É incrível o quanto o pseudo-messias mitomaníaco acredita piamente que o povo brasileiro é composto em sua maioria por otários engambeláveis: ele faz “buuu” com o kit gay, a mamadeira de piroca, a Venezuelização do Brasil e o espectro do comunismo lulopetista, esperando que sua seita de zumbis, bestializados pelas câmaras de eco de sua máquina de desinformação, façam em coro o “muuu” do conformismo cúmplice do fascismo. A ilustração de Allan Sieber publicada na Piauí e reproduzida no topo deste post é brilhantemente sintética desta tragicomédia.
O gado humano que hoje em dia se presta a ser manobrado pelo desgoverno genocida vem mugindo diante do espectro do comunismo (e também do bolivarianismo, hoje empoderado na Colômbia de Petro) mais ou menos como o touro faz diante do pano vermelho que o toureiro utiliza para enfezar o animal nas arenas de touradas. O Gabinete do Ódio e seus disseminadores pelas redes e pelas ruas tornaram-se especialistas em insuflar o ódio antipetista sem economizar em seus meios prediletos: calúnia, difamação, demonização.
O bolsonarismo é uma ideologia fascista baseada no “Nós versus Eles” – sobre o tema, consultem o excelente livro de Jason Stanley (L&PM, 2018), introdução crucialmente relevante sobre o tema do fascismo histórico e que nos permite pensar o que Bolsonaro rouba de Mussolini muito além das motociattas.
A todo momento o bolsonarismo visa produzir pânicos morais em sua plateia alienada e conservadora. Esta “clientela” que se filia ao conservadorismo fanático está doente de ressentimento devido ao avanço de políticas de combate à fome, justiça social, distribuição de renda, inclusão educacional, ações afirmativas e combate às desigualdades que os governos petistas tentaram implementar (com considerável grau de sucesso, ainda que com limitações e contradições). Não foram os equívocos ou insuficiências do petismo, mas sim seus avanços e sucessos o que causou a onda reacionária, golpista, militarista e fascistóide de contenção das melhorias e de desmonte das conquistas. Esta onda de extrema-direita encontrou em Bolsonaro seu troglodita predileto, seu capataz de estimação (como apontado com brilhantismo por Rodrigo Nunes em O Transe e a Vertigem).
Para destruir o que foi construído, os bostossauros-em-seita vão brandindo a noção estapafúrdia de que o PT no poder teria representado uma festa da corrupção, uma visão distorcida e sem nuances do problema, e de que a volta do PT ao poder representaria a transformação do Brasil num antro do comunismo bolivariano gayzista e abortista que dará mamadeiras de piroca e kits gay para as criancinhas inocentes do Brasil.
Cabe lembrar que, enquanto partícipe e beneficiário do Golpe de 2016, o então deputado federal golpista que usou sua boca-de-esgoto para agredir e depor Dilma Rousseff falou que votava pelo impeachment em nome das “inocência das crianças”. Mas Bolsonaro estaria supostamente salvando nossas crianças quando as ensina a fazer arminhas com a mão? Quando participa de cultos-comícios em louvor ao messias JesUstra, para quem o reino dos céus é daqueles que possuem armas de fogo e estão dispostos a “metralhar a petralhada”? Está agindo em prol dos pequenos quando ajuda a matar as mães e pais das crianças que foram tornadas órfãs através da disseminação deliberada do coronavírus que seu negacionismo e suas posturas antivax e anticiência disseminaram?
Dentre os inúmeros crimes eleitorais que Bolsonaro e seus cúmplices estão cometendo em 2022, e que evocam delitos semelhantes que cometeram impunemente em 2018 para usurpar o poder em eleições fraudadas, ocorridas enquanto estava no cárcere o candidato (Lula) que as teria vencido, está a mobilização do racismo religioso e das fake news que atribuem ao Partido dos Trabalhadores o plano de fechar igrejas e transformar o país num imenso terreiro, de tamanho continental, onde será obrigatório louvar os orixás.
