em massa que acusava-se Saddam Hussein de possuir. Trilhões investidos no processo de arruinar o Iraque, para poder apropriar-se mais fácil de suas vastas reservas de petróleo: eis a “sabedoria” da elite dominante no país que possui o maior arsenal de bombas nucleares já possuído por uma nação na história da humanidade – e que inicia guerras de agressão fundadas em falsas acusações e como se merecesse algum tipo de monopólio na posse de bombas-H. Aliás, um estudo recente pergunta-se: Quantos Onzes-de-Setembro os EUA já causou desde a 2ª Guerra? A estimativa: há entre 20 e 30 milhões de vítimas do regime norte-americano desde 1945. Foram cerca de 10 a 15 milhões somente nas guerras do Vietnã, da Coréia e do Iraque…
Desde Reagan e Tatcher, têm-se papagueado muito sobre as maravilhas do Livre Mercado Capitalista (aquele que, no Chile, precisou de um Pinochet para ser imposto…). A Mão Invisível do Mercado jamais funciona sem que a outra mão porte um punho férreo bastante visível. Vende-se a ideia de que chegamos ao “fim da história” e atingimos o cume dentre os sistemas econômicos possíveis: o capitalismo neo-liberal seria insuperável. A política agora reduz-se a gerir bem este sistema que aí está, com governos crédulos e obedientes diante do novo deus: o Mercado Auto-regulável (já reduzido a destroços pela crítica, por exemplo, de Karl Polanyi). Olhemos para seus resultados no mundo concreto e logo chegaremos à conclusão de que esse capitalismo é, como Arundhati Roy bem viu, uma ghost story. E ele não só é superável, como se não o superarmos rápido estamos fritos. Literalmente fritos. Um outro mundo não só é possível: ouça com atenção e você pode ouvi-la respirando.
No entanto, a sombria sombra das repressões brutais paira sobre aqueles que já estão de mangas arregaçadas, unidos para a construção de alternativas. Os Senhores da Guerra e do Ecocídio, aqueles que pagam o salário de todos os policiais e todos os soldados, aqueles que mandaram construir as penitenciárias e guardam as chaves, estes não abdicam fácil de seus privilégios. Os cogumelos atômicos de Hiroxima e (três dias depois) de Nagasaki não ficaram enterrados em 1945: assombram-nos até hoje. Quem ousar levantar a voz contra o Império, um junkie petrolífero em estado terminal, vê-se ameaçado com a imagem destes cogumelos, vê-se diante da certeza de que há poderes que tem em suas mãos o poder de repetir hecatombes, se assim quiserem. E são eles que se arrogam o direito de serem os Professores de Democracia que vão ensinar ao resto do mundo como é que se faz, que vão exportar sua democracia capitalista neo-liberal como se fôra uma benesse divina, que chove dos céus disfarçada de bolas de fogo?
Satirizada por Lars von Trier em seu Manderlay, essa é uma “democracia” que é imposta àqueles que não pediram, enfiada à fórceps na goela alheia. É como aqueles capangas armados de Grace que tentam realizar o irrealizável e praticar o que é uma contradição-em-termos: uma democracia imposta autoritariamente por uma elite que serve só a seus próprios interesses e nunca o bem comum. Para a entrada desta Democracia “Modelo Exportação” em algum país do Ásia, do Oriente Médio ou da América Latina, é preciso antes que se abra o caminho com bombas, drones, golpes militares, torturas institucionalizadas. É a hegemonia da Doutrina do Choque, que Naomi Klein analisou com genialidade. É uma “democracia” tão maravilhosa que opera através de instituições que em nada se distinguem do que de pior existiu nas Ditaduras Militares latino-americanas – vejam, por exemplo, Guantanamo Bay e Abu Ghraib.
