CABEÇA DE NÊGO (2021, 85 min, escrito e dirigido por Déo Cardoso), eleito o melhor filme brasileiro de 2021 pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema – Abraccine (*1) pulsa com uma energia juvenil incontenível e serve de veículo para uma revolta antiracista e emancipatória inspirada pelos Panteras Negras (Black Panter Party) e liderada por Saulo ‘Chuvisco’, líder do grêmio estudantil. É também um precioso fruto da comunicação popular através do cinema que convida coletivamente a pensar e estruturar as lutas por auto-defesa, aliás brilhantemente analisadas em livro de Elsa Dorlin (Ed. Ubu).
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Escrito e dirigido por Déo Cardoso, sem firulas mas com muita competência narrativa, insere-se numa onda magistral de filmes nacionais que tematizam os dilemas e desafios da juventude periférica e marginalizada. Onda que teve em “Selvagem” do Diego da Costa e “Meu Nome É Bagdá” da Caru Alves de Souza (já dichavado nesta resenha aqui no site d’A Casa de Vidro) outras notáveis obras recentes. Assim como as minas no skate dão corpo à sororidade na prática lá no filmaço da Caru, no filme de Déo o foco está nas estratégias de resistência que se forjam no calor dos embates e que unem Saulo e sua professora, por exemplo, enquanto debatem Angela Davis pelos corredores da escola.
“Cabeça de Nêgo” também narra algo que serve de emblema desta horrenda época bolsonarenta que atravessamos em que pretende-se instituir a militarização e o devir-brucutu de tudo, inclusive da educação. O bolsonarismo diz querer uma “escola sem partido” mas o que quer mesmo é a escola-quartel onde todo mundo engula quietinho o catecismo tal como prescrito pelo dogmatismo do Patriarcado, da Branquitude e do Capitalistão, reunidos em sua ânsia de permanecer em seu luxuoso palácio de dominação.
O filme, que começa com o protagonista colando um poster com as imagens de Zumbi dos Palmares e Dandara, convocando para uma mesa de discussões sobre assuntos sociais quentes, é uma ode à politização juvenil periférica através do que eu chamaria de Black Panterização.
Quando o filme termina, é como se o cheiro de gás lacrimogêneo estivesse em nossas narinas. O brutalismo de seu desfecho é um chacoalhão para que despertemos, para que apoiemos alunos quando se levantam para dizer: “não queremos mais escolas cujos nomes homenageiam torturadores da ditadura! por que não podemos estudar num colégio que se chame Beatriz Nascimento ou Lélia González?”
O filme tem por palco uma escola pública estadual cearense – ativa desde 1964 (ano fatídico de ruptura da democracia no país) e que se chama “Major Altair Andrade”. Com estética realista, mesclando uma vibe que lembra Larry Clark e Gus Van Sant com irrupções de cenas filmadas com o celular de seu protagonista, o filme é um pertinente petardo que coloca em seu epicentro um dos fenômenos mais vibrantes do Brasil contemporâneo: a ocupação de escolas e universidades públicas por estudantes engajados em reivindicar melhores condições para o devido florescer da educação e da cultura nestes espaços formativos.
Em filmes assim reverbera o fenômeno histórico das centenas de okupas q tivemos no país com auge em 2015-2016 e que foram vanguarda e linha-de-frente da resistência ao golpe de Estado que então era desferido contra a presidenta re-eleita Dilma Rouseff. Reverbera na obra um ímpeto de conscientização do público, um apelo para que perceba e que se importe com o fato de que muitas vezes as escolas são degradadas, decaem a serem prisões muradas, vigiadas por panópticos, cheias de “celas-de-aula” onde devem estar, calados e submissos, os cordeirinhos obedientes aos ditames da autoridade mandona… E dá-lhe decoreba! E dá-lhe disciplina! Qualquer pensamento livre será aniquilado, qualquer comportamento herético ou insubmisso merecerá reprimenda severa, manu militari!