Jair Bolsonaro e Micheque têm utilizado os palanques para cometer crimes de racismo religioso – sobre este conceito, recomendo Sidnei Nogueira em entrevista à Agência Pública – contra espiritualidades de matriz africana de maneira recorrente. A isto se soma a já tradicional atitude preconceituosa, discriminatória e racista contra povos indígenas e quilombolas.
Os cristofascistas bostossáuricos não demonstram nenhuma tolerância às espiritualidades e cosmovisões minoritárias nascidas da diáspora africana ou enraizadas neste território desde tempos pré-invasão imperial. Assim vão insuflando a violência teocrático-evangélica (com pitadas do espírito católico das Cruzadas) que empurra uma seita de fanatizados para o mais grave quadro de patologia cristofascista que o Brasil já conheceu, com severo incremento das violências contra os povos de terreiro.
Nos cultos-comícios, os bolsonarentos têm falado que antes o Palácio do Planalto era um antro de demônios. Agora virou o quê? Um Paraíso repleto de querubins? Um Éden gerido por um messias armamentista e golpista, tangedor dos “cidadãos de bem” que não tem vergonha de se mostrar apologista da tortura, ídolo do exército de Caxias e fã de Brilhante Ustra? Um Céu maravilhoso onde o MEC está nas mãos do pastor Milton e este negocia os fundos públicos em barras de ouro para beneficiar pastores? Vocês tem mesmo uma ideia psicótica de Paraíso, meus caros concidadãos zumbizados pelo genocida!
BOLSONARO DIZ QUE CRISTO ANDARIA ARMADO, LULA DIZ QUE É CRETINICE – YouTube
Brandindo a ameaça de um imaginário lulopetismo comunista que vai fechar as igrejas e templos, que vai substituir Jesus por Exu, e que vai dar cartilha sobre como usar crack para os moleques, os bolsofascistas trabalham com o espalhamento de um pânico moral delirante. A lógica do pânico moral recalca o fato de que é justamente a extrema-direita quem está insuflando o ódio sectário e divisionista. Este “dividir para que possamos todos nos odiar” faz com que uma parcela dos cidadãos vinculados ao cristianismo, nesta vertente desfigurado pelo bolsonarismo, hoje apareçam manchado com a chaga indelével de estarem mancomunado com o que existe de pior e de mais diabólico na política mundial.
Esta aliança entre o neofascismo ultracapitalista (neoliberal em economia, conservador dos costumes) e a religiosidade popular (colonizada pela “teologia da prosperidade), esta mescla de populismo de massas com utilização interesseira da fé, não é um problema que se restringe à fração da população evangélica neopentecostal que se deixa engambelar por calhordas como Edir Macedo ou outros pastores trambiqueiros. Estas tendências teocráticas, violatórias do estado laico constitucional, também contam com a cumplicidade ou mesmo a aliança de muitos católicos conservadores modelo Opus Dei.
Na revista Piauí, uma boa matéria de Barchinni e Bruzzi explora o tema da religião e da desinformação no epicentro da eleição, radiografando a farsa da notícia “o PT vai fechar igrejas” ou “o Lula vai fazer as atrocidades que Ortega faz na Nicarágua”, explorando o que é necessário para que a falsidade tenha eficácia:
“Uma fake news de sucesso precisa parecer crível ao seu público-alvo, precisa ter um fundo de verdade, algum lastro na realidade. Mesmo que depois a história decorra para uma ficção inimaginável. Em 2018, a proliferação de mensagens sobre a famosa “mamadeira de piroca” só foi possível por conta de tudo o que foi “construído” anteriormente, em torno do suposto kit de combate à homofobia que, diga-se, nunca foi distribuído nas escolas pelo governo petista. Mas Bolsonaro apareceu numa entrevista no Jornal Nacional com um “livrinho” na mão e disse que aquilo que os petistas diziam não existir na verdade existia e que estava nas bibliotecas escolares, mostrando o livro.”
