por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Celebrando 10 anos desde o lançamento do marco “As Plantas Que Curam” (2014), um álbum que mudou os rumos da música goianiense e inseriu os Boogarins no mapa do indie-rock global, o quarteto encerrou o Goiânia Noise 2024 com o Palácio da Música do C. C. Oscar Niemeyer repleto de gente, em noite de entrada 0800 e com um impressionante coro da multidão em “Doce”, consolidada como uma das canções mais ressonantes do debut dos caras.
Nos vídeos exclusivos que A Casa de Vidro realizou por lá, apreciem alguns dos últimos momentos do 28º Festival organizado desde 1995 pela Monstro e que deu adeus à sua edição 2024 com Dinho (vox/gtr), Benke (gtr), Raphael (bass) e Ynaiã (batera) viajando bonito na sonzeira acachapante que já os levou para os palcos de mais de 15 países.
APRECIE: DOCE E INFINU NO NOISE 2024
“As Plantas Que Curam” – que além de “Doce” inclui pepitas como “Infinu”, “Lucifernandis”, “Erre” e “Paul” – agora é relançado em Versão Deluxe, com uma pá de lados B e raridades jogando pra 20 faixas o que era originalmente um álbum de 10:
Uma década depois do início de sua carreira discográfica já recheada de álbuns – Manual (2015), Lá Vem A Morte (2017), Desvio Onírio (2018), Sombrou Dúvida (2019), Manchaca 1 e 2 (2020-2021), Levitation Sessions (2020) – o grupo segue sendo protagonista do movimento psicodelizante aqui nas terras do pequi radioativo. Os Boogarins já têm muitas estórias para contar – algumas delas reveladas ao documentário dirigido por Isaac Brum, Novos Goianos, em que também entrevistamos luminares da cena como Carne Doce e Diego Mascate.
Quando penso que pude acompanhar esta banda nascendo e evoluindo, percebo que já tô virando macaco velho em Goiânia. Quando mudei para a capital de Goiás, forasteiro vindo de Sumpaulo, Dinho ainda era “apenas” um moleque, decerto muito talentoso e descontraído, que era visto pelos palcos da cidade tocando com o Ultravespa (no qual era líder e mandava ver num rockinho trilegal ao estilo dos Cascavelettes) e com o Black Queen (em que era menos proeminente do que o bandleader Pietro, mas não menos timbrado na sonzeira). A expectativa de muitos na cena era de que o Ultravespa fosse se tornar uma das maiores, mais populares, mais lota-festival do cenário goianiense, e foi num desses backstages que fiquei sabendo pela primeira vez do nascimento de um tal de Boogarins, a princípio um projeto paralelo em que Dinho e Benke gravariam umas doidêras num home studio.
Algumas semanas depois, quando o Boogarins ainda tinha Hans na bateria e já tinha agregago Raphael (da Riverbreeze) ao time, fui convidado para discotecar no show de estréia dos caras que iria rolar no Loop Estúdio, encabeçado pelo Pafa. Foi uma noite adorável, em que mandei nos altofalantes o puro suco da psicodelia com laivos de apunkalhamento, com muito The Sonics, 13th Floor Elevators e pérolas da caixinha Nuggets, e depois pude apreciar a primeira apresentação ao vivo, junto com umas 40 pessoas apinhadas dentro do estúdio. Começava ali uma carreira nos palcos que talvez nenhum dos presentes ali imaginaria que se tornaria tão grandiosa, multifacetada e internacionalista.
Alguns anos depois, pude aprofundar o papo com os caras da banda, na fase em que Ynãia já havia se juntado à trupe, egresso do Macaco Bong de Cuiabá, onde havia feito história tocando batera no álbum Artista Igual Pedreiro (2008), gravado pelo Vázquez no Rocklab, um dos maiores feitos do rock instrumental brasileiro e que participou do auge de relevância sócio-cultural do Circuito Fora-do-Eixo. Entrevistei os 4 caras para o documentário supramencionado do Isaac, que me convidou para conduzir os debates que rolaram dentro do finado Complexo Pub, no Centro de Goiânia, e desde então me considero um dos jornalistas e documentaristas que acompanha mais de perto o percurso boogarínico e que sempre se contenta quando tromba qualquer dos músicos, é reconhecido e ganha um abraço, um papo e um pequeno banho dos afetos amigos que fazem da pertença à cena um dos temperos mais suculentos da vida.
