Um dos muitos méritos desta graphic novel dos argentinos Diego Agrimbau (roteiro) e Dante Ginevra (desenhos) está em sua capacidade de revelar a enorme dimensão social, espiritual e artística de Bob Marley.
Nascido em 1945, numa Jamaica que lutava para se libertar do domínio colonial inglês, Bob Marley viveu apenas 36 anos, mas tornou-se uma figura de notoriedade e relevância mundial, a ponto de produzir milhões de seguidores. Isto não se deve somente ao seu talento como cantor, compositor e músico, mas à força e à resiliência de sua mensagem à humanidade.
“Reggae’s most transcendent and iconic figure, Bob Marley was the first Jamaican artist to achieve international superstardom, in the process introducing the music of his native island nation to the far-flung corners of the globe. Marley’s music gave voice to the day-to-day struggles of the Jamaican experience, vividly capturing not only the plight of the country’s impoverished and oppressed but also the devout spirituality that remains their source of strength. His songs of faith, devotion, and revolution created a legacy that continues to live on not only through the music of his extended family but also through generations of artists the world over touched by his genius.” – Jason Ankeny
Guerreiro Rasta não começa ao som de ska ou reggae, mas em chave mais trágica, evocando a África, onde as caravelas invasoras do imperialismo europeu vieram sequestrar milhões de seres humanos para o destino horrendo de escravizados. Filhos da diáspora, os afrodescendentes da Jamaica lutavam por independência e autonomia enquanto Bob Marley crescia: é no período entre 1958 e 1962 que a onda descolonizadora do Caribe ganha força e triunfa contra o império inglês, não só na Jamaica, mas também em Trinidad e Tobago.
Na capital da Jamaica, Kingston, os autores evocam de modo impressionante a presença da África, seja através do mega evento cívico que foi a visita do imperador da Etiópia, Hailê Selassiê, em abril de 1966, seja no próprio cotidiano dos cultuadores de Jah, os rastafáris da sagrada ganja, tão perseguidos pela elite branca e que com tanta frequência tinham seus dreadlocks cortados e tomavam cruéis baculejos policiais.
Bob Marley até tentou migrar para os EUA – onde trabalhou em Delaware como operário da indústria automobilística em uma fábrica da Chrysler – mas retomou o caminho de Trenchtown: em uma das imagens mais memoráveis de Dante Ginevra, o avião de Marley decola nos Estados Unidos, ascendendo rumo a um céu onde paira, cheio de garbo e poder, desenhado pelas nuvens em interação com os raios de sol, um gigantesco Leão de Judá…
Bob Marley permitiu que a criatividade de um país periférico conquistasse o globo e tornou-se um dos luminares não só da música reggae ou da religião rastafári, mas um ídolo popular em todas as latitudes onde há luta contra a opressão e em prol da paz e do amor. Filho de uma afro-jamaicana com um branco inglês, Bob Marley foi um mulato afroamericano de profundo enraizamento na cultura africana e no sonho de um retorno à África mãe, seja na Etiópia ou na Libéria (este é um ethos ou uma constelação afetiva que assemelha Bob Marley a Nina Simone).
Apesar de estar longe de ser uma figura teórica ou acadêmica, Marley tinha postura política convicta e aliou-se ao movimento do pan-africanismo propugnado por Marcus Garvey, evidente em uma canção como “Africa Unite”. Em sua meteórica carreira musical foi um porta-voz libertário cujo teor ideológico e raio de influência sobre as massas pode ser equiparado ao de figuras como Patrice Lumumba, Malcolm X, Martin Luther King, Fela Kuti etc.
Suas letras repletas de crítica social transcenderiam o gueto e iriam muito além das fronteiras do reggae: iriam inspirar artistas do folk, do rock, do punk, da MPB, da world music etc. Não é possível imaginar nem o The Clash, nem Gilberto Gil, nem Manu Chao, sem a seminal influência de Bob Marley.
O poder de sua arte é tamanho pois conjuga o anúncio e a denúncia, para lembrar Paulo Freire: Marley fala sobre one love em vibe similar à de John Lennon imaginando a brotherhood of men, mas também denuncia a “selva de concreto” (assista a “Concrete Jungle” assista) e os mais de “400 Years” de opressão imperialista sobre aqueles que foram roubados de sua terra nos “merchant ships” evocados por “Redemption Song”:
“Velhos piratas, sim, eles me roubaram.
Me venderam para os navios mercantes,
Minutos depois me atiraram
Num buraco sem fundo…”
Guerreiro Rasta é uma leitura rápida mas que deixa rastros na memória; uma biografia em formato graphic novel de 60 e poucas páginas, mas que ensina uma imensidão neste curto intervalo de tempo e espaço. Ganham expressão nestas páginas toda a violência política nas ruas de Kingston e todo o esforço pacifista-diplomático de Marley; toda a trajetória dos Wailers, tendo como coadjuvantes importantes Peter Tosh e Lee Perry, de estrelas musicais locais a popstars idolatrados por Eric Clapton, Mick Jagger, Joe Strummer; toda a epopéia da diáspora, todos os horrores impostos pelo imperialismo racista e supremacista, em contraste com a sabedoria naturalista, cannábica, rasta-pacifista, desse liberador de mentes e encantatório musicista que foi Bob Marley.
No cinema, sua vida e obra já ganharam belos retratos em filmes como Rebel Music ou na biopic documental de Kevin MacDonald. Porém a linguagem dos quadrinhos, aqui utilizada com maestria pelos hermanos argentinos, fornece uma impressionante oportunidade de imersão no microcosmo Marleyano. Na página 53, por exemplo, evocam-se em 5 míseros quadrinhos e um punhado de frases pungentes o dia em que a Jamaica enterrou Bob Marley. É uma página que não se esquece mais.
Era um “funeral de chefe de estado, com uma cerimônia que misturava as tradições rastafári e católica ortodoxa etíope. O caixão seguiu um longo trajeto até sua terra natal, Nine Mile. Toda a Jamaica chorou a partida de seu filho pródigo. Em seu túmulo, foram colocados quatro objetos que representavam o que sempre foi importante para ele… o futebol, a música, a fé rastafári e a maconha. Nessa noite, toda a ilha cantou e dançou celebrando sua vida. Foi a melhor festa funerária que um rasta poderia esperar.”
SIGA VIAGEM:
OUÇA…
BURNIN’ (1973)
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“SURVIVAL” (1979)
“Containing what is considered Marley’s most defiant and politically charged statement to date, Survival concerns itself with the expressed solidarity of not only Africa, but of humanity at large. The album was controversial right down to the jacket, which contains a crude schematic of the stowage compartment of a typical transatlantic slave ship. Survival is intended as a wake-up call for everyman to resist and fight oppression in all of its insidious forms. From Tyrone Downie’s opening synthesizer strains on “So Much Trouble in the World” to the keyboard accents emerging throughout “Zimbabwe,” the sounds of Survival are notably modern. The overwhelming influence of contemporary African music is also cited with the incorporation of brass, á la Fela Kuti and his horn-driven Africa ’70. While “Top Rankin’,” “Ride Natty Ride,” and “Wake Up and Live” are the most obvious to benefit from this influence, there are other and often more subtle inspirations scattered throughout. Survival could rightly be considered a concept album. Marley had rarely been so pointed and persistent in his content. The days of the musical parable are more or less replaced by direct and confrontational lyrics. From the subversive “Zimbabwe” — which affirms the calls for the revolution and ultimate liberation of the South African country — to the somewhat more introspective and optimistic “Africa Unite,” the message of this album is clearly a call to arms for those wanting to abolish the subjugation and tyranny of not only Africans, but all humankind. Likewise, Survival reinforces the image of Marley as a folk hero to those suffering from oppression.” – Lindsay Planer, AllMusic [http://www.allmusic.com/album/survival-mw0000194795]
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ASSISTA:
Publicado em: 04/03/17
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
anisioluiz2008
Comentou em 04/03/17