Mais de 700.000 humanos nascidos no território dito brasileiro foram ralo abaixo neste sumidouro de gente em que transformaram o país, neste moedor-de-carne-humana que foi o bolsonarismo durante a pandemia. Sumidouro de gentes e “construtor de ruínas”, como disse no título de seu impressionante livro a Eliane Brum, o Brasil chega a um dos momentos históricos do mais tenebroso retrocesso e também o nosso cinema entra na “era das distopias”, como apontou José Geraldo Couto no IMS, elencando Medida Provisória, Divino Amor e Medusa como exemplares recentes (o bizarro é o quanto também nossos documentários têm sido profundamente distópicos: O Processo, O Muro, Alvorada, todos sobre o golpeachment, não o são?).
Como Cazuza, vamos tentando descobrir meios para seguirmos sendo resilientes e resolutos na rebeldia contra esta insana desordem necrocapitalista que o regime encabeçado por Jair Bolsonaro encarna, sentindo-nos como “sobreviventes de um desastre mental” e na certeza: “meus heróis morreram de overdose / meus inimigos estão no poder”. E aí quando nos perguntam, disparada em um filme também distópico e desconfortável como “Pajeú” (de Pedro Diógenes, da Embaúba e Marrevolto Filmes), a questão pontiaguda e incômoda, “você também não tem medo de sumir?”, a gente é obrigado a responder: é claro que sim.
Medo de sumir como sumiram com Marielle. Medo de sumir como sumiram com Moa do Catendê (honrado neste 2022, no cinema, com uma menção no Medida Provisória de Lázaro Ramos). Medo de sumir como sumiram com os dados do genocídio covídico, com um índice obsceno de subnotificação de infecções e óbitos no país lançado ao cataclismo pelo Capitão Cloroquina e seus milicos junkies de Viagra. Medo de sumir como vêm sumindo rios: quantos Tietês, quantos Rios Doces, emporcalhados pela poluixão tóxica do capitalismo predatório, do extrativismo frenético! Medo de sumir como somem riachos urbanos com robusta história em suas margens (como o Pajeú, em Fortaleza).
“Maristela está sendo atormentada por um sonho constante: uma criatura emergindo das águas do Riacho Pajeú. A estranheza e insistência do pesadelo começam a atrapalhar o sono e o cotidiano de Maristela que, procurando uma solução para seu problema, inicia uma pesquisar sobre o Riacho, sua historia e seu desaparecimento. Os pesadelos não param. Sonho e realidade se misturam. Pessoas próximas a Maristela começam a desaparecer, assim como o Pajeú desapareceu. A angustia dela aumenta junto com o medo de também sumir.”
Desaparecendo debaixo do concreto da cidade gentrificada, a água-que-dá-vida (“milhões já viveram sem amor, ninguém nunca viveu sem água”, diz o poeta Auden) vai sumindo, lotada de plásticos, de latinhas de refrigerante, de barcos de pesca, às vezes de lixo radioativo… Por baixo de nós, está encerrada em canos e disparada cheia de merda e mijo em privadas, quando não destruída por rejeitos da mineração ou resíduos de catástrofes nucleares Fukushimescas. Com o adicional sinistro: na água, cada vez mais agrotóxicos. O veneno não só na mesa, também na bica.
Como isto não entraria em nossos pesadelos, não é Maristela? Como o sumiço dos rios e das gentes não geraria nossa insônia, nosso desalento, nossa vontade louca de fazer algo, mesmo que pouco, contra a desertificação do real e os clamores cada vez mais inaudíveis dos Pajeús debaixo dos concretos? Por isto te entendo, Maristela, no frenesi de suas danças, bêbada no boteco, ou de seus cânticos impopulares e estranhos nos karaokês indie de Fortaleza. Maristela, no mar revolto da história, acho que precisaríamos de mais gente como você, que também busca desenterrar rios e suas histórias, relembrando que a vida humana está incrustada na natureza! E que não é digno de um povo viver sob uma tirania que nos faz temer entrarmos logo neste imenso sumidouro de gentes posto em marcha pelos milicos e seu sórdido bolsonarismo.