Um dos elementos que mais estarreceu quem acompanha os rumos do rock brasileiro e suas ressonâncias para além de nossas fronteiras foi a impressionante repercussão dos Boogarins no exterior. Uma proeza ainda mais extraordinária quando se pensa que eles cantam no idioma lusitano, o que supostamente ergueria barreiras à sua propagação. Antes do Boogarins surgir, o que se esperava de fato era que o Black Drawing Chalks ou os Hellbenders é que fossem se tornar relativamente famosos na gringa com seu stoner pesadão cantado em inglês. Seja em virtude dos efeitos estupefacientes de sua luxuriante selva de som, seja pela sonoridade exótica de nossa língua aos ouvidos gringos, o fato é que o Boogarins tornou-se a banda mais renomada internacionalmente do fervilhante cenário goiano. Mais que isto, tornou-se uma das bandas brasileiras em atividade que mais viajou mundo afora com sua música.
Isto talvez se explique também pela sintonia e pela sinergia que a sonoridade deles expressa em relação a grupos atualmente muito cultuados, tanto no cenário musical global – caso dos já consolidados Tame Impala (ouça Innerspeaker; Lonnerism; Currents), Real Estate, The Temples – quanto no cenário brasileiro. Neste último, os Boogarins foram precedidos por explorações sônicas semelhantes dos Supercordas, dos Dharma Lovers, da Plástico Lunar, e obviamente d’Os Mutantes e suas ramificações (Rita Lee e Tutti Frutti, Arnaldo Baptista e a Patrulha do Espaço).
Pouco antes da ascensão meteórica da lisérgica e onírica neo-psicodelia Boogarínica, cantada em português, vale lembrar que Goiânia vivenciava um boom de bandas pesadonas, muito másculas e metidas a malvadas, todas com letras em inglês e um som que poderia ser acusado de ter intenção de “exportação”: além das pontas-de-lança do stonerismo, os já citados Black Drawing Chalks e Hellbenders, uma enxurrada de boas bandas no estilo “pauleira” rolavam na cena: Overfuzz, Aurora Rules, Cherry Devil, DogMan, Dry, Space Truck etc. Muitos destes grupos tinham ambições de transcender os limites do Cerrado, sair em turnês internacionais, participar de festivais de relevância global (como o South By Southwest).
De fato, o B.D.C. podia legitimamente sonhar em tornar-se uma espécie de Queens of the Stone Age tupiniquim; os Hellbenders tinham o potencial de ter a estatura de um Hellacopters ou um Supersuckers; a Space Truck tinha qualidade técnica suficiente para ambicionar ser reconhecida como uma espécie de Rush ou Dream Theather do rock-espacial goianiense… Na história prévia do rock em Goiânia Rock City, não faltavam exemplos de bandas que haviam também insistido em uma sonoridade garageira, quase sempre flertando com o punk e o stoner, quase sempre com um apego ao english que de modo algum podia ser explicado pela virtuosidade no manejo da língua. Bandas como MQN, Mechanics, Hang The Superstars, Bang Bang Babies, dentre outras, certamente não berravam letras cuja poesia que chegasse aos tornozelos dos poemas de Dylan, Cohen ou Patti Smith.
O fato é que, julgado pelo viés da qualidade das letras, o rock goiano cantado em inglês sempre perdeu de goleada, de modo humilhante mesmo, para as realizações de uma galera às vezes defenestrada com o termo, que para alguns é pejorativo, de “maculelê”. Grupos como Diego e o Sindicato, Umbando, Rádio Carbono, Mersault e a Máquina de Escrever eram os grupos locais onde poderíamos colher um mel poético, um lirismo cantado e uma inventividade verbal que encontraríamos com muita dificuldade no inglês tosco dos nossos bad ass rock’n’rollers.
Fico imaginando um crítico musical de publicações como a Kerrang ou a Mojo, acostumado aos versos arrojados de letristas brilhantes, como são o casal Josh Homme (Q.O.T.S.A., ex-Kyuss) e Brody Dalle (The Distillers, Spinnerette), diante das letras muitas vezes simplórias do rock goiano de exportação. Não dava mesmo pra imaginar a Hang The Superstars ou o MQN explodindo lá fora com tais “mensagens” veiculadas em suas letrinhas de aluno adolescente de terceiro semestre no intensivão no CCAA.