O filme flagra levantes estudantis motivados por uma ofensa racista sofrida, em sala de aula, por Saulo, vulgo Chuvisco, nosso protagonista. No teor das relações que flagra, na tensão do caldeirão racial explodindo de ofensas e ressentimentos, Cabeça de Nêgo se aproxima da vibe da série Pico da Neblina. O que singulariza Cabeça de Nêgo é o fato de se passar em ambiente escolar. O protagonismo aqui é estudantil, afrorevoltado e indomável, inflexível. É isto que o militarismo bronco tentará “torcer” até esmagar.
O gatilho inicial da crise: o estudante Saulo é xingado de “macaco” por um colega, não deixa barato, partindo para o confronto no meio da aula de inglês… O professor faz tudo errado: sem ter testemunhado a treta, pois escrevia na lousa de costas para a turma, tenta expulsar Saulo da sala, que foi agredido por injúria racial, passando pano para o agressor. Mas Saulo adere a uma postura de desobediência civil e se recusa a sair. Mesmo diante do diretor, fica firme no intento de não ser enxotado dali feito um cão pulguento.
O que se segue é uma cadeia de eventos que conduz a um conflito brabíssimo; Saulo, o Chuvisco, para além de escrever versos pelos muros e carteiras (entalha em várias carteiras o “presente!” que evoca mortos ilustres, Marielle Franco entre eles), atua como midiativista. Eis um dos fatores que mais me interessou no filme e que dialoga intensamente com meu próprio trabalho no audiovisual e com o projeto HOJE A AULA É NA RUA / TSUNAMI DA BALBÚRDIA.
Ciente de que celular não é serve só pra consumo de feeds, para zapear em Instas e TikToks, ele saca seu celular como se fosse uma arma, como se fosse seu megafone. Eis um jovem que sabe do poder das novas mídias e que potencialmente no futuro poderia ser repórter da Mídia Ninja ou do Democracy Now! ou da TeleSur. Denuncia nas redes sociais, com alta repercussão, todas as mazelas cotidianas de sua escola, desde as ratazanas no refeitório até as imundícies no banheiro; expõe o autoritarismo de professores e diretores, convoca a galera a ocupar e resisir, afinal educação não é mercadoria e se o estado veio quente… nóis já tá fervendo! O viral nas redes gera a crise nas ruas – e na escola.
São muitos os horrores vinculados ao desmonte e ao desinvestimento na escola, é verdade, que aqui são expostos, o que talvez possa ser compreendido por alguns como uma caricatura injusta do que é uma escola pública no Ceará – Estado, aliás, de excelentes índices educacionais que inclusive fizeram com que o ex-governador Camilo Santana tenha sido eleito por Lula para ser Ministro da Educação. No filme, apesar da insistência na denúncia do que vai mal na escola, nem tudo são horrores: uma das professoras, camarada, incentiva Saulo a ser um intelectual ativista negro e lhe empresta obras sobre os Black Panthers. Saulo vira fã deles – sobretudo de Fred Hampton. Os paradigmas de luta desde garoto conduzem à sua maturação como agente político que trilha as pegadas nas estradas de Malcolm X.
Fincando pé na escola, depois de ser agredido, recusando-se a ser expelido, Saulo é no filme um paradigma do estudante que se recusa. É insubmisso por inteligência, indiscisplinado por astúcia, revoltado e com razão – mas os poderes instituídos querer reduzi-lo a marginal e querem fingir que é apenas um rebelde sem causa.
Na cena em que os professores estão reunidos para votar por transferência compulsória ou expulsão do estudante-problema, revelam um show de horrores do autoritarismo micro-político – e que termina com aquela frase bolsonarenta: “agora a gente mete o pau nessa porra!”. Percebe-se na fala deste professor machão todo o sadismo troglodita de quem deleita-se por antecipação com a imagem da polícia militar espancando adolescentes negros.
Saulo é protagonista do filme por ser significativa liderança política juvenil que mobiliza parte da estudantada para reivindicar um programa de 10 pontos que tem a marca dos Panteras. As reivindicações me soaram ultra legítimas, para lá de necessárias e de concretização mais do que urgente. Mas o poder só quer expelir esta voz dissonante e dissidente, custe o que custar.