Desta forma, no Brasil distópico que é o nosso, o antropocentrismo moribundo, o militarismo brucutu, a cargo da machaiada viagrosa e violenta, segue atentando contra as próprias condições de existência da bioesfera. Os rios feridos tornam-se assombração para alguns, entram em pesadelos, e suscitam nosso desejo de denúncia, ou ao menos de partilha artística de nossa angústia diante do colapso ambiental em curso. Como Ailton Krenak, intelectual indígena que também é autor-artista de assombrosas obras como O Futuro Não Está À Venda, na lida para adiar o fim do mundo, e para quem o Rio Doce está “em coma” após os crimes ambientais da Vale/Samarco em MG.
A personagem protagonista de Pajeú está assombrada por isto: este sumiço, de gentes e de rios. Sumiço também súbito do amigo gay, de feições orientais, cantor queer de karaokê, que some também ele sem deixar vestígio. Some do nada. Some para morrer uma morte sumida no país onde o presifake psicopata um dia disse que “era preciso fazer o trabalho que a ditadura não fez e matar uns 30.000”. Sua angústia, Maristela, se revela na pesquisa que faz, no documentário dentro do filme, entrevistando a galerinha praieira nas areias de Fortaleza. “E aí, você também tem medo de sumir?” Claro que sim: o bolsonarismo é expressão de uma máquina mortífera que quer sumir com tudo o que não se pareça com ele, tudo que não for tão brutamontes e estúpido quanto ele é, e cá estamos, temerosos do desaparecimento, angustiados diante de sermos varridos para os confins do esquecimento. Donde esta melancolia claustrofóbica que marca Pajeú e o condena a ser um filme impopular, anti-global, visto por quase ninguém. Uma pérola aos poucos.
Sinopse: O riacho Pajeú, em Fortaleza, vítima do processo de urbanização da cidade, corre silencioso debaixo dos arranha-céus. Para a professora Maristela (interpretada por Fatima Muniz), recém-chegada na cidade, a invisibilidade do riacho toca o íntimo do seu ser: transformado em monstro ultra-poluído, ele lhe aparece em sonho com ares de filme de terror. A tentativa de contornar o esquecimento (seu e da cidade) torna-se, então, o esforço em recuperar os fragmentos dessa história, em criar memórias coletivamente. Sob um regime ficcional perfurado pelo encontro com espaços reais e ilustres desconhecidos, o filme refaz o curso do rio de modo a restaurar os pedaços de sua gente.
Direção: Pedro Diógenes
Título Original: Pajeú (2020)
Gênero: Drama Documental
Duração: 1h 14min
País: Brasil
Há nesta Maristela uma atitude parecida com a de Diógenes, o cínico provocante, enfant terrible avant la lettre. Ela não carrega a lanterna de Diógenes, mas também quer saber onde é que tem gente autêntica e desperta nesta porra de cidade. Nesta urbe gentrificada e estúpida a ponto de matar a natureza sem a qual ela não viveria, cidade abjeta, hellcity dos trópicos insanizados pelos ecocidas do neofascismo. Ela pica os outros cidadãos com a questão incômoda: se sumiram com os rios, com as florestas, se sumiram com indígenas trucidados, se acorrentaram à escravidão por mais de três séculos nossos camaradas raptados de África, por que vocês estão tão confiantes de que também nós não vamos sumir? “Nunca esteve no plano deles que sobrevivêssemos”, canta o poema blues de Audre Lorde. We were never meant to survive.
No entanto, aqui estamos, resistindo aos sumiços, gritando nossa arte na cara dos deletadores da diversidade de nosso sóciobioexistência. Mas tendo que fazer filmes-de-terror em nossos documentários e inserir pesadelos em nossas ficções realistas.