Depois de instalada, a tal da Democracia de Mercado vende tudo o que antes era propriedade pública para a iniciativa privada, celebrando os lucros e racionalizando tais procedimentos com a retórica do “crescimento econômico”. A tal da Democracia Liberal também tende a construir pipelines e outros meios de translado para poder roubar com mais agilidade os recursos naturais dos países invadidos e massacrados por sua mui-lucrativa indústria ecocida. Um processo neo-colonialista tão escancarado e tão genocida quanto os colonialismos do passado. Você compra a Democracia e no pacote ganha junto o Imperialismo, como satiriza Arundhati Roy no título de uma de suas mais contundentes palestras: “Mix Instantâneo”: “Democracia Imperial: Compre Uma, Leve a Outra de Graça” (assista abaixo, na íntegra, incluindo debate com Howard Zinn).
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A Copa do Mundo da FIFA, que ocorreu no Brasil em 2014, teve um resultado evidente fora dos gramados: um aumento preocupante da militarização da vida cotidiana, o exacerbamento dos aparatos de repressão e vigilância, ainda mais com as ameaçadoras memórias de Junho de 2013 ainda assombrando os poderes públicos e privados. Houve um ascenso das prisões políticas de ativistas e militantes, além das já muito difundidas remoções em massa, que afetaram cerca de 250.000 brasileiros, obrigados a re-alocar seus lares. Privilégios foram concedidos a estádios esportivos, estacionamentos e prédios comerciais erguidos pelos que lucram com a especulação imobiliária. Isto está longe de ser uma exclusividade brasileira: os mega-eventos de esportes, aonde quer que se dirijam, exigem que o país-sede realize várias “modificações estruturais” que na prática representam violações dos direitos humanos básicos das populações mais pobres:
“Na corrida para embelezar Délhi para os Commonwealth Games de 2010, leis foram aprovadas que fizeram com que os pobres desaparecessem, como se fossem manchas em uma roupa mandada para a lavanderia. Os vendedores-de-rua sumiram, os ricksaw pullers perderam suas licenças, pequenas lojas e negócios foram fechados. Mendigos foram condenados por juízes ambulantes em tribunais ambulantes e depois jogados para fora dos limites da cidade. As favelas permaneceram escondidas atrás de grandes anúncios publicitários em vinil que diziam: DELHIciosamente Sua. Novos tipos de policiais patrulhavam as ruas, mais armados do que de costume, (…) e havia câmeras por todo canto, filmando tudo.” – ARUNDHATI ROY, Capitalism: A Ghost Story, “The President Took The Salute, pg. 2)
A Índia, com mais de um 1 bilhão de habitantes, é um dos palcos onde o capitalismo contemporâneo mostra sua verdadeira cara em proporções colossais, faraônicas. Torna-se mais claro entender o papel do capitalismo em nosso mundo através da lente-de-aumento do caso indiano: as 100 pessoas mais ricas da Índia concentram em suas mãos um capital equivalente a 1/4 do Produto Interno Bruto. 100 pessoas possuem 25% da riqueza neste país onde 1 bilhão e 200 milhões de pessoas dividem “o resto”. A oposição simbólica entre o 1% (a elite) e os 99% (o conjunto da sociedade civil), que tornou-se um dos conceitos-chave do movimento Occupy Wall Street, está presente na Índia em dimensões tão exageradas que o país se torna um bom paradigma do atual estado do “capitalismo global”, em sua encarnação contemporânea, neo-liberal.
“Na Índia, os 300 milhões de nós que pertencemos à nova Classe Média, nascida na era pós-FMI (Fundo Monetário Internacional), e que representamos o chamado Mercado, vivemos lado a lado com os poltergeists de rios mortos, poços-de-água ressecados, montanhas carecas, florestas peladas; com os fantasmas de 250.000 camponeses endividados que cometeram suicídio e com os mais de 800 milhões que foram empobrecidos e despossuídos para abrir espaço para nós [a “nova classe média”], e que vivem com menos de 20 rupees (cerca de 70 centavos de real) por dia.