O Boogarins chegou à cena trazendo uma proposta mais “delicada” em relação ao stoner vigente, querendo abrir cabeças para uma psicodelia, uma lisergia, uma exploração sensorial que ainda era elemento faltante na cena de Goiânia. Para mim, o Boogarins também será sempre lembrado pelo período em que Dinho dividia-se com o Ultravespa, power-trio que acendia a brasa das platéias por onde quer que passasse. Batizada não sei se em homenagem ao inseto ou à motocicleta, a Ultravespa era diversão irreverente que, se remetia aos anos 60 (em especial The Kinks e Sonics), honrava também uma tradição do rock alternativo brasileiro que também os Boogarins sabem honrar (ainda que menos explicitamente): Replicantes, Wander Wildner, Faichecleres, Júpiter Maçã, Bidê ou Balde, Autoramas etc. Sem grandes ambições, eles tinham músicas engraçadinhas que faziam a crônica das noites no “Motel Barato” ouvindo Roberto Carlos, contrastantes com músicas mais sérias e emocionais como “Eu Te Dei Valor”.
O Ultravespa, afinal de contas, disbandou e descontinuou diante da ascensão meteórica dos Boogarins. Após 10 anos, As Plantas Que Curam mostra-se mesmo com um dos álbuns mais importantes da Cena Cerrado em sua década. Demonstrou que era possível, com inventividade e experimentalismo, gravar algo num estúdio doméstico que depois poderia ser ouvido em todo canto da aldeia global pelos fissurados em sons estranhos. Hoje, tocando em casa, o Boogarins fecha o Noise e Dinho quase nem precisa cantar o refrão de “Doce” – a galera faz um coro no refrão que parece um bagulho Los Hermânico.
Tá comprovado: a banda tem uma base de fãs considerável em sua cena natal, conta com o respeito de quase todo mundo que curte alternativas musicais ao sertanejo hegemônico, e ainda promete no futuro realizar muitos outros feitos. A luxuriante selva de som dos Boogarins ainda segue sendo cultivada e é massa se perder nos meandros dessas sonzeiras que, por uma década, fizeram à cena de Goiânia tanta diferença que ela poderia certamente dizer ao mundo, sem exagero e ecoando uma frase do Clube da Esquina: depois dos Boogarins, nada será como antes.
APRECIE ALGUNS ÁLBUNS DE ESTÚDIO
“AS PLANTAS QUE CURAM” (2013-2014)
“MANUAL OU GUIA PRÁTICO PARA A DISSOLUÇÃO DE SONHOS” (2015)
VIDEOCLIPES
“BENZIN”
“LUCIFERNANDIS”
“ELOGIO À INSTITUIÇÃO DO CINISMO” (Feat. Bonifrate)
“6000 DIAS OU MANTRA DOS 20 ANOS”
“CUERDO”
“ERRE”
“TEMPO”
AO VIVO
KEXP – Seattle, EUA
https://youtu.be/JufdXXG-7oU
ANTENA 3 – Porto, Portugal
https://youtu.be/Ru6oUdKsYH0
BANANADA 2014 – Goiânia, Brasil
https://www.youtube.com/watch?v=IIQajQ3DVEA
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO – Sampa, Brasil
https://www.youtube.com/watch?v=DuN0vGcfw9o
MONKEY SESSIONS COM O TERNO
https://youtu.be/kuR1_Ag5q7U
“PAUL” NO NOISE 2024
https://www.youtube.com/watch?v=1mqWZ1oLcvU
OUTRAS MÍDIAS: Miojo Indie (por Cleber Facchi) – Público.pt (por Mário Lopes) – Rolling Stone Brasil (por José Flávio Jr) – Estadão (por Pedro Antunes no Rock In Rio Lisboa) – Revista Continente (Entrevista com Benke) – Allmusic (por Fred Thomas) – The Guardian (UK)
Garimpo do Alto-Falante
https://www.youtube.com/watch?v=uRE2Tqydrmg
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Publicado em: 16/04/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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