FONTE: Religião e desinformação no centro da campanha eleitoral – revista piauí (uol.com.br)
Na mesma revista Piauí, Márcia Maria Cruz escreveu em A Nova Batalha de Xangô um retrato impressionante do quanto o cristofascismo bolsonarista está fazendo com que se multipliquem as agressões contra os povos de terreiro, com o agravante de que estas denúncias de intolerância religiosa e racismo religioso, perpetrados sobretudo por homens evangélicos e católicos contra umbandistas e candomblecistas, são acolhidas por uma Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos sob o controle da ministra-pastora Damares Alves. Esta, é óbvio, tem menos interesse na transparência e no acesso à informação do que no ocultamento dos crimes de seus correligionários e de seu rebanho:
“Quando a liberdade religiosa foi contemplada na Constituição de 1946, os credos de matriz africana, embora contassem com a proteção da lei, em maior ou menor grau continuaram a ser alvo de perseguição. Nos últimos anos, o número de agressões aumentou – assustadoramente.
Em 2021, houve 581 denúncias de ataques à liberdade religiosa, segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, ligada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – um aumento de 140% em relação a 2020, quando ocorreram 242. Na contabilidade das vítimas de agressão no ano passado, a umbanda aparece em primeiro lugar, com 65 denúncias, seguida do candomblé, com 58. O estado do Rio de Janeiro liderava o número de denúncias no ano (138), seguido por São Paulo (109), Minas Gerais (52), Bahia (50) e Rio Grande do Sul (45). Do total de denúncias, 115 agressões foram atribuídas a evangélicos, 54 a católicos e 27 a praticantes das próprias religiões afro-brasileiras. As agressões foram cometidas mais por homens (311 denúncias) do que por mulheres (217), e mais por pessoas brancas (200) do que pardas (133) ou pretas (66).
Os dados referentes a 2020 e 2021 foram consultados pela piauí em 8 de dezembro do ano passado no site do ministério. Depois dessa data, algumas informações, como a indicação das religiões das vítimas e dos suspeitos, foram retiradas da página. Em nota à revista, a pasta disse que isso foi feito pela área técnica da Ouvidoria de Direitos Humanos para “otimizar o tempo e a qualidade do atendimento por parte da central de atendimento”. E completou: “Essas informações só serão coletadas quando tiverem relação com o motivo ou agravamento da violação.” Até março deste ano, o ministério foi comandado pela advogada Damares Alves, que é evangélica.
Em São Paulo, os casos triplicaram em cinco anos. Os boletins de ocorrência com denúncias de intolerância religiosa passaram de 5 214, em 2016, para 15 296, em 2021, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública. No estado do Rio de Janeiro, em 2021 foram registradas 47 denúncias de agressão e intolerância, sendo que 43 das denúncias foram feitas por religiões de matriz africana, 3 por judeus e 1 por católico, de acordo com o Observatório de Liberdade Religiosa. Em Salvador, o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela recebeu 37 denúncias no ano passado. Neste ano, apenas até 31 de maio passado, haviam sido feitas 29. Desde a criação do centro, há nove anos, os números têm crescido.
Em Belo Horizonte, o Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab) recebe diariamente denúncias de intolerância contra as religiões afro-brasileiras. “Vivemos uma conjuntura em nosso país que facilita o ódio, o preconceito acirrado. É como se houvesse autorização implícita para que as pessoas pudessem despejar o ódio contra as religiões e as tradições de matriz africana”, diz Célia Gonçalves Souza, coordenadora nacional do Cenarab e defensora aguerrida dos povos de terreiro. Ela está se referindo ao racismo e ao contexto político criado por um governo de extrema direita. Na sua avaliação, embora o princípio de laicidade esteja expresso na Constituição, o Estado não tem garantido a isonomia entre todas as religiões.
Souza enfrenta na própria pele o racismo e já perdeu a conta das vezes que foi xingada por usar roupas que fazem referência aos cultos africanos. “A gente vive situações de racismo religioso todos os dias, como o olhar assustado das pessoas quando nos veem com nossas roupas. Lembro que, certa vez, eu estava usando uma camisa de terreiro, de orixá, e alguém gritou na rua: ‘Olha o Capeta.’”