Diante do impasse, o poder chama a PM e o palco está armado para o replay da tragédia truculenta que é tão banalizada no Brasil. Boçalidade do mal tornada banal também por sua insana recorrência. Irrompem no filme de ficção cenas documentais, de maneira audaz, e nos lembramos na hora de Junho de 2013 e de outras jornadas de luta. “Cabeça de Nêgo”, para além de ser cinema popular de fôlego e ímpeto, também é capaz de educar – e espero que o movimento estudantil do Brasil não o deixe passar batido e organize exibições públicas e debates da obra.
No ocaso do (des) governo mal-educado e genocida de Bolsonaro, a tarefa de reconstrução é imensa. Este filme nos aponta tanto os caminhos utópicos quanto as atrocidades distópicas envolvidas na missão sem fim de refundar a educação brasileira.
A brutalidade com que os poderes reacionários tentam silenciar o levante estudantil, em “Cabeça de Nêgo”, é também sintoma de que o caveirão, o porrete, o tiro, o spray de pimenta e a bomba de (d)efeito moral de que se utilizam são os meios brutais de quem não tem argumento nem disposição democrática para o diálogo.
Como Chuvisco, cabe a nós sacar nossos versos e poemas, nossos pixos e bandeiras, nossos slams e batalhas de MCs, nossos celulares midiativistas e nossos blogs anarcopunk, nossa pirataria construtiva e nosso hackeamento tecnológico, para mostrar a eles: escola não é quartel, nem educação é mercadoria! Nem aqui vai ter futuro o fascismo que já começamos, coletivamente, a varrer para a lata de detritos da História a que está destinado este bolsofascismo escroto, grotesco, execrável, que ainda nos atormenta, infestando inclusive nossas escolas. Mas nunca sem resistência.
Se o cinema às vezes educa, mesmo sem intenção explícita, é também através de filmes assim, que dão carne e cor à Pedagogia do Oprimido, ou seja, obras que mobilizam os cenários da opressão tal como se manifestam nas escolas e universidades para denunciar o que há nelas de horrendo e anunciar um “novo aéon” de uma realidade alternativa… Cabeça de Nêgo coloca o desafio, também aos professores, também aos mestres e doutores, se vocês ainda são capazes de aprender com os alunos, de deixarem-se educar pelos estudantes, de serem aprendizes dos mais jovens… O educador que aprende com o educando é o educador autêntico, assim como o educando autêntico é aquele que sabe que pode também educar seu educador.
Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, 28/12/22
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OUTRAS OPINIÕES: Bruno Carmelo.
(*1) Na categoria LONGA-METRAGEM BRASILEIRO, em 2021, a Abbracine elegeu como vencedor: “Cabeça de Nêgo” (Ceará), de Déo Cardoso. Para dar uma ideia dos concorrentes sobre os quais este filme triunfou, eis o Top 10 em ordem alfabética:
“Alvorada”, de Anna Muylaert e Lô Politi
“Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente”, de Cesar Cabral
“Cabeça de Nêgo”, de Déo Cardoso
“Deserto Particular”, de Aly Muritiba
“Madalena”, de Madiano Marcheti
“Marighella”, de Wagner Moura
“A Nuvem Rosa”, de Iuli Gerbase
“A Última Floresta”, de Luiz Bolognesi
“Valentina”, de Cássio Pereira dos Santos
“Vento Seco”, de Daniel Nolasco
(*2) Estamos disponibilizando aqui no site o torrent pra download gratuito da obra tal como encontrado no fórum de cinéfilos MakingOff em postagem do usuário e admin “gooz” (link). Desconhecemos se os autores da obra audiovisual autorizaram esta postagem do torrent e não temos intenção de ferir direitos autorais mas sim de colaborar com a visibilidade e reconhecimento da importância deste filme crucial; se possível, apoie esta produção como puder, compre ingressos se passar num cinema perto de você, faça postagens nas redes sociais, seja um elo na corrente de catalisação dos bons frutos do cinema brazuca!
Publicado em: 28/12/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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