A era da Privatização de Tudo tornou a economia da Índia uma das que cresce mais velozmente no mundo. Contudo, como ocorre com toda colônia velha-guarda, um dos itens de exportação principais da Índia são os minerais. (…) No mundo todo, banqueiros de Wall Street, corporações de agro-negócios, chineses bilionários, conseguiram dominar enormes áreas de terra. Na Índia a terra de milhões de pessoas está sendo comprada e entregue às corporações privadas que supostamente agem em prol do Interesse Público – construindo hidrelétricas, represas, rodovias, indústrias petroquímicas, fábricas montadoras de carros, autódromos de Fórmula 1. A santidade da propriedade privada nunca se aplica aos pobres.” – (ROY. Op Cit. Pg. 8-10)
A era da Privatização de Tudo – acelerada, no Brasil, durante a época marcada pelo mega-escândalo de corrupção conhecido como Privataria Tucana – fez com que aumentassem os conflitos fundiários, com o surgimento de mobilizações sociais como o MST (Movimento dos Sem-Terra) no Brasil e das guerrilhas indianas conhecidas como Naxalitas ou Maoístas. Os movimentos podem até se distinguir nos meios que se permitem utilizar – o MST é um movimento social pacifista, que opera no quadro do estado democrático de direito e age através de ocupações marchas e outros modos de demanda popular; já as guerrilhas maoístas são levantes armados contra o status quo e que não tem compromisso com a não-violência Gandhiana… De todo modo, ambos exigem a reforma agrária que irá redistribuir a terra hoje concentra nas mãos dos novos Senhores Feudais do latifúndio, enquanto as multitudes perecem aos milhões sem terem um chão onde cultivar e existir.
Deixemos de ingenuidades: o processo de Privatização de Tudo está longe de ser inocente, como tentam nos fazer crer aqueles que desenham auréolas de santidades sobre sua cabeça. Com frequência, estão envolvidos no processo de privatização alguns subprodutos não mencionados pela retórica oficial da ideologia neoliberal: guerra, expulsão-de-populações, devastação ecológica. A privatização das montanhas, rios e florestas da Índia, lembra-nos Arundhati Roy, só ocorre através da violência, da opressão, do autoritarismo militarista, ou mesmo do genocídio.
Para lutar contra os rebeldes maoístas das florestas – a maior parte deles indígenas Adivasi e Dalits – o governo da Índia, amicíssimo dos EUA e que abriu todos os seus braços para o poderio das megacorporações transnacionais, sobretudo após a Queda da URSS e do Muro de Berlim, massacra aqueles de seus próprios cidadãos que se tornam insurgentes. Milícias financiadas e armadas pelo governo indiano – como a Salwa Judum – são responsáveis pela guerra contra o “perigo maoísta”, contra a “contaminação naxalita”.
Em 2009, o governo criou a Operação Green Hunt e utilizou-se de mais 200.000 paramilitares para tentar sufocar a revolta nas florestas da Índia. Estes soldados forçam as pessoas a abandonarem suas casas, enfiam milhares em cadeias e campos-de-concentração, tudo para “liberar o terreno” para que as corporações possam entrar e retirar os lucrativos minerais e madeiras. Com sarcasmo pontiagudo, Arundathi Roy diz: “Na Índia não se chama isso de Guerra, chama-se de Criar Um Bom Clima De Investimento.” (pg. 13)
Eis algumas das razões pelas quais o Capitalismo, como sugere Arundathi Roy em seu livro mais recente, é uma “estória de assombração”, um genuíno pesadelo da vida real. E poucos indivíduos hoje são tão inspiradores em seu engajamento, em sua lucidez, em sua rebeldia crítica, em sua defesa da ação coletiva renovadora, do que esta autora indiana de raríssimo brilhantismo. Leiam Arundhati Roy: nela pulsa e respira um outro mundo possível!
“If there is any hope for the world at all, it does not live in climate-change conference rooms or in cities with tall buildings. It lives low down on the ground, with its arms around the people who go to battle every day to protect their forests, their mountains and their rivers because they know that the forests, the mountains and the rivers protect them. The first step towards reimagining a world gone terribly wrong would be to stop the annihilation of those who have a different imagination—an imagination that is outside of capitalism as well as communism. An imagination which has an altogether different understanding of what constitutes happiness and fulfillment. To gain this philosophical space, it is necessary to concede some physical space for the survival of those who may look like the keepers of our past, but who may really be the guides to our future.” —Arundhati Roy
Publicado em: 28/05/15
De autoria: casadevidro247
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