Por aqui, não acreditamos em um povo de otários e trabalhamos para insuflar senso crítico e não submissão a dogmas; que possamos todos agir em massa fazer perceber que Bolsonaro faz uso interesseiro e anti-ético da religião enquanto pratica atos demoníacos como promover a morte em massa do povo que jurou representar. Jair Bolsonaro faz lembrar do adágio: o Diabo sabe citar a Bíblia quando isto lhe convém (the devil can quote scripture, como se diz em inglês). Sabe também deixar-se ungir e batizar por autoridades religiosas desde que estas lhe rendam votos, curtidas e capital. Como ateu, não acredito em Céu e Inferno post mortem, mas quase chego a desejar que existisse de fato um Juízo Final: se Deus existisse, justo e benévolo como O pintam, estou convicto de que condenaria o clã Bolsonaro a arder nas profundezas infernais devido à extensão e à magnitude dos pecados/delitos de etnocídio, ecocídio e genocídio que estão produzindo através de sua ideologia derivada das milícias, sua gestão criminosa da pandemia (com a mortandade em massa daí advinda) e suas práticas psicóticas e desumanas.
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Demônios na goiabeira
MUNIZ SODRÉ
Desde a espantosa afirmação de uma ministra de que viu Jesus Cristo trepado numa goiabeira, a nação não tinha ouvido informação tão intrigante quanto a da primeira-dama, segundo a qual o Palácio do Planalto era antes povoado por demônios.
Até aí, o relato oscila entre o escopo sobre-humano das crenças e o das exaltações visionárias. É uma questão de afinidade privada. Torna-se pública quando ela vai mais além para garantir que o real chefe do governo é aquele já descido, não da cruz (símbolo da entrega sacrificial), e sim da goiabeira: o próprio Jesus.
Notoriamente, entidades religiosas e articulistas detectaram aí um laivo de terrorismo religioso, por contrariar o pluralismo das crenças e o princípio de laicidade do Estado. Mas o fato ganha uma conotação particular quando confrontado a um pequeno episódio da celebração democrática nas Arcadas do Largo São Francisco: a professora Eunice de Jesus Prudente, uma das leitoras da Carta aos Brasileiros, com pulseira de búzios e blazer amarelo, emocionou a todos ao se descrever como mulher preta, zeladora de Oxum.
É que essa autodescrição não significa a exclusão religiosa de nenhuma alteridade, mas a reiteração étnico-política daquilo que caracteriza a nação, a sua radical diversidade humana. Este foi o grande diferencial dessa Carta.
Ao se identificar a partir da matriz ancestral, a professora (de sobrenome tão sincrônico) sinalizou para o próprio corpo como o capital cultural que autentifica um comum de pertencimento e de fé. Apontou para uma forma heterogênea de vida nacional.
O gesto foi simbólico e publicamente educativo: essa forma antecede em mil anos o cristianismo e zela por princípios cosmológicos que o Ocidente classifica como divindades. Uma dessas, Nanã, antiquíssima, figura no panteão dos deuses gregos ao lado de Atena, negra. A antiguidade do culto afro em nada se choca com a sua flagrante pós-modernidade litúrgica, que não se arroga à verdade absoluta, prescinde de conversão, desconhece preconceito de gênero e respeita outras crenças. Isso se comprova desde as menores até as grandes comunidades dessa tradição. A afro-perspectiva é uma restauração mental.
Daí o chocante retrocesso das falas planaltinas. É possível que a dama leve a sério a coorte que a vê como Ester, a exilada judia do Velho Testamento, feita rainha ao se casar com Xerxes, rei da Pérsia. Seu empenho era salvar a vida dos fiéis de Jeová. No momento, o que aqui periga é a sanidade dos fiéis à democracia. Mas a suposta rainha e seu consorte parecem querer jogar mais lenha de pau de goiaba na fogueira da demência, evento cuja única perspectiva é a da autocombustão mental.
Muniz Sodré
Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “A Sociedade Incivil” e “Pensar Nagô”.
FSP 27.08.2022
Publicado em: 31/08/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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