Eles combinaram de nos matar, de sumir com a gente. Nós até combinamos de não morrer, né Conceição Evaristo? Combinamos de não deixar que sumissem conosco, de resistir contra o apagamento de nossa história, mas está difícil. Vivemos com medo do sumiço imposto pela força bruta do opressor que não nos respeita vivos, não nos dignifica nunca caso não sejamos a imagem e semelhança pura e perfeita do paradigma sagrado deles: o macho tóxico, misógino e homofóbico, racista e xexelento no ódio que exala a tudo que destoe da “mula de sua ótica”.
Uma ótica tão patriarcal, autoritária e caduca que merecia estar apodrecendo na lata de lixo da história mas ainda é capaz de produzir concretamente um genocídio. E a impunidade do próprio regime genocida. Causar com sua política-da-morte o adoecimento e a morte em massa de sua população, por algum insano sofisma lógico inaceitável para qualquer pensamento desperto, agora supostamente qualifica o sr Jair Bolsonaro a ser… candidato a presidente da república! Que piada sinistra! Um criminoso desta periculosidade, candidato! Ao invés de réu no TPI de Haia por seus crimes contra a humanidade! O Coiso deveria estar deposto e preso após acintes mortíferos contra a carne humana brasileira, por ele trucidada com ajuda do vírus da “gripezinha”, para o qual recomendou Cloroquinas e sabotagens-às-máscaras, milicos no Ministério e apagões de dados, fake news Zapistânico-satânica e desmonte da educação e da ciência.
Aliado do coronavírus, o genocida Jair Bolsonaro e seu regime militar, herdeiro do golpe de Estado de 2016 e da prisão ilegal de Lula em 2018, fizeram destas terras, de novo, um sumidouro de gentes. Em que mói-se também a possibilidade de luto, de prantearmos coletivamente as vidas inumeráveis que perdemos, de covid ou de outras causas conexas ao colapso sanitário ocasionado por esta deliberada sabotagem bolsogovernamental das medidas de contenção da pandemia. Sumiram em massa conosco, ó povo brasileiro! “Até bem pouco tempo atrás poderíamos mudar o mundo, quem roubou nossa coragem?”, questiona a Legião Urbana.
Enterraram 700.000 Pajeús humanos – quantas dezenas de milhares poderiam estar aqui conosco, fluindo e correndo, rindo e chorando, caso não tivessem sido ceifados pela perversa irresponsabilidade dos fascistas brasileiros? Com outro presidente, mais sensato, mais sábio, quantos estariam ainda vivos? Os bolsofascista nos legam apenas escombros, em meio aos quais seguiremos reconstruindo uma sociedade mais solidária e justa. Mesmo com o medo do sumiço. Sem antes esperar a chegada incerta do luxo do destemor, agiremos como pudermos, com a ajuda de rios e gentes esquecidas, contra a canalhice necrocapitalista que não ouve nem o clamor das vítimas da covid, nem o rugido enterrado dos Pajeús. Não seremos varridos para as fronteiras do esquecimento, nem para os confins da miséria, sem sacarmos nossa arte, expressão visceral de nossas vidas, mesmo que seja para perguntar, à la Diógenes, à la Maristela, a nossos concidadãos semi-adormecidos, entorpecidos na Caverna do Zapistão: como assim, vocês também não estão com medo do sumiço?
LEIA MAIS: CINÉTICA – CINESET – APOSTILA DE CINEMA – FÁBIO ANDRADE – mais CINEMA em A CASA DE VIDRO.COM
A foto na abertura do post foi reproduzida da capa do livro de Eliane Brum, edição francesa: Brésil – Batissêur de Ruines.
NAS REDES SOCIAIS:
FACEBOOK – https://www.facebook.com/blogacasadevidro/posts/357965129687780
TWITTER – https://twitter.com/acasadevidro/status/1517124282106720258
Brasil – sumidouro de gentes e rios: sobre as vítimas do genocídio covídico e os clamores dos Pajeús. Leia em @acasadevidro: https://t.co/hKG2uF9K8h #Cinema #Crítica #ForaBolsonaroGenocida pic.twitter.com/B03T6eeimY
— A Casa de Vidro (@acasadevidro) April 21, 2022
Publicado em: 21/04/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia